Enquanto
o Infarmed e as farmacêuticas não chegam a acordo sobre os preços, os hospitais
têm de pedir autorização e depois pagar na íntegra os valores pedidos pelos
laboratórios. “Muitas vezes, quando a autorização chega já não interessa. O
período em que o doente poderia beneficiar já passou”, denuncia a Liga
Portuguesa Contra o Cancro.
Há
doentes a esperar meses por autorizações para usar os novos medicamentos para o
cancro e há mesmo quem esteja a procurar alternativas no privado para ter
acesso aos fármacos que aumentam a esperança e qualidade de vida em áreas como
cancro da próstata e pulmão. Os alertas são da Liga Portuguesa contra o Cancro
e da Sociedade Portuguesa de Oncologia. Os peritos falam de estagnação na
entrada de medicamentos inovadores nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde e
dizem que o problema não é novo, mas continua sem ser resolvido. “O Estado não
tem de dizer sim a tudo, tem é de definir as regras. E quando disser sim ou
não, que seja para todos”, defende Gabriela Sousa, presidente da Sociedade
Portuguesa de Oncologia. “Politicamente é muito difícil mas devia haver coragem
para dizer que não há dinheiro para dar este ou aquele medicamento, isso
resolvia a desigualdade que se cria nos doentes”, concorda Vítor Veloso, da
Liga Portuguesa Contra o Cancro.
Segundo
uma lista a que o i teve acesso, neste momento há 26 fármacos para o cancro à
espera de uma decisão sobre a comparticipação do Estado. São medicamentos que
já estão disponíveis no mercado, mas aguardam avaliação prévia para uso nos
hospitais. Alguns processos arrastam-se desde 2011 e só este ano já há seis
novos medicamentos em lista de espera.
Questionado
pelo i, o Infarmed indicou que no global há mais de uma centena de medicamentos
em avaliação, incluindo neste número não só novas moléculas mas novas
indicações. De acordo com a lista que o i teve acesso, no global há 55
medicamentos inovadores à espera de aprovação e a área da oncologia representa
metade das novas moléculas.
Um
dos processos que se arrasta há mais tempo é o da abiraterona, um medicamento
para o cancro da próstata comparticipado em 19 países europeus. Em Portugal,
ainda sem a negociação com o Estado concluída, custa, por mês, mais de 3000
euros por doente e agora vai ser comparticipado mas apenas para os doentes que
já fizeram quimioterapia.
“É
positivo mas devia ser dado antes da quimioterapia, que é quando há mais
benefício, mas continuamos a ter enorme dificuldade de acesso”, diz Gabriela
Sousa, presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia e médica no IPO de
Coimbra. Este é um dos casos em que há doentes a recorrer a hospitais privados
para contornar a espera no SNS, nuns casos através de subsistemas de saúde ou
até pagando o tratamento na íntegra do seu bolso. “Quem pode”, diz a médica,
acrescentando que já conheceu doentes que recorreram a ajuda de familiares ou
fizeram campanhas. A título de exemplo, no regime pós-quimioterapia, o
tratamento com a abiraterona dura cerca de sete meses. Já quando é usado logo
no início do tratamento, a toma pode chegar aos dois anos, o que significa uma
despesa de mais de 70 mil euros. Outro ponto importante é que não se trata de
medicamentos experimentais, mas que já estão aprovados na Europa e
comparticipados em muitos países.
Queixas
de doentes com cancro da próstata e pulmão Vítor Veloso, da Liga Portuguesa
contra o Cancro, diz que há queixas sistemáticas de doentes a quem os médicos
prescrevem medicamentos mas depois ficam meses à espera de resposta. O problema
agudizou-se durante os últimos anos, em que houve mais restrições financeiras,
mas Vítor Veloso sublinha que não tem havido quaisquer melhorias. Além da
próstata, a área do cancro do pulmão é neste momento a mais problemática,
refere o porta-voz dos doentes.
Enquanto
o Infarmed e as farmacêuticas negoceiam os preços, se os médicos entendem que
os doentes devem fazer estas medicações têm de pedir autorização à
administração do hospital, que por sua vez tem de pedir autorização ao
regulador do medicamento. Quando recebem luz verde, as instituições têm de
comprar o medicamento ao laboratório ao preço com que chegou ao mercado. Este
sistema, que é suposto ser excecional, acaba por ser usado numa base rotineira,
sobretudo quando surgem medicamentos com mais-valias mais claras e o processo
de comparticipação que devia ficar fechado em 75 dias chega a demorar anos. “Os
hospitais mais desafogados financeiramente são mais liberais, os ouros fazem
mais obstrução. As comissões de farmácia retardam ou não aprovam por algum motivo
os pedidos dos médicos”, diz Vítor Veloso.
O
resultado são respostas a diferentes velocidades por todo o país. “Os hospitais
diferem na sua atuação, o que tem criado situações de desigualdade tremenda”,
acrescenta o responsável da Liga Portuguesa contra o Cancro. Num inquérito
feito, a Sociedade Portuguesa de Oncologia concluiu que as desigualdades no
acesso são a maior preocupação dos médicos. “As desigualdades acontecem nesta
fase. Quando a comparticipação chega, todos acabam por ter acesso”.
Se
os alertas não são novos, o número crescente de novos medicamentos para o
cancro, sobretudo com a chegada da imunoterapia - fármacos que levam o sistema
imunitário a combater as células cancerígenas na área do pulmão e melanoma
vieram aumentar a pressão sobre as contas dos hospitais e do SNS, que tem
tentado conter a despesa pública com medicamentos a 2 mil milhões de euros. Os
dados do Infarmed atestam o peso da oncologia nesta ginástica orçamental,
doença em que além do preço dos medicamentos estar a aumentar há também mais
casos, fruto do envelhecimento da população.
Só
no primeiro trimestre do ano, as autorizações especiais de utilização (AUE) de
medicamentos na área da oncologia representaram uma despesa superior a 14,4
milhões de euros. E, no geral, a despesa com medicamentos para oncologia
totalizou nos primeiros quatro meses do ano 84 milhões de euros, mais 11% do
que no mesmo período do ano passado.
Fontes
do setor ouvidas pelo i admitem que o facto de os hospitais acabarem por ter -
mais depressa ou devagar - de ir prescrevendo inovação aos doentes antes de
haver uma comparticipação está a contribuir para o aumento da despesa com
medicamentos numa altura em que os orçamentos estagnaram. O problema complica a
vida aos gestores, uma vez que não têm previsão orçamental para fazer face a
encargos que chegam a superar milhares de euros por doente. E, de acordo com as
regras, têm de cabimentá-los. O resultado são pagamentos em atraso a disparar,
sobretudo nos hospitais mais diferenciados.
Acordos
garantem preços mais baixos e para mais doentes O problema não é só o preço
elevado dos medicamentos enquanto não há fumo branco na avaliação prévia à
utilização hospitalar, onde se decide com base nas vantagens clínicas, custos e
alternativas disponíveis.
Gabriela
Sousa explica que, quando finalmente se chega a acordo, os protocolos com as
farmacêuticas têm vindo a incluir regras de “partilha de risco”, que encarregam
os laboratórios a assumir os encargos com doentes que não evoluem como previsto
enquanto fazem o tratamento ou que o têm de tomar mais tempo do que o suposto.
Na
área do cancro, revela a responsável da Sociedade Portuguesa de Oncologia, já
aconteceu num medicamento para o cancro da mama aprovado no final de 2015. Esta
tendência de levar as farmacêuticas a assumir mais responsabilidades nos custos
com medicamentos que não garantam resultados a 100% tornou-se mais mediática no
ano passado com o dossiê da hepatite C.
Em
Fevereiro de 2015, Paulo Macedo anunciou um acordo inédito que permite ao
Estado só serem pagos os tratamentos de doentes que fiquem mesmo curados. “Os
protocolos de partilha de risco garantem que os medicamentos passam a chegar a
todos os doentes, a um preço mais comportável”, resume Gabriela Sousa. Enquanto
têm de pagar os medicamentos na integra, as aprovações de prescrições acabam
por ser mais limitadas. “O que dizemos aos médicos é para fazerem o pedido,
para ficar tudo documentado”. No caso da hepatite C, antes do acordo, os
medicamentos são estavam a ser dados a doentes em risco de morte eminente.
O
Infarmed reconhece o atraso na avaliação de comparticipações, mas sublinha que
estão em curso medidas corretivas no sentido de tornar todo o processo mais
ágil. Recentemente foi nomeada a Comissão de Avaliação de Tecnologias de Saúde,
com cem peritos nas diversas áreas e que irá garantir mais celeridade a um
processo que contava com uma equipa muito reduzida, informa o regulador, que
atribui a demora à complexidade dos processo e não a motivos económicos. Para
quem está no terreno, a perceção é diferente. Em áreas com menos doentes, como
por exemplo cancro do rim, a inovação tem sido comparticipada mais depressa do
que noutras onde existem mais casos, como próstata, pulmão ou mama, diz
Gabriela Sousa.
Se
os especialistas reconhecem a importância de perceber se os medicamentos são ou
não vantajosos e de negociar com a indústria e conseguir baixar os preços para
o SNS ser sustentável, consideram que a atual situação acaba por ser igualmente
incomportável. Os hospitais acabam por gastar mais e não têm dinheiro e têm de
ser os médicos a gerir as frustrações e os doentes a ter de orientar-se no meio
do sistema. “Os doentes tentam perceber onde é que podem aceder a medicação e
geralmente conseguem aceder com dificuldades, mas conseguem”, explica Gabriela
Sousa, admitindo outro problema nesta lógica de lidar com a inovação: os menos
informados ou que se mexem menos acabam por correr o risco de ficar para trás.
Vítor Veloso é mais duro: “Há mortes que podiam ser evitadas ou pelo menos
doentes que podiam ter um tempo de sobrevivência maior e com qualidade de
vida.”
Ver
para lá da sobrevivência Se os valores pedidos pelas farmacêuticas são cada vez
mais elevados, quando se pensa apenas em ganhos de sobrevivência de dias e
semanas, parecerão ainda mais descabidos. É certo que há produtos com
benefícios ligeiros, mas Gabriela Sousa defende que não se pode ter apenas em
conta o aumento da sobrevivência. Ao contrário do que se passou com a chegada
de novos medicamentos para a hepatite C, nenhum destes novos fármacos na área
do cancro garante curas de 90% nem é expectável que isso venha a acontecer.
“Era bom que estivéssemos aí, mas não estamos. Nenhum destes medicamentos é
curativo, sobretudo porque os ensaios são feitos nas fases mais avançadas das
doenças. Mas os resultados vão além disso, trata-se de dar qualidade de vida,
de o doente aguentar mais tempo, de sobreviver para mais uma etapa, para ir ao
casamento de um filho. São expectativas que deixam as pessoas mais
confortáveis”, explica.
Repensar
o modelo Uma mudança no modelo de comparticipação dos medicamentos é o repto. O
IPO de Lisboa é neste momento um dos hospitais com mais dificuldades na
introdução de inovação. Francisco Ramos, presidente do instituto, reconhece
alguma demora mas garante que todos os pedidos fundamentados são aprovados e
explica que a despesa com medicamentos neste hospital está a crescer mais de
dois dígitos este ano também por causa da inovação.
Para
o responsável, o problema existe, mas não pode ser visto apenas como “preto ou
branco” e a culpa das negociações demoradas tem, no seu entender, duas partes.
“Quando se diz que o Estado empata para poupar dinheiro, também se pode dizer
que as farmacêuticas o fazem para vender os medicamentos. Na atual situação,
também têm vantagens: enquanto não há comparticipação vão vendendo ao preço
pedido. Menos, mas vendem”
Quando
finalmente surgem decisões, já depois de os hospitais terem gasto milhões, os
preços dos medicamentos chegam a ser reduzidos a metade, com a garantia às
farmacêuticas de que vão ser tratados um determinado número de doentes. É essa
a moeda de troca.
Mais
uma vez, o dossiê da hepatite C acaba por ser uma referência da margem que
existe para negociar. As negociações entre Infarmed e farmacêutica levaram mais
de um ano. Os valores finais nunca foram tornados públicos porque as
farmacêuticas mantêm os preços iniciais nas embalagens para os valores
definidos num país não influenciarem os preços noutros mercados. Segundo foi
possível apurar na altura, entre afirmações oficiais e oficiosas, o medicamento
começou com um preço de 48 mil euros/mês por doente e foi comparticipado pelo
Estado a cerca de 20 mil.
Na
conferência organizada recentemente pelo ministério da Saúde sobre a reforma do
SNS, Francisco Ramos deixou publicamente uma proposta para começar a gerir um
pouco melhor o problema da inovação, que se vem tornando cada vez mais central
nos sistemas de saúde de todo o mundo: para tornar todo o processo mais célere,
e garantir equidade, o administrador defende que não devia haver um regime de
compra antes da comparticipação através de autorizações de utilização especiais
mas uma disponibilização gratuita dos medicamentos por parte das farmacêuticas
até haver um acordo entre as partes, tal como os laboratórios hoje já têm
alguns programas de utilização de medicamentos sem custos nomeadamente quando
os hospitais participam nos ensaios clínicos da medicação.
O
assunto está na agenda, só falta perceber qual será o rumo. Noutros países,
atribuiu-se um valor ao tempo de vida com qualidade que os medicamentos
garantem. Em Inglaterra, definiu-se o limite de 18 mil euros por ano de vida
com qualidade ganho. Se os medicamentos custam mais do que isso, há mais
restrições à sua comparticipação: tem de haver mesmo razões muito fortes.
Em
Portugal, nunca foi demonstrada intenção política de ir por esse caminho. Paulo
Macedo quis forçar negociações conjuntas na Europa por causa da hepatite C mas
não conseguiu. O ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes propôs este ano a
criação de um fundo que ajudasse a financiar a entrada de inovação nos
hospitais, com patrocínio das farmacêuticas. Campos Fernandes disse mesmo que,
em vez de os laboratórios darem tantos patrocínios diretos a profissionais,
parte poderia ser alocado à inovação. Do lado da indústria, a proposta não foi
bem vista. “Há vários modelos que podíamos implementar. Vai sempre dar ao
mesmo: de um lado a indústria a querer ganhar o máximo possível e o Estado a
querer pagar o menos possível. Como encontrar o meio-termo para os doentes
terem acesso é o desafio. Mas temos de ter consciência de que há estes dois
grandes poderes”, conclui Gabriela Sousa.
Fonte:Jornal
I
Imagem:netconsumo
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