sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Macroscópio – Estátuas, supremacistas brancos ou as novas guerras sobre identidade e memória.

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
É tão desconcertantemente fácil atirar um automóvel ou uma camioneta para cima de uma multidão que começa a ser difícil saber o que mais fazer para evitar ataques terroristas como os que abalaram Barcelona e a Catalunha e nos estão a chocar a todos. Não podemos aceitar a sua banalização, mas claramente ainda não encontrámos o antídoto. Também por isso não escolhi esse drama que ocupa quase toda a actualidade para este Macroscópio, antes decidi dedicá-lo a uma polémica que divide os Estados Unidos e que, envolvendo Trump, não o envolve apenas a ele: a do que fazer às estátuas e monumentos confederados.
 
Depois de uma semana a seguir o que o Presidente dizia e desdizia sobre os violentos confrontos de Charlottesville, em especial a sua incapacidade de condenar os supremacistas brancos que aí se manifestaram, convém recordar como tudo começou. E tudo começou por causa de uma estátua – sim, uma estátua.

Sobre a actuação de Donald Trump o essencial está sintetizado no artigo que faz a capa da The Economist (em baixo) desta semana: Donald Trump has no grasp of what it means to be president. Como escreve a revista, “U-turns, self-regard and equivocation are not what it takes”. Depois, de forma fria e certeira, explica o que isso significa: “Mr Trump is not a white supremacist. He repeated his criticism of neo-Nazis and spoke out against the murder of Heather Heyer (see our Obituary). Even so, his unsteady response contains a terrible message for Americans. Far from being the saviour of the Republic, their president is politically inept, morally barren and temperamentally unfit for office.

 
Quanto à estátua da discórdia ela homenageia Robert E. Lee, o mais destacado dos generais sulistas que conduziram os exércitos da Confederação na guerra civil travada quando 13 estados não aceitaram o fim da escravatura e quiseram separar-se dos Estados Unidos. Figura mítica para todos os saudosistas do velho Sul, ainda hoje os historiadores debatem até que ponto Lee foi apanhado no lado errado da História, se era ou não um chefe militar brilhante e quais as suas verdadeiras convicções sobre a escravatura. Se não vejamos:
  • Na The Atlantic, Adam Serwer defende em The Myth of the Kindly General Lee que “The legend of the Confederate leader’s heroism and decency is based in the fiction of a person who never existed”. Um dos argumentos que utiliza para combater o alegado mito é uma famosa carta onde o general sulista se referiu ao tema da escravatura e que por vezes é recordada para o defender: “Lee was a slaveowner—his own views on slavery were explicated in an 1856 letter that it often misquoted to give the impression that Lee was some kind of an abolitionist. In the letter, he describes slavery as “a moral & political evil,” but goes on to explain that: (...) The blacks are immeasurably better off here than in Africa, morally, socially & physically.  The painful discipline they are undergoing, is necessary for their instruction as a race, & I hope will prepare & lead them to better things.”
  • Michael S. Rosenwald, num texto publicado no Washington Post e escrito num registo mais duro, contesta também a ideia de que Lee – que venceu muitas batalhas em que as tropas que liderava eram menos numerosas e pior equipadas – também não foi um bom líder militar. Em Trump equates Robert E. Lee with George Washington. The truth about Lee is he wasn’t very good at his job defende que “Like Napoleon himself, with his passion for the strategy of annihilation and the climactic, decisive battle as its expression, he destroyed in the end not the enemy armies, but his own,” Weigley wrote. Lee’s ineptitude was most damaging at Gettysburg. On the third day of battle, in what became known as Pickett’s Charge, Lee ordered his troops across an open field, subjecting them to heavy fire. Lee did this against the advice of his subordinates. The rebels suffered more than 6,000 casualties.
  • Dan McLaughin contraria alguns dos argumentos destes autores na conservadora National Review, em Was Robert E. Lee A Hero or A Villain? Mesmo assim trata-se de um texto que não só não faz a apologia do chefe dos exércitos sulistas, como o condena abertamente: “Lee was no hero; he fought for an unjust cause, and he lost. Unlike the Founding Fathers (even the slaveholders among them), he failed the basic test of history: leaving the world better and freer than he found it. And while he was not responsible for the South’s strategic failures, his lack of strategic vision places him below Grant, Sherman and Winfield Scott in any assessment of the war’s greatest generals.” Contudo esta avaliação não o leva a defender que as suas estátuas sejam sistematicamente removidas: “We should not be building new monuments to him, but if we fail to understand why the men of his day revered him, we are likelier to fail to understand who people revere today, and why. And tearing down statues of Lee today is less about understanding the past than it is a contest to divide the people of today’s America, and see who holds more power. That’s no better an attitude today than it was in Lee’s day.”
 
Muitos leitores estarão a interrogar-se: mas de Robert E. Lee ficou do lado dos derrotados, e se a História não costuma ser muito gentil para com os perdedores, como é possível que existam estas disputas em torno de monumentos erguidos nalguns dos locais mais nobres das cidades norte-americanas? Haverá razões para isso, a primeira das quais foi o esforço de reconciliação que se seguiu ao fim da guerra, conhecido como o tempo da “reconstrução”. Mas essa não é porventura a resposta correcta, pois a maior parte das estátuas de Lee, assim como centenas de outros monumentos que celebravam soldados, regimentos ou líderes militares da confederação foram erguidos muito mais tarde. Isso mesmo é referido neste outro artigo do Washington Post, The whole point of Confederate monuments is to celebrate white supremacy, onde Karen L. Cox recorda que, na sua maioria, “The memorials are a legacy of the brutally racist Jim Crow era”.
 
E o que foi este período conhecido por “Jim Crow era”? Foram as décadas que se seguiram à “reconstrução” durante as quais o partido democrata – que era na época o partido dos racistas e dos saudosistas do esclavagismo (Lincoln era republicano) – esteve no poder na maioria dos estados do Sul, aí criando as Jim Crow laws, no fundo a legislação segregacionista que só seria removida depois das lutas pelos direitos civis da década de 1960. Nesses anos um movimento de mulheres, o United Daughters of the Confederacy (UDC), promoveu e recolheu fundos destinados à construção de centenas de monumentos, sobretudo nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX. Hoje, como escreve o Wall Street Journal, Confederate Monuments Generate Intense Feelings, For and Against. Neste texto de análise e reportagem relata-se como “Calls increase for statues to be removed, but some say they preserve Southern heritage and honor ordinary soldiers”. Mas há mais do que apenas apelos à remoção desses monumentos: muitas cidades já decidiram fazê-lo, e o New York Times diz-nos quais em Confederate Monuments Are Coming Down Across the United States. Here’s a List.
 
Como em tantos outros países, o que aqui está de novo em causa é a forma como se lida com o passado e com a sua memória, sendo certo que é difícil encontrar formas perfeitas. Aqui mesmo ao lado, em Espanha, a chamada “Lei da Memória Histórica” seguiu a linha de que era necessário reavaliar todos os monumentos herdados do franquismo, isto depois de o carácter pacífico da transição da ditadura à democracia ter sido em boa parte assegurado pela opção de, nessa altura, optar por uma espécie de amnésia históricas. Já na maioria dos países do Leste da Europa a queda do comunismo foi acompanhada pela quase generalizada remoção dos monumentos que celebravam os ditadores, de Estaline a Ceausescu. Qual o melhor caminho? Talvez não exista uma regra, muito dependendo de cada circunstância histórica, sendo curioso verificar que, no caso dos Estados Unidos, parece ser a violência dos supremacistas brancos na defesa desses símbolos de um mundo desaparecido que, para alguns, torna especialmente recomendável a remoção dessas estátuas. Mesmo para a direita não trumpista.

 
O Presidente, em mais um dos seus célebres tweets, considerou a remoção das estátuas 'so foolish': "Robert E Lee, Stonewall Jackson - who's next, Washington, Jefferson? So foolish!" Respondendo-lhe de forma especialmente irónica, a Weekly Standard (a revista por excelência dos neoconservadores), entendeu fazer um pequeno levantamento do tipo de monumentos em causa. Em Here are Some of the 'Beautiful Statues' Donald Trump Says We Would 'Greatly Miss' encontramos uma pequena galeria de horrores, como a estátua que reproduzo acima.
 
Mas regresso à National Review, a revista conservadora mais influente dos Estados Unidos, para citar um texto do seu editor, Rich Lowry, que em Mothball the Confederate Monumentsconsidera que “It’s time to put them where they belong — museums and cemeteries.” Eis um dos seus argumentos: “The monuments should go. Some of them simply should be trashed; others transmitted to museums, battlefields, and cemeteries. The heroism and losses of Confederate soldiers should be commemorated, but not in everyday public spaces where the monuments are flashpoints in poisonous racial contention, with white nationalists often mustering in their defense.”
 
E repare-se que este trabalho de remoção dos monumentos (levando-os para cemitérios ou para os campos onde se travaram as principais batalhas, è semelhança do que sucede em Gettysburg) não seria tarefa pequena pois, como recorda na The Atlantic Yoni Appelbaum em Take the Statues Down, “As of August 2016, there were still more than 1,500 public commemorations of the Confederacy, even excluding the battlefields and cemeteries: 718 monuments and statutes still stood, and 109 public schools, 80 counties and cities, and 10 U.S. military bases bore the names of Lee, Jefferson Davis, and other Confederate icons, according to a tally by the Southern Poverty Law Center. More than 200 of these were in Virginia alone.”

No lugar de uma antiga estátua de Estaline, apenas as suas botas...
 
Seja lá como for, sem surpresa, alguns colunistas têm tratado de explicar que a boa solução é a solução adoptadas nos antigos países comunistas. Por exemplo:
  • Markos Kounalakis defendeu no Miami Herald que Confederate monuments deserve Soviet treatment, dando o exemplo do que foi feito em Moscovo: “Shortly after the 1991 Moscow coup that tried to overthrow President Mikhail Gorbachev and helped end the Soviet empire, statues of former heroes, ruthless functionaries, and self-aggrandizing leaders were taken down. Soviet sculptural detritus was moved to Gorky Park’s “Graveyard to Fallen Monuments.” In its stillness, the Fallen Monuments park still arouses dread — infamous figures such as “Iron Felix” Dzerzhinsky, the secret Soviet police founder, stir strong emotions.”
  • Paul Cooper, What to Do With a Heinous Statue, na Foreign Policy, expõe o que considera serem as “Lessons for Trump from post-Nazi Germany and post-Soviet Eastern Europe.” Acontece porém que, “In Hungary and in Germany, these recontextualizations were only possible, however, because communities were able to agree on a new reading of history and a new way of seeing these monuments. This required a democratic understanding of public memory as an active force. Whether this will be possible in the United States amid the current atmosphere of extreme polarization is another question. And public memory, as it ever was, is a product of power: who holds it, who gets to remember, whose histories are privileged above others.”
 
Será que os Estados Unidos estão preparados para algo que significaria também uma reconciliação? Daron Acemoglu (um dos autores do famoso livro “Porque falham as Nações”) e Simon Johnson consideram que isso é bastante difícil na mesma Foreign Policy, em It’s Time to Found a New Republic. É um texto bastante interessante, e mesmo que lateral a esta discussão, é dela indissociável pois faz longas considerações sobre o período pós-guerra civil e sobre como o país conseguiu voltar a seu um só, considerando que “The United States has teetered on the brink of catastrophe before, and rebuilt itself by rethinking its institutions. It's time to do so again.” A sua proposta é que o façam criando e partilhando uma nova prosperidade: “We need to coalesce around how best to create shared prosperity. This necessitates increasing productivity — the growth of which has been weak of late — and creating more well-paid jobs as well as finding better ways of redistributing the gains from new technologies and globalization in the fairer way. Like the progressives, we can’t hope to agree on complete road map forward, but that does not mean that we cannot begin. We should start with egregious economic problems and then address the political structures that resist attempts to improve the situation. The world is very different from what it was in 1900, but there are definite parallels in terms of what we need.”

 
Infelizmente, enquanto escrevia este Macroscópio surgiu a notícia de mais um possível atentado na Europa, agora na Finlândia. Espero que possamos ter um fim-de-semana mais tranquilo. E que os leitores desta newsletter possam descansar e ter boas leituras. 

 
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