sábado, 28 de maio de 2016

A essência do direito

Mas de onde vem a autoridade para editar normas sociais? Já dissemos que ela provém de um poder normativo inerente às sociedades. Esse poder normativo, como qualquer outro poder, envolve a existência de uma autoridade (capaz de gerar dever) que também seja dotada de força (capaz de impor coercitivamente a obediência).

Essa autoridade, por sua vez, somente pode derivar de uma norma, pois a autoridade é um elemento necessariamente normativo, na medida que me apenas regras jurídicas podem atribuir autoridade a juízes, parlamentares, governadores ou quaisquer outros agentes de uma comunidade.

Assim, afirmar que a validade das regras provém da autoridade de quem as edita implica admitir que essa validade deriva da norma que confere autoridade a quem a editou. Portanto, a validade de uma norma somente pode ser fundada na validade de uma outra norma, que lhe é superior.

Nessa medida, a validade de uma norma jurídica é sempre relativa. Entretanto, por mais que essa conclusão derive da própria natureza das normas, ela nos conduz a uma sequência infinita, em que a validade de uma norma derivaria da validade de outra, que derivaria da validade de outra, que derivaria validade de outra, e assim sucessivamente, sem chegar a um ponto final. Essa solução é evidentemente absurda, pois nos leva da validade ao vazio.

Para escapar desse aparente beco sem saída, há somente duas opções. A primeira é admitir que, no fim da linha, há uma ou mais normas válida em si mesmas, ou seja, normas cuja obrigatoriedade não pode ser derivada de nenhuma regra superior e que servem como base para a atribuição de autoridade normativa a qualquer instituição. Essas normas, evidentemente, não são criadas por nenhuma organização social, pois são elas próprias que servem como base para justificar a validade do poder normativo das instituições sociais.

A segunda é admitir que, no fim da linha, existe uma autoridade originária, que não deriva de norma nenhuma. Uma autoridade em si, uma autoridade absoluta, capaz de determinar por sua vontade as normas básicas, que servirão como fonte de validade de todas as outras normas sociais. Essa é a saída teológica clássica, que coloca acima de todas as normas a autoridade divina e identifica um ou vários deuses como os legisladores originários. Porém, essa posição teológica nos leva imediatamente de volta à primeira, pois a autoridade originária é a fonte das normas fundamentais, objectivamente válidas, que determinam o limite de actuação dos poderes normativos sociais.

Na tradição jurídica, o conjunto dessas normas originais, cuja validade não depende de uma criação social, é normalmente chamado de Direito Natural: um conjunto de normas jurídicas cuja validade não decorre do exercício social do poder normativo. Essas normas são jurídicas, na medida em que regulam o exercício do poder, mas elas não são positivas, pois não foram estabelecidas pelas autoridades sociais constituídas. Assim, a validade das normas jurídicas naturais é absoluta (pois elas são válidas em si mesmas), enquanto a validade das normas positivas é relativa (pois a sua validade é derivada do próprio direito natural).

Em resumo, a sociedade é dotada de um poder jurídico, que é o poder social de elaborar as normas do direito positivo, por meio das suas três fontes básicas: costumeira, legislativa e contratual. Os limites do exercício desse poder são definidos por um poder social normativo, que é o poder de auto-determinação das sociedades. Como esse poder supra-jurídico institui os poderes normativos sociais (jurídico, moral, religioso, etc.), ele não tem uma natureza instituída, mas instituinte. Na linguagem jurídica contemporânea, esse poder instituinte é normalmente chamado de poder constituinte originário, que é o poder de auto-regulação com base no qual as sociedades estabelecem os seus sistemas jurídicos.

Esse poder instituinte, retira sua autoridade dos princípios normativos básicos, que são derivados da própria essência das sociedades e que, portanto, não são frutos do exercício do poder social. No campo do direito, eles são chamados de Direito Natural: as normas justas por natureza, que compõem o conteúdo essencial do próprio direito e são a base de validade dos poderes sociais instituintes, na medida em que estabelecem a obrigatoriedade do cumprimento dos contratos, a auto-determinação dos povos, o direito à liberdade, a proporcionalidade entre pena e delito e o direito à dignidade, entre outros.

Como afirmam Cunha e Dipp "assim como nas leis da física a vontade do homem é irrelevante, não dependendo dele que o calor dilate os corpos [...], também fazem parte da ordem natural do universo alguns princípios imutáveis de ordem social e jurídica." No contexto actual, esses princípios são normalmente chamados de direitos humanos ou de direitos do homem, que são considerados universais, de tal forma que sua validade é heterônoma tanto com relação aos indivíduos quanto em relação às sociedades.

Com isso, a observância dos direitos humanos pode ser exigida tanto das sociedades que os reconhecem em seus direitos positivos, quanto daquelas que não o fazem, pois sua obrigatoriedade não deriva do exercício do poder normativo social, mas da própria natureza do homem. Portanto, o direito positivo de cada comunidade somente é válido na medida em que respeitam os direitos humanos, que são a representação moderna dos direitos naturais.

Por Alexandre Araújo Costa



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