Fernando Ribeiro e os Moonspell gostam de temas extremos que nos façam pensar. Neste álbum dedicado ao grande terramoto de 1755, cantam pelo primeira vez todo um trabalho em português. Juntam na sua obra aos sons fortes da banda, orquestrações potentes, e até há um tema com a voz do fadista Paulo de Bragança. Um trabalho que põe em causa as crenças comuns dos homens condenados a morrer numa catástrofe. O vocalista queixa-se do crescimento das religiões e fundamentalismos que sufocam a liberdade humana. Um mundo perigoso em que políticos na Polónia pretendem impedir a banda de tocar dado o seu caráter maléfico e moralmente duvidoso. Uma história da banda portuguesa mais internacional de sempre que nasceu na Brandoa, com a vontade e a garra de quem queria mais do que assistir, tocar. Hoje ensaiam no Inferno, o estúdio próprio, na Póvoa de Santo Adrião, onde decorreu esta conversa. Às vezes com tanta fé que já interromperam, sem querer, uma missa numa igreja ao lado. Como repete, divertido, Fernando Ribeiro, «nós chegamos aqui primeiro do que a Igreja».
O terramoto de 1755 é uma data importante, que marca uma rutura mesmo em termos religiosos. Há os célebres textos de Voltaire, em que ele diz ser impossível haver um Deus bondoso e permitir uma tal mortandade. É de alguma maneira um acontecimento que se encaixa na mensagem que os Moonspell costumam passar sobre a vida em geral e Deus em particular?
Penso que sim. Historicamente é de facto um momento de rutura. Portugal sempre foi um país dominantemente católico. Tal como grande parte dos países do Sul da Europa durou cá mais tempo o terror da Inquisição. Foram países que passaram pelas cismas e pelas guerras sangrentas com o protestantismo, como aconteceu em França, Inglaterra, Alemanha e Holanda. Portugal não teve essa fratura. Aqui continuava-se a vida temente a Deus, do medo das consequências e tendo uma vida intelectual mais tímida, em que não se notava tanto o interesse pela ciência e pelo pensamento, como em outros países onde começava a chegar o iluminismo. Nós estávamos estanques e parados. O que é um pouco a nossa sina, antes da Revolução de Abril também vivíamos numa ditadura que nos suspendeu no tempo. Antes do terramoto também estávamos assim. Essa catástrofe natural veio provocar, segundo a história e a filosofia, uma rutura colocando uma nação temente a Deus perante as razões de tamanha catástrofe. O Portugal laico de 2017 nasceu um pouco dessa reação. Foi um movimento lento, ainda hoje a maioria dos nossos parlamentares devem ser de confissão católica. Mas é óbvio que vivemos tempos diferentes. Anteriormente, o domínio da religião era feito pelo terrorismo puro e duro das fogueiras, hoje em dia manifesta-se muito mais pelo hábito e tradição.
Numa entrevista, declara que o terramoto de 1755 apareceu-lhe, pela primeira vez, num trabalho escolar, em que fazia de Marquês de Pombal, governante que teve um papel determinante na reação ao terramoto e que se opôs violentamente a que se atribuíssem à catástrofe razões que não fossem estritamente incidente de causas naturais, mandando queimar um padre que defendia que os portugueses tinham sido castigados pelos seus pecados e soberba.
Para além da reconstrução de Lisboa, que era aquilo que aprendíamos em História, o Marquês de Pombal teve um papel fundamental ao não deixar que a Igreja Católica tomasse conta da interpretação e ditasse o sentido da catástrofe. Se ele o tivesse permitido não poderíamos saber até onde iriam as fogueiras para além da catástrofe. Ele teve uma ação no terreno bastante diferente da superstição da fé, que lhe permitiu ter uma intervenção prática e racional na reconstrução de Lisboa e do país. Claro que eu no ensino secundário não sabia nada disto. Tinha uma professora, que ainda me lembro do nome, era a professora Júlia Duarte, que decidiu fazer uma aula um pouco diferente, em que nós assumíamos os vários papeis: eu era o Marquês de Pombal e tinha uma data de ministros que até eram um pouco críticos da minha atuação. Faziam-me perguntas e eu tinha que esclarecer aspetos da minha governação, desde a economia até à utilização das chamadas gaiolas pombalinas, para construir casas que suportassem sismos. Uns anos depois, já eu estava na Faculdade de Letras, estudei, com outro professor que me marcou mais, Viriato Soromenho Marques, o terramoto do ponto de vista das suas implicações filosóficas e as discussões que se geraram na época. Falávamos da teodiceia [Deus é omnisciente, omnipotente e omnipresente], do Voltaire, do Rosseau, do Spinoza e do Kant, conversávamos sobre imensa coisa. Passados alguns anos, as peças juntaram-se na minha cabeça e na banda. Isto tudo se iniciou como um EP, tipo um bónus. Na indústria da música muitas vezes concentramo-nos mais na sobremesa do que no prato principal. E quando compusemos as quatro primeiras canções do 1755, dissemos logo que pelo conteúdo, e pelo interesse que os Moonspell têm em eventos apocalípticos, seriam um tema que sendo local e nacional para nós tinha um grande significado.
Foi um dos maiores temas da época.
É verdade. Nós fomos ao IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera), e o terramoto de 1755 foi o maior terramoto conhecido que assolou a Europa. Os registos e a própria sismologia aconteceu depois do terramoto. No secundário não tinha noção da dimensão mundial do acontecimento. Parecia-me um acontecimento da história nacional. Nasci em 1974, e lembro-me dos meus pais contarem-me das cheias de 1967 e a dimensão da catástrofe, muito aquém do terramoto, mas esta zona onde nós estamos [estúdio Inferno dos Moonspell, na Póvoa Santo Adrião] foi bastante afetada e inundada. E em criança lembro-me também da nossa tradicional falta de resposta. Uma situação diferente de 1755, porque como nós sabemos não há maneira de evitar terramotos, apenas se podem preparar as coisas para que eles tenham o menor impacto possível. Ainda hoje não há maneira de os prever. Tenho um grande interesse por séries históricas, e fascina-me que em séries estrangeiras como os Tudor, os reis portugueses sejam sempre tratados como velhos, decadentes, pequenos e decrépitos.
Uma outra rutura neste trabalho consiste em terem as letras de todos os temas em português, quando o inglês é o habitual na maior parte das bandas do vosso estilo musical, e mesmo nos Moonspell. A que se deveu esta escolha? Anteriormente fizeram o Regresso do Noddy, no programa dos Gato Fedorento (risos); uma outra canção com letra do José Luís Peixoto, salvo erro...
Fizemos algumas outras experiências usando o português. Não pensávamos «vamos fazer uma rutura e agora cantar em português». Foi mais uma escolha que derivou do conceito, ao cantarmos sobre o terramoto de 1755 em Lisboa, decidimos que fazia mais sentido narrá-lo em português. Pareceu-nos que se o fizéssemos em inglês não iria resultar. Nem sequer tentámos. Achamos que para esta história ser uma experiência, é preciso que seja em português, mesmo que o ouvinte não conheça a nossa língua. Foi a língua que soou quando tudo aconteceu. Cantar em português é bastante diferente de o fazer em inglês. A voz é comum a muitos estilos de música, ela está a contar a história, seja lá qual ela for. Queria que fosse um narrador e ele tinha que não se sobrepor à música, enquadrar-se na forma como as coisas seriam contadas. Nós tínhamos estado num projeto que juntava bandas de Metal Industrial cantando poemas de Miguel Torga. E fizemos música com guitarras pesadas com vozes a sussurrar. Estas experiências passam, mas fica sempre qualquer coisa na nossa cabeça. Já havia outras bandas a fazê-lo em português, à cabeça os Bizarra Locomotiva e os Mão Morta, e quando nos surgiu esta ideia de fazer um disco sobre 1755, pensámos logo em fazê-lo em português. Foi para nós uma experiência diferente usar a nossa língua, tivemos que mudar o chip, até porque nunca tínhamos cantado tanto em português. Mas já se tornou algo de mais natural usar outras línguas que não o inglês no Heavy Metal. Há, por exemplos, bandas Metal a cantar em islandês, não são os Sigur Rós, mas são os Sigur Rós do Metal, que são os Solstáfir, que conseguem cantar aquele ambiente dos vulcões. E acho imensa piada fazer esta música que, sem exagero, consegue ser figurativa, por isso é que nos deu um imenso gozo tocar o 1755, que é conceptual, como um pequeno documento histórico musical, o que não é muito frequente. Há diversas bandas que tocam sobre a história, mas normalmente focam-se naquele período histórico mais violento e simbólico, bélico e explosivo da Segunda Guerra Mundial. Tirando estas cartadas fortes da História, ou da ficção mais mitológica, tipo Tolkien ou Game of Thrones, penso que também já há gente suficiente no nosso estilo para que fosse possível. Para nós tem a vantagem de conseguir contar a história de 1755 para outros públicos e atingir outra gente que anteriormente não nos ouviria.
O efeito de novidade de cantarem este disco concreto em português pode suplantar a eventual perda de públicos estrangeiros que estavam habituados escutar-vos em inglês?
Já começámos a receber as reações de fora e têm sido muito boas. O nosso público, até pelas experiências musicais que começámos a passar nos anos 90, é um bocado do tipo nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Também já estão preparados para que algo invulgar aconteça. É verdade que é uma forma insegura de estar na música, mas uma carreira não tem sentido sem uma firme crença e vontade de sermos constantemente criativos, é isso que consegue manter uma banda unida. A maior qualidade de 1755, para nós, é a sua criatividade. Isso tem sido entendido, tem tido resultados na imprensa, nas vendas e nos top como se fosse um álbum em inglês. E leva os nossos fãs a terem um olhar sobre a História de Portugal. Quando ouvem o nosso disco, tenho a certeza de que as pessoas no estrangeiro vão depois ao Google para perceber o que aconteceu em 1755 em Portugal.
É por isso que não coloca de parte virem a fazer outros trabalhos sobre a História de Portugal?
Os media e a indústria pretendem muitas vezes colocar-nos em caminhos que não são os nossos. Esta ideia de um trabalho com base num conceito, que pode novamente ser um momento histórico, permite-nos retomar essa iniciativa própria de trilhar os caminhos que desejamos percorrer. Agora não me ocorre aqui nenhum tema, mas o que mais temos em Portugal são histórias, eventos e lendas que possibilitam trabalhos. Já tínhamos convocado algumas coisas da nossa cultura, como alguns poemas do Cesariny, o Opiário do Pessoa, a lenda do pé de cabra, etc... Sempre tivemos essa tendência de olhar para a nossa cultura para fazer uma certa diferença. O que a indústria declara vale para uma maioria, mas não vale para toda a gente. No Heavy Metal temos essa liberdade de fazer outras coisas, porque é um estilo que vive muito ainda de ouvir o álbum.
O negócio da música, de qualquer forma, mudou muito.
É um facto. Por um lado, anteriormente, era completamente dominado pelas editoras, que retiravam a parte de leão do negócio. Por cada dez músicos milionários havia milhares de empresários de editoras que o eram. Hoje em dia, a tecnologia mudou e as novas gerações não sabem sequer o que é pagar para escutar música. Quem, neste momento, enriquece não são os músicos, mas são os mega uploads ou qualquer coisa do género. Tenho orgulho de ter sido dos primeiros 20 mil a aderir ao Spotify e hoje em dia somos mais de 60 milhões, e a gente continua a receber o mesmo que recebia quando era só poucos milhares, o que quer dizer que as receitas estão certamente mal distribuídas. Por outro lado, nós apostamos na criatividade e em gravar em grandes estúdios com todos os cuidados, e a maior parte das vezes as pessoas ouvem a música em condições deficientes e completamente comprimidas em ficheiros que distorcem essa qualidade.
Na vossa carreira internacional, teve alguma importância o facto de se terem rapidamente juntado a editoras estrangeiras?
Sem dúvida, mas estamos a falar de editoras independentes que tinham a imensa vantagem de falarem a nossa linguagem. A experiência inicial de algumas bandas com editoras portuguesas não foi brilhante, sofriam pressões para tornarem a sua sonoridade mais pop. Quando gravamos o nosso primeiro álbum, Under the Moonspell, uma espécie de black metal com influências mediterrâneas, e o Wolfheart, que era um disco sobre marcar territórios, sobre lobos, celta e dark, eram tudo coisas que as editoras em Portugal não estavam capazes de identificar. A Century Media, a nossa primeira editora importante alemã, não só se identificava com o que fazíamos como estava à procura de um conjunto de bandas que contrabalançasse o domínio nórdico, alemão e anglo-saxónico no Metal. Foi uma editora que fez um bom trabalho ao mostrar bandas de outros sítios. Depois fomos conquistando o nosso espaço. Lá fora, o grande medo que eles tinham é que nós não trabalhássemos o suficiente. Uma espécie de medo de uma editora alemã sobre uma banda portuguesa.
Schäuble Metal (risos).
Mas isso nunca aconteceu, sempre trabalhámos muito.
Nasceu em 1974, na Brandoa. O vosso primeiro disco é de 1989, havia na época uma tribo urbana do Metal mais numerosa do que nos dias de hoje. Provavelmente se hoje nascesse na Brandoa estava no hip hop...
Talvez, mas há bandas de Metal que nasceram na Brandoa na ressaca do que fizeram. A experiência que tenho de ser metaleiro na escola da Brandoa, onde éramos dois ou três, é boa. Tivemos a sorte de querer ser um bocado mais dentro da cena. Já havia os Iron Maiden, Metálica e Black Sabbath, mas nos anos 90 podíamos participar na cena dos fanzines e outras. A maior parte das pessoas que ouvia Metal, escutava grandes bandas, mas não se dedicava ao underground. E isso foi um erro do panorama português, ninguém que ouvia as grandes bandas, percebeu que as bandas que estavam no underground nessa altura iriam ser as bandas importantes. Daí, nós termos um bocado de atraso na forma como Heavy Metal se desenvolveu. Conseguimos ultrapassar isso devido ao espírito voluntarista. Já tínhamos espírito associativista, a exemplo dos nossos pais. O do nosso baixista fundador era, inclusive, o presidente da Junta de Freguesia na Brandoa, o que na altura significava ter de fazer tudo, desde asfaltar as ruas, instalar o saneamento básico e construir edifícios sociais, como as escolas, com trabalho voluntário. Tudo isto no pós-25 de Abril. Os nossos pais estavam envolvidos nisso, e tínhamos na família gente que se dedicava a estas coisas com poucos meios. Lembro-me do meu pai e de outros terem construído aos fins de semana a sede de um clube. Isso foi importante para deixarmos de ser só fãs e querermos ser músicos. Nós éramos os correspondentes em Portugal da cena underground, começámos a distribuir discos dessas bandas, e quando começámos a tocar passámos a fazer o mesmo aos nossos discos.
Essa vossa escolha musical, que pode ser estética, tem por detrás uma carga simbólica e quase religiosa no seu inverso, como é que chegou aí?
Eu, como quase todos os portugueses, fui criado católico. Houve uma fase em que, não por causa dos meus pais, mas pelo tédio, andei, com o meu irmão, na catequese.
Tem a vantagem de, como todos os frequentadores do IC 19 , perceber que Deus anda longe...
(Risos) Também é verdade, mas andava na catequese e no coro, de qualquer forma. Rapidamente comecei a não me identificar com aquilo. Não tinha a crença suficiente para fazer o ritual. Os meus pais, apesar de toda a família ser de esquerda e comunista, queriam estar, como todos os portugueses, bem com Deus e com o Diabo. Eram católicos não praticantes. Foi um processo de leitura e de começar a ler Filosofia. Isso em paralelo com o Heavy Metal que foi sempre uma música que flertou com o ocultismo e o satanismo. Embora haja uma grande evolução nesse campo, hoje em dia há muito menos bandas a fazer letras tão radicais, do black metal. Passados alguns anos, encontrei a minha grande referência para o estudo e a compreensão da religião com
A Essência do Cristianismo, de Ludwig Feuerbach. Estilhaçaram-se todos os pontos da altura da adolescência. Depois de ler o livro, tive a consciência plena de que a religião era uma criação do homem. Há homens valorosos que podem acreditar na religião, mas eu, definitivamente, não tenho instinto religioso.
Quando falam da figura do diabo nas vossas letras, é uma figura de estilo ou parábola, ou pressupõe uma crença no próprio diabo?
Para mim é uma figura de estilo. Para se acreditar no Diabo é preciso acreditar em Deus. Há muita gente que se dedica ao estudo da figura de Satã que encontra outras explicações. Na grande febre satanista dos anos 60, com Charles Manson, as drogas e o fim do sonho dos hippies, quando se criou em 1966 uma Igreja santanista, fundada por Anton LaVey - uma coisa um bocado básica, que se mantém até aos dias de hoje -, há uma grande frase nos seus dez mandamentos, uma espécie de paródia aos da Bíblia, que afirma que o Diabo é o melhor amigo de Deus e da Igreja, porque é ele que a mantém ativa e no negócio durante todos estes anos. Dentro do seu simplismo tem alguma verdade.
Fonte: Jornal i
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