quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Macroscópio – Ainda precisamos de discutir a liberdade? Parece que sim

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
Freedom of Speech, de Norman Rockwell

Que valor tem a liberdade? Até onde podemos expressar livremente as nossas opiniões sem corrermos o risco de ser linchados porque alguém se sentiu ofendido? Que valor damos à liberdade quando a contrapomos a outros valores sociais? Seremos realmente livres se estivermos presos a conveniências, limitados por convenções, aferrados a calculismos, submetidos a lógicas de grupo ou de tribo?
 
Vieram-me algumas destas questões à cabeça ao ler algumas notícias dos últimos dias, ao tomar nota de algumas tomadas de posição – ou da falta delas – e ao tropeçar no último parágrafo da mais recente crónica de António Barreto no Diário de Notícias, Segredo de injustiça. Depois de lamentar a forma como os alinhamentos partidários domesticaram a discussão sobre os incêndios florestais, o sociólogo interroga-se: “Que é feito dos homens livres do meu país? Estão assim tão dependentes da simpatia partidária, dos empregos públicos, das notícias administradas gota a gota, dos financiamentos, dos subsídios, das bolsas de estudo e das autorizações que preferem calar-se? Que é feito dos autarcas livres do meu país? Onde estarão eles no dia e na hora do desastre? Talvez à porta do partido quando as populações pedirem socorro e conforto.”
 
Mas se em Portugal são estes silêncios (ou estes alinhamentos) que incomodam, se ainda há poucas semanas discutíamos o direito de Gentil Martins expressar livremente as suas opiniões, mesmo as mais controversas, a verdade é que a discussão sobre até que ponto se podem expressar opiniões diferentes das dominantes é bem mais antiga em países como os Estados Unidos, onde alguns casos recentes vieram chamar a atenção para situações que muitos consideram serem limitações à liberdade de expressão.
 
O caso mais conhecido foi o despedimento de um engenheiro da Google por ter escrito um memorando anónimo – que pode ser lido aqui: “Google’s Ideological Echo Chamber” – onde defendia, entre outras coisas, que podia haver bons motivos para as mulheres estarem sub-representadas em certo tipo de postos dirigentes nas indústrias de Silicon Valley. Para evitar ser penalizada pela discussão em torno de um conjunto de ideias contra-corrente a Google preferiu dispensar o seu engenheiro. O outro caso envolve uma atriz e realizadora de Hollywood, conhecida pela sua militância esquerdista, Lena Dunham, que numa viagem na American Airlines escutou uma conversa privada entre dois funcionários da companhia que considerou “transgenerofóbica” (penso que é assim que a palavra se escreve), decidindo partilhar a sua indiscrição no Twitter. Apesar de se tratar de uma conversa privada e nenhum dos funcionários em causa ter perturbado qualquer passageiro, a companhia resolveu abrir-lhes um processo. A National Review junta os dois casos em Lena Dunham and Google Demonstrate Why Our Free Speech Culture Is Slipping Away, um texto onde se escreve que há uma crise da cultura de liberdade de expressão nos Estados Unidos: “As the politicization of everything proceeds apace, the “company line” has increasingly moved well beyond promoting its own products to promoting a particular kind of politics. Major corporations and virtually every university in the nation are now political entities just as much as they’re commercial entities, and they wear their progressivism on their sleeves. The primary victims of this new culture of groupthink are social conservatives and other dissenters from identity politics. In field after field and company after company, conservatives understand that the price of their employment is silence.”
 
No Observador Diana Soller referiu-se também a este ambiente minado na sua interessante crónica A maldição do politicamente correto onde associou a repressão de formas de expressão não sancionadas socialmente a vitórias eleitorais de candidatos (Trump) ou de propostas políticas (Brexit) que as verbalizem: “Uma sociedade que é obrigada a autocensurar-se permanentemente, acumula ressentimentos entre grupos sociais. Muitos. E mais tarde ou mais cedo esses ressentimentos vão ter consequências políticas. Também não vale a pena dizer que parte (não se consegue medir quanto) da vitória de Trump e o sucesso de outros populistas se deve ao facto de estes dizerem o que parte da população pensa, mas engole como se fosse um sapo.”
 
A desvalorização de um valor como a liberdade é também o mote de um interessante artigo do El Pais, 50 años, onde se estabelece um paralelo entre os que, em países livres como Espanha (ou Portugal, ou França), defendem o regime venezuelano, com aqueles que há cinco décadas, em países igualmente livres, defenderam as ditaduras comunistas ou o maoismo. É como se a história se repetisse: “Hace 50 años se produjo un momento de confusión dramática en gran parte de la izquierda europea. Quienes mejor lo percibieron fueron los jóvenes e intelectuales que lograban evadirse de países bajo la disciplina soviética, algunos recién invadidos por la potencia disuasoria de los tanques. Al llegar a los paraísos soñados en Europa, París por ejemplo, estos expatriados checos o polacos se topaban con que los chicos universitarios de su edad en los países libres estaban fascinados por las mismas dictaduras de las que ellos huían convencidos de que eran la solución a las carencias de sus democracias insatisfactorias. Esa No Satisfaction les llevaría, una vez reconocidos los crímenes y las persecuciones del totalitarismo que admiraban, a dar una gran zancada ideológica hacia adelante y consagrar a Mao como el timonel de su revuelta casera. Pocas veces un error de percepción fue tan grotesco como para permitir que murieran miles de personas por no romper el dogma que sostenía unos pósteres molones.”
 
(A propósito do que se está a passar na Venezuela deixem-me chamar a atenção para o mais recente Conversas à Quinta, Venezuela ou a história de como se destrói um país, com podcast aqui.)
 
J. Bradford DeLong, professor em Berkeley e antigo conselheiro da Administração Clinton, tem no Project Syndicate um texto algo provocador (e muito anti-neoliberal), The New Socialism of Fools, em que compara os movimentos anti-globalização de hoje com o anti-semitismo de há um século. Ponto comum? Encontrar um bode expiatório para a frustração das expectativas económicas: “First and foremost, it is easy for politicians to pin the blame for a country’s problems on foreigners and immigrants who do not vote. Back in 1890, when politicians in the Habsburg Empire routinely blamed Jews for various socioeconomic ills, the Austrian dissident Ferdinand Kronawetter famously observed that “Der Antisemitismus ist der Sozialismus der dummen Kerle”: anti-Semitism is the socialism of fools. The same could be said of anti-globalization today.
 
Aproveito esta deixa para passar para um plano mais geral, mas tomando agora como referência a forma como classificamos os regimes políticos. Ao fazê-lo um académico israelita, Yoram Hazony, escreveu no Wall Street Journal um texto que considerei especialmente estimulante: There’s No Such Thing as an ‘Illiberal’. É um texto que nos desafia, sobretudo a quem, como é o meu caso, tem recorrido com frequência a essa designação, muito na esteira de um artigo de Fareed Zakaria de 1997, na Foreign Affairs, “The Rise of Illiberal Democracy”. Ora Yoram Hazony considera que entretanto o termo iliberal passou a designar coisas muito diferentes, o que contesta: “No reasonable purpose is served by lumping together totalitarians, autocrats, conservatives and democratic nationalists”. Na sua opinião “The politics of liberals vs. illiberals, if adopted as the basis for public discourse, will mean the end of the old democratic system of two legitimate political parties. A few conservatives, hoping to maintain their standing in the face of increasing intolerance, will break left, framing their support for human rights and economic growth as a form of liberalism. But most conservatives will continue to see nationalism and religion—no less than individual liberty and the free market—as indispensable in maintaining a strong and free nation. They will find themselves members of an illegitimate party, even as journalists and public intellectuals discover that, for them, stamping out illiberalism is simply more important than maintaining a two-party system of democratic government.”
 
Mesmo assim não abandonemos já esta classificação, até porque alguns regimes são bem descritos por ela, razão porque termino as minhas recomendações de hoje com um texto de Daniel Gros, director do Center for European Policy Studies de Bruxelas, publicado pelo Project Syndicate: Why Are Illiberal Democrats Popular? O curioso neste texto é que defende a ideia de que o sucesso de alguns regimes autoritários, como o russo e o turco, é em boa parte fruto das suas políticas económicas ortodoxas ou mesmo liberais: “Illiberal strongmen have nonetheless accepted the basis of the Washington Consensus – that prudent macroeconomic policies deliver better economic performance in the long run – and have usually delegated macroeconomic management to apolitical experts.” Acontece porém que raramente o autoritarismo resiste a interferir na economia (o que Putin e Erdogan já de resto estão a fazer), o que leva o autor a notar que “Today’s European strongmen have retained popular support by maintaining the relative economic freedom on which long-term prosperity depends. But as these regimes become increasingly authoritarian, their ability to keep voters happy is becoming more and more doubtful.”
 
E por hoje é tudo. Espero ter-vos deixado um leque bastante variado de opiniões suficientemente desafiantes para resistirem mesmo à nortada que sopra forte por estes dias. Tenham bom descanso.

 
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