No final de uma semana em que o fluxo informativo foi dominado pela realização da Web Summit 2017 em Lisboa quero crer que os leitores podem já estar saturados. Nós mesmo no Observador fomos-lhe relatando o encontro com grande detalhe e enorme variedade de pontos de vista (está tudo aqui, para quem quiser recordar ou descobrir o que foi perdendo). Por isso não, não vou escrever mais uma newsletter sobre a Web Summit. Vou partir de alguns dos temas que passaram pela Web Summit (inteligência artificial, automação, redes sociais) para lhe propor algumas reflexões que não falam de tecnologia, mas de problemas que acompanham a tecnologia.
(sendo que para o fim desta newsletter reservei ainda algumas sugestões de leituras de fim-de-semana sobre temas variados)
A minha primeira proposta trata o tema da inteligência artificial e remete para um artigo publicado ainda antes do encontro começar em Lisboa. Trata-se de uma entrevista com o cientista português António Damásio editada pelo Público no passado domingo: "Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare". O tema da conversa animada por Isabel Lucas foi um novo livro e a importância dos sentimentos, o texto é longo, mas penso que esta pequena passagem pode abrir o apetite: “Os sentimentos são representações do estado da nossa vida, mas representações qualificadas. Um dos problemas que mais me inquietam é essa impossibilidade que as pessoas têm tido de perceber que a inteligência – ou a nossa mente – vai só até um certo ponto e a partir daí tem de ter uma qualificação. Essa qualificação aparece em termos de agradável ou desagradável, de bom ou de mau, e é isso que faz a grande distinção entre a inteligência humana no sentido mais completo e a mente humana. À inteligência artificial, por exemplo, falta isso. Infelizmente as pessoas não se têm dado conta.”
Em contrapartida o que cada vez mais pessoas tomam em conta, e as preocupa, são os efeitos que a inteligência artificial e a automação terão sobre a organização da sociedade e o mercado de trabalho. É o outro lado da euforia de todos os que estiveram na Web Summit, um outro lado que Manuel Muñiz aborda no Project Syndicate em Economic Growth Is No Longer Enough. É um texto onde sublinha, por exemplo, que “Automation of fairly sophisticated routine jobs is driving the polarization of the labor market. What remains are either hard-to-automate tasks that require little or no skill, or hard-to-automate tasks that require very high skills. The latter jobs are much smaller in number than the former, and they happen to be in frontier firms that are leveraging the effects of technology to outperform direct competitors, and to expand into new markets. This brings us to the central question of our era: How can leaders address the externalities produced by rapid technological change, and thereby ensure economic and political sustainability? Put another way, how can we construct a new social contract for the digital age?”
A semana passada a The Economist dedicou a sua capa, o seu primeiro editorial e o seu artigo de fundo às redes sociais – mas não para as elogiar, antes para sublinhar os riscos que colocam. O título não podia ser mais sugestivo: Do social media threaten democracy? O texto explica a lógica de funcionamento das redes, que abrem quase infinitas possibilidades de intervenção a quem as saiba utilizar de forma sofisticada: “They collect data about you in order to have algorithms to determine what will catch your eye, in an “attention economy” that keeps users scrolling, clicking and sharing—again and again and again. Anyone setting out to shape opinion can produce dozens of ads, analyse them and see which is hardest to resist. The result is compelling: one study found that users in rich countries touch their phones 2,600 times a day.” Qual o problema? É que os utilizadores só vêm o que lhes é mostrado, e o que lhes émostrado é aquilo de que eles gostam, ou seja, “the system dishes out compulsive stuff that tends to reinforce people’s biases”.
Como é sabido a campanha de Trump usou com mestria as redes sociais para fazer chegar as suas mensagens exactamente a quem queria que estas chegassem, sendo que o arquitecto dessa estratégia, Jaime Bartlett, até esteve na Web Summit. Muitos apuparam-no, mas Ricardo Costa, no Expresso Diário, defendeu que estamos perante O homem que percebeu o Facebook. Como? Assim, por exemplo: “É incrível como há um ano não havia quase ninguém a prestar atenção ao uso que a campanha de Donald Trump estava a fazer do Facebook, com uma publicidade programática tão especializada que chegou a fazer várias vezes mil (sim, mil) versões ligeiramente diferentes do mesmo anúncio e pequenas mensagens dirigidas apenas a quatro (sim, quatro) eleitores! Tudo isto feito por programação e com equipas inteiras de funcionários do Facebook contratados pela campanha de Trump. Atenção, que os mesmos serviços foram oferecidos à campanha de Hillary, mas foram recusados...”
Gordon Hull olhou para estas possibilidades e, na Capx, atraveu-se a ir mais longe do que a Economist em Why social media is bad for democracy. A sua tese é que as redes sociais acentuam a estanquidade das “bolhas” em que os eleitores vivem, “bolhas” onde só conhecem a parte da realidade que reforça as suas ideias e os seus preconceitos. Sobre as consequências que isso tem para a democracia recorda “The late political scientist Benedict Anderson famously argued that the modern nation-state is best understood as an “imagined community” partly enabled by the rise of mass media such as newspapers. What Anderson meant is that the sense of cohesion that citizens of modern nations felt with one another – the degree to which they could be considered part of a national community – was one that was both artificial and facilitated by mass media. Democratic polities depend on this shared sense of commonality.” Ou seja, ter o sentido de pertença a uma mesma comunidade é importante para que exista um espaço comum onde se debatem ideias e propostas: “Communities share and create social realities. In its current role, social media risks abetting a social reality where differing groups could disagree not only about what to do, but about what reality is.”
Julgo que a leitura destes dois artigos justifica recuperar um ensaio de Marc F. Plattner publicado em Outurbo de 2012 no Journal of Democracy, um texto muito sólido sobre a relação entre órgãos de informação e democracia. Trata-se de Media and Democracy: The Long View e nele já se mostrava como a pulverização do espaço público, ainda antes das redes sociais terem chegado à actual sofisticação, estava a erodir o espaço público essencial ao debate de ideias em qualquer democracia. Como já então notava, “There is reason to think hard about what could be done to counter media tendencies that threaten to erode the shared civic arena essential to democracy.”
Deixem-me agora acabar este bloco a propósito da Wen Summit com dois textos que são sobre a Web Summit mas que, por irem contra a corrente, merecem também escapar à regra que defini no primeiro parágrafo. São eles:
- Os novos beatos do Web Summit, de Rui Ramos no Observador, onde explora a relação quase religiosa que por vezes se estebelece com a tecnologia e os seus gurus, para terminar sublinhando que “O que peço é que me poupem ao espectáculo da importância que a si próprios se atribuem estes profetas do écran e milagreiros da rede. O que peço é que não me obriguem a acreditar que é possível replicar Silicon Valley numa qualquer Albânia, desde que haja sol e a cerveja seja barata nessa Albânia.”
- A Web Summoparolice, de João Miguel Tavares no Público, um texto que segue uma linha semelhante e recorda uma realidade menos luminosa do que a mostrada no palco da Altice Arena: “Segundo o Expresso, o número de startups criadas em Portugal em 2017, após o enorme sucesso da primeira Web Summit, diminuiu. Isso mesmo: diminuiu. (...) Pois é: a Web Summit vende sonhos mas não faz milagres. Não é por haver uma feira tecnológica no Parque das Nações que a nação se vai transformar num parque tecnológico.”
A terminar, como prometido, três referências para três belas leituras de fim-de-semana, sobretudo se estes dias mais frios o fizerem ficar mais perto de uma lareira que já apeteça acender. Pelo meio fica esta referência a uma conferência de que serei o moderador na semana que vem, e para a qual desde já vos convido. Quanto aos textos são longos mas são bons e já os refiro imediatamente abaixo.
O primeiro é do consagrado historiador Simon Schama e saiu no passado sábado no Financial Times. Nele evoca-se o centenário da declaração de Lord Balfour onde se reconhecia o direito dos judeus a criarem um lar nacional na Palestina, um centenário que também foi pretexto do Conversas à Quinta da semana passada, O dia em que Israel começou a nascer (podcast aqui). Quanto ao texto de Schama, Balfour and the birth of Israel, ele começa por evocar a forma como o seu pai o recebeu em 1917 – ele a comunidade judaica do Reino Unido, que estava dividida sobre aderir ou não ao sonho sionista –, procurando explicado como aquelas 67 palavras representaram imenso para o seu povo: “Jews have not been the only people to have suffered uprooting. But they have been the only people in the world eternally unable to find a place where shelter would not be given on sufferance, conditionally, provisionally, liable always to be withdrawn, terminated along with many lives, at short notice. No one in countries inheriting the legacy of the expulsions and the doors shut against the desperate — as they were in Britain after the Aliens Act or as they were in the US after 1921 — is in a strong position to question Zionism’s legitimacy.” Mas também lembra que o homem que mais fez por convencer os britânicos a reconhecerem esse direito também tentou estabelecer pontes com os árabes: “Travelling by boat, camel and foot in the broiling heat of June 1918, Weizmann spent two hours in discussion with Faisal at his encampment on the Jordanian plateau. With the help of TE Lawrence, who believed it could all somehow be managed, a document was produced in which Zionism and Arab nationalism were represented as complementary and mutually beneficial.” Como se sabe, foi um esforço inglório. Esse documento pouco valor teve, ao contrário da Declaração de Balfour.
Já vos indiquei muitos e bons textos a propósito de um outro centenário de Novembro, o da Revolução de Outubro, mas não resisto em acrescentar mais um à lista: Bolshevism’s New Believers, um ensaio de Benjamin Nathans na New York Review of Books escrito a propósito do livro The House of Government: A Saga of the Russian Revolution, de Yuri Slezkine, um grosso volume de mais de mil páginas. É certo que este é apenas um dos 20 mil livros já publicados sobre a Revolução Russa (um por cada dia da semana, férias excluídas, desde 1917...), mas na opinião do recenseador é um dos que vale a pena ler, até porque leva mais longe a ideia de que o bolchevismo tem mais de fenómeno religioso do que de simples movimento político. Em concreto, “Slezkine does them one better. Having concluded that millenarianism is the true interpretive key, he applies his own rebranding: capitalism is “Babylon,” the Bolsheviks are “the preachers,” Marxism-Leninism is “the faith,” agitation and propaganda are called “missionary work,” and the end of tsarist Russia becomes “the end of the world.” The revolution is “the flood,” enlightenment is renamed “conversion.” The New Economic Policy, Lenin’s tactical retreat following the civil war, is “The Great Disappointment,” while Stalin’s revolution from above is christened “the Second Coming” and his Great Terror, “the Last Judgment.” Slezkine, sublinhe-se, nasceu na URSS, conheceu o sistema por dentro, não consultou apenas os arquivos, e isso também torna a sua obra mais autêntica. Ela gira, de resto, em torno da casa onde habitava a nomenklatura, e isso ajuda-o a situar o falhanço da ideia comunista no fracasso de se substituir à família: “Whatever the case, the children they raised in the House of Government became loyal Soviet citizens but not millenarians. Their deepest ties were to their parents (many of whom, as Slezkine shows with novelistic detail, were seized from their apartments and shot during the Great Terror) and to Pushkin and Tolstoy—not to Marx and Lenin. Instead of devouring its children, he concludes, the Russian Revolution was devoured by the children of the revolutionaries.”
Finalmente o último destaque vai para um dos muitos especiais que o Observador editou no passado fim-de-semana, em concreto para o ensaio de José Carlos Fernandes Escravatura: culpa, ressentimento e histórias mal contadas. Muitíssimo bem informado, é um texto que percorre a história da escravatura e dos movimentos que procuram, em nome das vítimas, extrair indemnizações a alguns (mas só a alguns) dos países que dela beneficiaram. Eis a sua conclusão, em que trata de refutar um dos defensores dessas teses: “Lindqvist e os entusiastas do ajuste de contas com a história laboram em vários equívocos: julgam o passado à luz dos critérios éticos do presente; têm uma visão linear, simplista e maniqueísta da história e da realidade, com “bons” e “maus” inequivocamente identificados e entidades nacionais estereotipadas, bem definidas e imutáveis; e não compreendem que, se dermos crédito a reivindicações sobre agravos cometidos há quatro séculos, nada impede que se façam remontar os pedidos de reparações até à Suméria e ao Império Acádio, ou até que alguém com uma percentagem de genes de Homo neanderthalensis acima da média se ache no direito a ser indemnizado pelo resto da humanidade pelo presumível genocídio cometido pelo Homo sapiens sobre o seu primo paleolítico. Subjacente às reivindicações indemnizatórias está também a crença de um povo em que todos os seus descontentamentos e padecimentos presentes decorrem apenas de “maldades” que lhes foram infligidas por outros no passado – uma mundivisão que convida ao fatalismo e à inércia.”
É sexta-feira, como muitas vezes sucede neste dia o Macroscópio estendeu-se um pouco, mas fica-se por aqui, desejando a todos os leitores um bom descanso e melhores leituras. Até para a semana.
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