sábado, 2 de março de 2019

Macroscópio – Ora vamos lá fazer um intervalo. Para olhar para mais longe

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Hoje é dia desta newsletter não ter um só tema, antes abordar diferentes assuntos de acordo com um critério único: são boas leituras, algumas delas realmente inspiradoras e podem ajudar a ocupar as longas horas de um fim-de-semana que, para muitos, deverá prolongar-se até à próxima terça-feira.
 
A primeira história que escolhi é extraordinariamente curiosa. Trata-se da reconstituição detalhada, apaixonante, da forma como um aristocrata holandês, negociante de arte, identificou e, no fundo, descobriu, uma pintura do grande Rembrandt. Russell Shorto contou-a no Magazine do New York Times, em Rembrandt in the Blood: An Obsessive Aristocrat, Rediscovered Paintings and an Art-World Feud. É uma verdadeira aventura que começa numa manhã chuvosa a mais rotineira das tarefas: abrir o correio. Eis um pequeno extracto:
Six made coffee that morning, then sat down to a stack of mail. He dispensed with the bills and other annoyances first so as to settle into the catalogs of coming art auctions. One was for a December event at Christie’s in London. He skimmed it quickly, almost dismissively; it was for the daytime sale, which featured lesser objects. The top paintings and sculptures are always reserved for the evening. And then, he told me, he stopped cold. The slightly miscolored photograph in the catalog was a portrait of a rather dazed-looking young gentleman with a lace collar and a proto-Led Zeppelin coif. What first spoke to Six was the gaze of the subject (...): “He pierces the image,” he said. Six felt that he had seen the work before, but after tearing through his library in search of it, he came to believe it wasn’t the actual image that struck him as familiar but the sum of all the telltale features of an early Rembrandt. (...) The painting dated from somewhere between 1633 and 1635. The giveaway was the particular type of lace collar, which was the height of fashion in that brief span and then quickly went out of style. What especially excited Six was not just that Christie’s had failed to see that the painting was most likely from the hand of the master, but also that the auction house had labeled it “circle of Rembrandt” — i.e., from a follower. “You see the problem, right?” he asked me. I was puzzling for the solution to the riddle when he blurted it out: “Rembrandt wasn’t famous yet in the early 1630s, so there was no circle. I knew right away Christie’s had screwed up.” From there, Six was a bloodhound on the trail. 
 
Como interessante complementar recomendo esta peça do El Pais, Así sonaba la voz nasal de Rembrandt, que na verdade é uma peça que nos dá acesso a registos sonoros preparados por “Expertos forenses [que] reconstruyen el timbre del maestro holandés a partir de su salud, su carácter y sus autorretratos”.
 

Deixem-me agora regressar a Portugal mas mantendo-me na aristocracia – não na aristocracia de sangue azul, mas naquela aristocracia que é a nossa rarefeita meritocracia, neste caso representada por um grande senhor chamado Alexandre Soares dos Santos. Tem hoje 85 anos, já passou os comandos da Jerónimo Martins do seu filho Pedro, mas deu-me a mim e ao Nuno Vinha uma notável entrevista de vida que, passe a imodéstia, não posso deixar de recomendar vivamente: “Os pobres fizeram-se para a gente os transformar em classe média”. Vale a pena citar na íntegra a resposta de onde saiu este título com o seu quê de desafiador:
Eu sou cristão, não tanto católico. É os valores, o respeito pela pessoa humana. É o respeito pela lei, percebe? A seriedade da sua conduta. Não tenho nada a ver com os pobres, os pobres fizeram-se para a gente os transformar em classe média e depois subirem se possível. É para isso que a gente luta. Mas não é o ‘pobre, tem que ser ajudado, coitadinho’, porque isso é ajudá-lo a ser pobre. E nisso discordo profundamente da Igreja Católica. As empresas que não fazem lucro não podem fazer nada. As que fazem lucro têm de dividi-lo pelo acionista e pelas pessoas que trabalham na companhia, e pelo investimento. Por isso estou farto de propor — farto! — de propor a diferentes primeiros-ministros e ministros das Finanças que criem leis que me permitam distribuir dividendos a quem trabalha e não posso. O nosso sistema é estúpido.
 

Como já faço parte daquela categoria de portugueses a que chamam sexagenários, lembro-me bem de um evento de há 50 anos que esta semana recordámos: o tremor de terra de 28 de Fevereiro de 1969, o mais violento sentido em Portugal em todo o século XX. Lembro-me de acordar (tinha 11 anos), de o meu pai – que era investigador na Faculdade de Ciências – nos explicar o que se tinha passado, o que nos permitiu voltar para a cama e dormir o resto da noite sem fugir para a rua em pijama como tanta gente fez nessa noite e a Marta Leite Ferreira recordou no especial do Observador Há 50 anos, “o fim do mundo” passou em Portugal. O dia em que um sismo devastador matou 13 pessoas. É um texto onde se explica, nomeadamente, que “Terá sido o Algarve “a província mais assolada pelo tremor de terra”, disse o Jornal de Notícias. “Da ponta de Sangres à foz do Guadiana, uma onda de pavor e destroços” registou-se em todo o sul do país. “Às três horas e 42 minutos, o velho relógio do Arco da Vila, em Faro, parou como que a cronometrar o momento dramático por que todos os algarvios passaram”. “Foram 126 segundos, que pareceram horas infindáveis, durante os quais o sismo com bateria infernal foi marcando crescendos enervantes, temerosos”, concluiu o jornal. Centenas de casas caíram. O Século concluiu até que “o fim do mundo passou pelo Algarve”. A culpa? “A utilização de argamassa pobre em argila” nas construções.”
 
Ainda sobre esse tremor de terra gosta de destacar a Grande Reportagem que a SIC emitiu na passada quinta-feira, "Tremendo Portugal": está o país preparado para um grande sismo?, um trabalho centrado no que está bem e, sobretudo, no que está mal no nosso país no que se refere à prevenção de uma grande tragédia caso ocorra um novo terramoto como o de 1755.
 

Continuando a falar de ciência, mais duas leituras que levantam problemas muito interessantes. A primeira, Our Twisted DNA, um texto de Tim Flannery na New York Review of Books, parte de um livro, She Has Her Mother’s Laugh: The Powers, Perversions, and Potential of Heredity, de Carl Zimmer, para abordar um conjunto muito diverso de temas relacionados com a genética e a hereditariedade. Não é possível resumir a sua riqueza, mas é possível deixar aqui o alerta com que termina:
With both CRISPR and gene drive technologies becoming more powerful by the year, we must look to visionaries to comprehend its potential. George Church, a geneticist at Harvard and MIT, believes that CRISPR will inevitably be used to create genetically “superior” humans. Alterations to our genome will creep in the door through the treatment of diseases, he says. Imagine if gene editing can be used to treat wasting muscles, or Alzheimer’s, or to prevent HIV infection (as was allegedly done to a pair of unborn twins recently in China)—how long would it be before those same techniques are used to create super-muscles or super-cognition? Church is rightly concerned about CRISPR’s potential to permanently alter human gene lines, as are other scientists. Marcy Darnovsky, the executive director of the Center for Genetics and Society, thinks it will lead to an “unregulated marketplace” in which gene editing, which can inflict harm on unborn children, will run rampant. Given the history of earlier misunderstandings of inheritance that Zimmer relates, it’s a warning we better take seriously.
 

O outro texto é da The Atlantic e tem imensa informação sobre os avanços da ciência no que se refere à forma como os animais percecionam e sentem o mundo à sua volta. A ideia de que só os mamíferos têm “sentimentos” há muito que foi abandonada, como conta Ross Andersen em A Journey Into the Animal Mind. E não famos apenas de aves ou peixes, “Lab-bound honeybees [abelhas] can learn to recognize abstract concepts, including “similar to,” “different from,” and “zero.” Mas este é apenas um exemplo de que “This idea that animals are conscious was long unpopular in the West, but it has lately found favor among scientists who study animal cognition. And not just the obvious cases—primates, dogs, elephants, whales, and others. Scientists are now finding evidence of an inner life in alien-seeming creatures that evolved on ever-more-distant limbs of life’s tree. In recent years, it has become common to flip through a magazine like this one and read about an octopus using its tentacles to twist off a jar’s lid or squirt aquarium water into a postdoc’s face. For many scientists, the resonant mystery is no longer which animals are conscious, but which are not.”

 
Não seleccionei para este Macroscópio temos capazes de suscitar grandes preocupações, mas houve um sobre o qual decidi abrir uma excepção: o regresso do anti-semitismo à Europa. Fi-lo primeiro porque encontrei no El Pais Semanal uma excelente reportagem, El nuevo odio a los judíos en Francia, que é basicamente uma recolha de testemunhos, alguns deles realmente inquietantes mas que permitem compreender porque há judeus a abandonar aquele país. Com efeito “El asesinato en París de una superviviente de la persecución nazi de 85 años se suma a un goteo incesante de actos y crímenes antisemitas. En la principal comunidad judía de Europa, algunos piensan en mudarse a otras ciudades o en emigrar a Israel. Francia los escucha, pero no saben si será suficiente para combatir una forma de odio impulsada ahora por el islamismo violento”. Uma das histórias contadas neste trabalho é da Nathaniel Azoulay (na fotografia), que em resumo é a seguinte: “El 22 de febrero de 2017, Nathaniel y Jacob Azoulay iban conduciendo cuando una furgoneta empezó a cruzárseles de forma peligrosa. En un semáforo en rojo, el hombre les empezó a insultar. “¡Sucios judíos! ¡Gilipollas! ¡Vais a morir!”. Al aparcar en un bar para hablar con él, fueron rodeados por seis hombres. Uno de ellos sacó una sierra y los hirió.”

 
Ao mesmo tempo, do outro lado do Canal da Mancha, como se as divisões causadas pelo Brexit não fossem suficientes, a liderança trabalhista tem sido acusada de anti-semitismo, e essa foi mesmo uma das razões invocadas pelos deputados que recentemente abandonaram a bancada pera formarem o Grupo Independente. Roger Cohen, do New York Times, tem em Jeremy Corbyn’s Anti-Semitic Labour Party uma boa explicação daquilo que é intolerável no discurso do líder dos trabalhistas: “There’s nothing anti-Semitic about sympathy for the Palestinian cause or support of Palestinian statehood or disdain for the rightist government of the Israeli prime minister, Benjamin Netanyahu, and its kick-the-can policies to prolong or eternize the occupation of the West Bank. That should be obvious. But where anti-Zionism crosses into anti-Semitism should also be obvious: dehumanizing or demonizing Jews and propagating the myth of their sinister omnipotence; accusing Jews of double loyalties as a means to suggest their national belonging is of lesser worth; denying the Jewish people’s right to self-determination; blaming through conflation all Jews for the policies of the Israeli government; pursuing the systematic “Nazification” of Israel; turning Zionism into a synonym of racism.
 

Para o fim deste Macroscópio, que já vai um pouco longo, guardei mais um texto da The Atlantic que me pareceu muito a propósito de irmos (muitos de nós) ter alguns dias de descanso. Trata-se de uma crítica à obsessão pelo trabalho, uma obsessão gerada por necessidades sempre novas que fizeram fracassar a previsão de John Maynard Keynes que, em “Economic Possibilities for Our Grandchildren”, achava que o desenvolvimento tecnológico permitiria que no nosso século XXI só trabalhássemos o equivalente 15 horas por semana: “For the first time since his creation man will be faced with his real, his permanent problem, how to occupy the leisure”, escreveu Keynes e recorda Derek Thompson em Workism Is Making Americans Miserable. Não é bem isso que aconteceu, nem se prevê que venha a acontecer, o que leva este autor a notar que, no fundo, vivemos (e digo vivemos, porque nisto não seremos muito diferentes dos americanos) numa grande contradição: “On a deeper level, Americans have forgotten an old-fashioned goal of working: It’s about buying free time. The vast majority of workers are happier when they spend more hours with family, friends, and partners, according to research conducted by Ashley Whillans, an assistant professor at Harvard Business School. (...) How quaint that sounds. But it’s the same perspective that inspired the economist John Maynard Keynes to predict in 1930 that Americans would eventually have five-day weekends, rather than five-day weeks. It is the belief—the faith, even—that work is not life’s product, but its currency. What we choose to buy with it is the ultimate project of living.”
 
Achei que era um bom tema de reflexão para uns dias de descanso (ou mesmo de folia) passados com os amigos ou em família. Os leitores do Macroscópio ajuizarão. Eu, por mim, despeço-mo com votos de um bom fim-de-semana... alargado.

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