O tema do Macroscópio de hoje é uma polémica – e além disso é polémico pois também envolve o Observador. Em causa está um episódio ocorrido na passada sexta-feira em Washington. Um daquele micro-casos que se transformam num fenómeno viral e depois numa discussão sem fim. O que se passou foi que um ativista indígena e um estudante do Kentucky estiveram longos segundos – minutos – frente a frente, a centímetros um do outro. Como chegaram aquela situação? Quem provocou quem? O que aconteceu realmente? Nada disto teria importância não se desse a circunstância do jovem, e dos seus colegas de um colégio católico, usarem bonés vermelhos com o slogan de campanha de Trump, o tornou tudo político numa América polarizada até ao extremo. Mas o caso tem aspectos interessantes de que devem tirar-se lições.
Primeiro que tudo, ao princípio todos se enganaram. O primeiro vídeo que foi divulgado nas redes sociais só mostrava o momento em que o velho índio e o jovem estudante se enfrentavam e dele parecia depreender-se que os estudantes estavam a troçar do ancião, para mais um veterano de guerra. Não tardaram a chover as críticas, vindas de todos os sectores, incluindo de apoiantes de Trump. Até a diocese da escola onde andam os jovens os criticou (Kentucky Catholic diocese condemns teens who taunted vet at March for Life). A primeira notícia do Observador – Incidente entre adolescentes com bonés com slogan de Trump e ancião índio em Washington torna-se viral – ainda reflecte esta aproximação, apesar de ter sofrido várias correcções ao longo do tempo, como se assinala no fim, e de o seu título original ter sido alterado. Contudo, ao longo do fim de semana foram aparecendo mais vídeos que permitiam ver o que se tinha passado a partir de outros ângulos, vídeos esses que davam credibilidade ao depoimento do jovem estudante e obrigaram o líder índio a corrigir as suas declarações iniciais à imprensa de Washington. Na segunda-feira o Observador publicou um segundo artigo, Provocação ou exagero? Novas imagens lançam dúvidas sobre incidente com índio, onde se dava conta de todos estes novos dados. Esse artigo disponibiliza os vídeos, pelos que os leitores podem fazer o seu julgamento sobre o comportamento dos diferentes grupos, mas seja qual for a avaliação que se faça do comportamento do grupo de estudantes esta já não pode ser a de radical e unânime condenação.
A imprensa americana também reconheceu, mesmo que nalguns casos a contragosto, o erro das primeiras avaliações e já foram publicados alguns textos interessantes que abordam o que se passou. Sobre a forma como se foi tomando consciência do que se terá realmente passado junto ao memorial de Lincoln, é interessante ler o testemunho de Rod Dreher, um jornalista da The American Conservative que assistiu a tudo a partir de Dublin e que, em The Catholic Bonfire At The Stake, conta como “It is really interesting to observe US public controversies from outside the American bubble.” Eis a sua conclusão: “From what I can tell from over here, what is being reported about the Covington Catholic boys appears to be almost 100 percent Fake News. I started out ready to condemn those boys, but after watching more videos of the entire incident, I changed my mind. I am willing to revise this opinion if more facts come forward, and I welcome your e-mailing them to me.”
É uma atitude de humildade que também encontrei em Julie Irwin Zimmerman da de The Atlantic, sendo que este é mesmo mais taxativo, confessando que I Failed the Covington Catholic Test e pormentendo que “Next time there’s a viral story, I’ll wait for more facts to emerge”. Vejamos um pouco melhor as lições que tira deste caso: “If the Covington Catholic incident was a test, it’s one I failed—along with most others. Will we learn from it, or will we continue to roam social media, looking for the next outrage fix? Next time a story like this surfaces, I’ll try to sit it out until more facts have emerged. I’ll remind myself that the truth is sometimes unknowable, and I’ll stick to discussing the news with people I know in real life, instead of with strangers whom I’ve never met. I’ll get my news from legitimate journalists instead of from an online mob for whom Saturday-morning indignation is just another form of entertainment. And above all, I’ll try to take the advice I give my kids daily: Put the phone down and go do something productive.”
Na mesma The Atlantic Ian Bogost vai até um pouco mais longe, ao propor: Stop Trusting Viral Videos. O que nos começa por explicar neste texto é que a imagem é facilmente um logro: “Film and photography purport to capture events as they really took place in the world, so it’s always tempting to take them at their word. But when multiple videos present multiple possible truths, which one is to be believed?” É preciso pois ter cuidado pois as câmaras tanto podem mostrar como esconder: “But rather than drawing conclusions about who was vicious or righteous—or lamenting the political miasma that makes the question unanswerable—it might be better to stop and look at how film footage constructs rather than reflects the truths of a debate like this one. Despite the widespread creation and dissemination of video online, people still seem to believe that cameras depict the world as it really is; the truth comes from finding the right material from the right camera. That idea is mistaken, and it’s bringing forth just as much animosity as the polarization that is thought to produce the conflicts cameras record.”
Ora o que ali tínhamos, como recordava o Washington Post, era mesmo uma situação de extrema polarização: “The three groups that met Friday in the cold shadow of the Lincoln Memorial could hardly have been more different. They were indigenous rights activists from Michigan, Catholic schoolboys from Kentucky — some wearing Make America Great Again hats — and Hebrew Israelites from the nation’s capital.” Mas se esta polarização existe na sociedade americana, é bom estar consciente que ela hoje também contamina mesmo os órgãos de informação mais sérios. Dois bons exemplos disso são os dois textos que vou referir a seguir e que, já depois de se ter apurado que, afinal, o comportamento dos jovens não era condenável, mesmo assim estes deviam ser condenados porque estavam as usas os bonés de campanha do Trump (os bonés MAGA – Make America Great Again): The MAGA Teens Aren’t Innocent Victims, de Ruth Graham na Slate, e Trump's MAGA Hats Have Become Potent Symbol of Racism, de Issac Bailey na CNN.
Para ler uma posição bastante crítica do comportamento da imprensa, recomendo o texto de Robby Soave no site libertário Reason, The Media Wildly Mischaracterized That Video of Covington Catholic Students Confronting a Native American Veteran. Ponto por ponto procura explicar-se porque se entende que “Journalists who uncritically accepted Nathan Phillips' story got this completely wrong”. Eis uma passagem da argumentação: “Various media figures and Twitter users called for them to be doxed, shamed, or otherwise punished, and school administrators said they would consider expulsion. But the rest of the video—nearly two hours of additional footage showing what happened before and after the encounter—adds important context that strongly contradicts the media's narrative. Far from engaging in racially motivated harassment, the group of mostly white, MAGA-hat-wearing male teenagers remained relatively calm and restrained despite being subjected to incessant racist, homophobic, and bigoted verbal abuse by members of the bizarre religious sect Black Hebrew Israelites, who were lurking nearby.”
A terminar, e para ser fiel à tradição desta newsletter de propor sempre leituras mais substanciais, deixo esta discussão que apaixonou a América por estes dias (e também uma parte do Portugal mais atento a estas coisas), para vos remeter para um conjunto de artigos de grande fôlego sobre a realidade que permitiu este epifenómeno – a realidade dos smartphones, dos múltiplos vídeos, das redes sociais e dos fenómenos virais –, isto é, a realidade das grandes transformações digitais. Esse é precisamente o tema da mais recente edição do Journal Of Democracy, cujo artigo de abertura, The Road to Digital Unfreedom: The Threat of Postmodern Totalitarianism, é escrito por Larry Diamond e faz uma síntese dos interessantes (e perturbantes) ensaios que compõem este número daquela publicação. Eis a sua introdução:
Once hailed as a great force for human empowerment and liberation, social media and related digital tools have rapidly come to be regarded as a major threat to democratic stability and human freedom. Based on a deeply problematic business model, social-media platforms are showing the potential to exacerbate hazards that range from authoritarian privacy violations to partisan echo chambers to the spread of malign disinformation. Authoritarian forces are also profiting from a series of other advances in digital technology, notably including the revolution in artificial intelligence (AI). These developments have the potential to fuel a "postmodern totalitarianism" vividly illustrated by China's rapidly expanding projects of digital surveillance and social control. They also pose a series of challenges for contemporary democracies.
E por hoje é tudo. Tenham bom descanso.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário