Passaram quase três semanas sobre as eleições para a distrital de Lisboa do PSD mas nem tudo estava ainda contado. Faltava conhecer as manobras de bastidores dos caciques da capital, a forma como arrebanhavam eleitores e votos. É essa história, ou aquilo que dela já se conseguiu descobrir, que hoje o Observador lhe conta em Carrinhas, listas e cacicagem. Todos os detalhes da guerra pelo poder no PSD/Lisboa. Já hoje de manhã o Miguel Pinheiro lhe falou desta grande reportagem no 360º, o Macroscópio retoma o tema para acrescentar elementos de reflexão. Afinal não devemos, não podemos, ficar indiferentes à forma como os grandes partidos do sistema decidem internamente quem são os seus líderes, sabendo nós que depois serão esses mesmos os protagonistas da nossa democracia.
“Militantes que nunca pagaram quotas e votaram sem saber em quem. Carrinhas a descarregar eleitores à porta do hotel. As tácticas dos caciques. E as manobras das fações rivais na guerra pelo PSD/Lisboa.” – assim se introduz esse trabalho onde se procura contar tudo, apenas um entre vários sendo também importante ver os Vídeos. Como os caciques do PSD/Lisboa angariam votos, pois o Observador “filmou as eleições internas do PSD para mostrar o lado escondido dos partidos: as carrinhas de transporte de militantes, o controlo artificial das votações e a participação dos notáveis”. Foi um trabalho jornalístico original e importante, cujos Bastidores também revelamos num pequeno vídeo sobre como fizemos esta grande investigação aos caciques do PSD/Lisboa.
Mas aquilo que lhe contamos é apenas uma amostra de como se conquista e conserva o poder no interior dos dois maiores partidos portugueses. Em Caciques. Uma dentadura por votos e outros esquemas nas lutas internas do PS e do PSD, Vítor Matos, o editor de Política do Observador, parte de um livro que editou há dois anos – Os Predadores - Tudo o que os políticos fazem para conquistar o poder – para recordar algumas das muitas histórias mais escabrosas de PSD e PS, histórias de “Chapeladas, manipulações e outras vigarices que os políticos fazem para conquistar o poder. Na luta pela sobrevivência, são os predadores mais aptos ou os camaleões mais dissimulados que têm vantagem sobre os ingénuos e os bem-intencionados.”
É com base nesse conhecimento sobre os bastidores das lutas internas nos partidos que, nesse Especial do Observador, Vítor Matos escreve que em quase todas as disputas partidárias internas no PS e no PSD se regista uma “inversão da lógica da democracia: não são os militantes que escolhem os dirigentes em quem votar. São os dirigentes dos partidos que escolhem os militantes para votar em si próprios, de modo a sustentarem o seu poder. Este mundo funciona assim: o dirigente político seleciona o seu próprio universo eleitoral, cria-o à sua medida, para que este depois o escolha a si como líder. Um rival que se queira bater com um possuidor de um sindicato de votos dominante não pode simplesmente apresentar-se a eleições com um programa e uma equipa credível: tem de constituir um colégio eleitoral paralelo que lhe garanta mais votos do que o universo do adversário. Esta escalada leva a que todos os que quiserem subir dentro de um partido tenham de participar ou pactuar em esquemas destes.”
Aliás foi precisamente este tipo de problemas que hoje discutimos na conversa a três a que chamamos BICA. Nela o Vítor Matos, o Miguel Pinheiro e eu próprio procuramos responder à questão de saber se o poder dos caciques está a destruir os partidos?
Já Rui Ramos escreve na sua crónica de hoje que, no fundo, aquilo com que estamos confrontados é com A democracia vista por baixo: “Elegemos representantes cujos primeiros compromissos não são com os cidadãos, mas com os caciques dos partidos. Vista de baixo, a democracia não é a participação de todos, mas a organização de alguns”. Invocando a sua experiência como historiador e recordando histórias semelhantes que já vêm do liberalismo do século XIX, histórias que até foram retratadas por José Malhoa num quadro famoso (reproduzido abaixo), Rui Ramos considera no entanto que o caciquismo à portuguesa no pós-25 de Abril não deixa de ter características próprias: “Há cem anos, até no Partido Social Democrata alemão, como demonstrou Robert Michels, vigorava a “lei de ferro da oligarquia” (em qualquer organização, por mais democrática, uma elite especializada acaba sempre por impor-se à maioria). O que é então característico do actual caso português? Talvez o papel do Estado na emergência e no funcionamento da oligarquia partidária. Os partidos agora existentes foram construídos de cima para baixo, sem excepção.”
O livro de Robert Michels a que Ramos se refere é Para uma Sociologia dos Partidos Políticos e, felizmente, tem uma edição em português relativamente recente (Antígona, 2001). É nele que Michels (1876-1936), um sociólogo que chegou a colaborar com Max Weber, desenvolve a sua ideia sobre a “lei de bronze da oligarquia” partidária e sindical, notando o editor português que, “se bem que os dados sobre os quais se apoia este estudo tenham a provecta idade de aproximadamente um século o facto é que deles resulta um diagnóstico que mantém a mais impiedosa actualidade.”
Mas se isto se passa no interior dos partidos existentes, porque não surgem novas formações políticas? A pergunta tem tanta ou mais razão de ser uma vez que a estabilidade, mesmo a rigidez, do nosso sistema político é caso quase único na Europa. O politólogo Pedro Magalhães chamou-lhe mesmo La excepción portuguesanuma comunicação que apresentou num congresso em Espanha. Eis como sintetiza a sua análise: “Los países del sur de Europa cruzaron profundas crisis económicas en los últimos años. En todos ellos, el sistema político – partidista sufrió transformaciones: alta volatilidad electoral, debilitamiento de los partidos convencionales, emergencia de partidos “anti – establishment”, y aumento de la fragmentación del sistema de partidos. ¿En todos? No: Portugal parece haber pasado por alto esas transformaciones. El número efectivo de partidos parlamentarios en Portugal es inferior hoy de lo que era en el 2009. Más del 95% de los votos en 2015 fueron para partidos que ya existían en 2009 o, estrictamente hablando, en 1999. ¿Qué es lo que explica esta “excepción portuguesa”? Esperamos contar con trabajos que bien, sean desde una perspectiva de la demanda (actitudes y comportamientos políticos de los ciudadanos), sean desde el lado de la oferta (discursos y estrategias partidistas) ayuden a explicar este fenómeno, especialmente desde un punto de vista comparado.”
Este tema tem também sido recorrente na coluna que Nuno Garoupa mantém no Diário de Notícias, Terças-Feiras Do Contra. Numa dessas colunas, intitulada PRD porque parte precisamente do único caso de um partido que rompeu a arrumação partidária pré-existente (mas por pouco tempo), analisa precisamente os “enquadramentos institucionais que penalizam o aparecimento de novos partidos”. Exemplos: “uma legislação eleitoral que desfavorece novos movimentos (proibindo-se listas de independentes e complicando juridicamente a formação de um novo partido), o financiamento público (que favorece descaradamente os partidos instalados), o acesso à comunicação social (preponderância de comentadores e analistas dos partidos instalados ou as habituais peripécias pré-eleitorais sobre debates que pretendem apenas pressionar as escolhas tradicionais), presença asfixiante dos incumbentes em todas as instituições do Estado (tipo Comissão Nacional de Eleições).”
Nuno Garoupa, já foi noticiado, poderá estar a discutir com outros académicos a possibilidade de criação de um novo partido, mas isso não deve desmerecer as suas reflexões. Reflexões que, na minha perspectiva, ganham em ser complementadas com a leitura de três livros recentes que, mesmo sem entrarem no pequeno submundo dos caciques, ajudam a pensar o nosso sistema político. Como o tempo é de férias e dois deles até são ensaios curtos, aqui ficam as referências:
- O sistema político português, de Manuel Braga da Cruz, saído na colecção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos, e que é uma “análise crítica dos sistemas eleitoral, partidário, parlamentar e de governo em Portugal. O autor defende uma reforma do regime.”
- Partidos e sistemas partidários, de Carlos Jalali, também publicado na mesma colecção de ensaios e que partindo da pergunta “Os partidos políticos são todos iguais?”, explica depois “como surgiram e se desenvolveram os partidos políticos em Portugal”.
- O Sistema Eleitoral Português – Crónica de uma Reforma Adiada, de Nuno Sampaio, assessor políticos do anterior e do actual Presidente da República, uma edição da Aletheia que se debruça sobre a forma como elegemos os nossos deputados, recordando as várias tentativas de reforma do sistema eleitoral que, mesmo quando estudas e debatidas, nunca reuniram consenso político suficiente para avançarem.
Bem sei que estes temas podem parecer algo duros para um fim-de-semana de Verão, mas como não podemos apenas encolher os ombros depois de ver os vídeos da investigação do Observador, aqui vamos deixando algumas sementes a ver se um debate mais construtivo algum dia consegue germinar. De resto, tenham bom descanso, aproveitem o bom tempo que se anuncia para os próximos dias.
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