Por José Manuel Fernandes,
Boa noite!
Há reportagens que marcam a vida de qualquer jornalista, e se tivesse de escolher apenas uma em toda a minha vida não teria dúvidas: escolheria as que fiz em Dezembro de 1995 – há exactamente 20 anos – numa Sarajevo devastada pela guerra. Cheguei lá alguns dias depois da assinatura dos acordos de paz de Dayton (a 14 de Dezembro), mas ainda a tempo de assistir à passagem do testemunho dos capacetes azuis de uma força militar da ONU, a UNPROFOR, para uma outra, liderada pela NATO e que viria a integrar uma unidade portuguesa, a IFOR. Passei o dia de Natal na cidade mártir, fui à catedral católica (numa capital de maioria muçulmana) para a Missa do Galo e lá encontrei o oficial português que já estava a preparar a chegada dos nossos soldados, percorri aquelas ruas em que e becos onde, até há apenas alguns dias, só se passava a correr para fugir das balas dos atiradores furtivos que disparavam do outro lado do mesmo rio em cujas margens, 81 anos antes, o assassinato do herdeiro do trono dos Habsburgos funcionara como espoleta para a I Guerra Mundial.
Não me demoro mais nesta espécie de prefácio, pois ele serve apenas para introduzir um ensaio fotográfico que, como compreenderão, me tocou especialmente: Sarajevo: a portrait of the city 20 years after the Bosnian war. Saiu no Guardian, permitiu-me recordar esses dias, procurar ver o que mudou nestas duas décadas, mas serviu-me sobretudo para recordar que houve uma guerra na Europa há apenas 20 anos, uma guerra com todos os seus horrores, uma guerra com os seus campos de concentração e os crimes sem nome, como o massacre de Srebrenica – que outro ensaio fotográfico, este da The Atlantic, recordou este Verão. Às vezes parece que vivemos, no nosso continente, tempos que tornarão as guerras uma impossibilidade – nessa altura é bom recordar Sarajevo. Este conjunto de fotografias ajuda a fazê-lo. Até porque “The capital puts on a brave and bold cosmopolitan face for the international community and tourists – but beneath the surface nationalism, corruption and mismanagement plague civic life, while people from all backgrounds struggle to make a basic living”.
Estas sugestões visuais, mas que espero inspiradoras, têm também um outro motivo: hoje o Macroscópio teve de ser um pouco mais curto, segue com algum atraso e não será estruturado em torno de um tema central. Vou tocar antes em vários assuntos, começando por regressar a um tema que já teve direito a um Macroscópio inteiro, o das selecções dos melhores livros do ano. Vou começar pela que o próprio Observador preparou – Livros. Os melhores e os piores de 2015 – em que pedimos a seis dos nossos colunistas e críticos para escolherem os cinco melhores livros (saídos em Portugal ou no estrangeiro) e um dos piores. Responderam ao desafio Rui Ramos, Paulo Tunhas, José Carlos Fernandes, Miguel Freitas da Costa, Miguel Pinheiro, Vasco Rosa, Humberto Brito e eu próprio. Há um só livro citado por três vezes: Submissão, de Michel Houellebecq. Deixo-vos o que sobre ele escreveu Rui Ramos:
Provavelmente, o livro do ano, não só pelo tema aparente, mas pela liberdade e ironia com que está escrito. Ao contrário do que parece, não é sobre a islamização da França, mas sobre a profunda corrupção da cultura intelectual e universitária do Ocidente. Houellebecq não escreve para acariciar as piedades da época. Com ele, seja qual for o tema, a literatura não é substituível por qualquer ensaio académico ou reportagem jornalística. O mais importante escritor vivo.
Como já tinha referido no Macroscópio dedicado a este tema, alguns órgãos de informação fazem mais do que uma lista, sendo que um deles é o Wall Street Journal, que teve contudo o engenho de juntar essas listas, ou as melhores, numa só página, a que chamou Best of the Best-of Lists. Em A compilation of books cited on multiple year-end lists temos Best Fiction, Best Nonfiction, Best Mystery & Thriller e Best Young Adult. De todas estas listas, o livro mais vezes citado foi um ensaio sobre raça na América, um tema muito sensível no último ano: Between the World and Me, de Ta-Nehisi Coates. Eis como o apresenta Jen Maloney: “Ta-Nehisi Coates, whose book on race in America tapped into a pressing, national conversation, won the National Book Award for nonfiction Wednesday. .. In an evening of impassioned speeches, some moving audience members to tears, Mr. Coates said he wrote his book, “Between the World and Me,” for his friend Prince Jones, who was killed by a police officer who mistook him for a criminal..."
Esta selecção foi feita a partir das múltiplas listas de vários órgãos de informação, mas o WSJ também fez a sua, isto é aWSJ's Best Books of 2015. Dessa lista destaco SPQR, de Mary Beard, uma nova história da República romana e do Império que se lhe seguiu: “For 2,000 years, historians have tried to explain how a slightly shabby Iron Age village on the margins of the much more glamorous civilizations of the Etruscans and the Greeks rose to become the undisputed hegemon of the Mediterranean. Mary Beard tells this story precisely and clearly, with passion and without jargon. Her fulcrum is the age of Cicero and the civil wars that brought the end of the Roman Republic. In the course of conquering their world, the senate and people of Rome, always at each other’s throats, nearly tore Rome apart. Where “SPQR” differs most from the standard accounts is in its honesty about the limits of what can be known. Ms. Beard’s caution makes her vivid history all the more believable.”
Entre as revistas de referência, merece também destaque a escolha da New Yorker, The Books We Loved in 2015. A selecção foi entregue a vários colaboradores da revista, e vou começar por onde começa a NY, pelas sugestões de Joshua Rothman, pois ele abre com dois livros de Svetlana Alexievich, a bielorrussa que este ano ganhou o Nobel da Literatura:
“Voices from Chernobyl” and “Boys in Zinc” were like nothing I’ve ever read, and they affected me in ways I find hard to describe. Alexievich’s interviews expanded my sense of what it’s possible to endure; they also made me feel the extreme narrowness of my own experiences and perceptions. They convinced me that I know nothing about people—that there are zones of emotion and thought as far from my mind as the moon is from the Earth. A mother from near Chernobyl, whose daughter was born with birth defects, asks, “Why won’t what happens to butterflies ever happen to her?” A man who’s gone back to live in the irradiated zone—to wander, alone, in a religious trance, as a kind of holy fool—explains his decision by saying, “The life of man is like grass: it blossoms, dries out, and then goes into the fire.”
Mudo agora de tema para passar, de fugida, pelo inevitável: a entrevista de José Sócrates à TVI, que se desdobrou por dois dias e durou, no total, bem mais de duas horas. Houve quem não gostasse nada do que viu e ouviu, como Viriato Soromeno Marques que, no Diário de Notícias, em Ostracismo em prime time, escreveu: “O show televisivo foi o palco do aviltamento de Joana Marques Vidal e do sistema judicial como um todo. Sócrates, cuja deriva histriónica é inegável, fez-nos regressar à democracia ateniense, quando não havia separação de poderes nem processos formais de investigação. Quando a condenação até do mais justo dos heróis da Antiguidade - o general Aristides (530-468 a.C.) - poderia ser induzida por um demagogo, incendiando uma multidão na ágora. Partindo bilhas, e usando os cacos como boletins de voto, no sinistro processo de ostracismo. Um péssimo serviço à democracia que nenhuma guerra de audiências pode justificar.”
(Já agora: se assistiram à entrevista e quiserem ficar com uma ideia do que ficou por perguntar ou esclarecer, recomento um especial que editámos ainda antes de começar a primeira parte do programa, As 16 perguntas a que José Sócrates devia dar resposta.)
Termino regressando a casa, isto é, ao Observador, pois quero assinalar duas efemérides que passaram despercebidas em quase toda a imprensa mas não foram esquecidas aqui na casa, merecendo tratamento adequado em trabalhos que – modéstia à parte – dão gosto pelo que permitem que se aprenda. Refiro-me ao 60º aniversário da admissão de Portugal nas Nações Unidas, um tema que o historiador Fernando Martins enquadra na época, procurando também explicar o que significou esse passo para o regime de Salaxar: Portugal e a ONU: um dia de “euforia internacional”. E refiro-me também à passagem de 500 anos sobre a morte de um dos maiores portugueses de todos os tempos, o grande construtor e visionário do nosso império do Oriente, Afonso de Albuquerque. Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto foram, como sempre são, superlativos em mais um Conversas à Quinta para e guardar: Afonso de Albuquerque, 500 anos depois: o homem que inventou o império português. Aproveitámos também esta oportunidade para recuperar um Especial que publicáramos em Agosto, Há 600 anos, Ceuta. Há 500, Afonso de Albuquerque. Do Mediterrâneo para o Mundo, um belo ensaio de outro historiador, João Paulo Oliveira e Costa.
E com isto me despeço. Espero que a variedade de hoje vos tenha aberto o apetite para mais umas leituras, que eu estarei de volta amanhã.
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