Mas
de onde vem a autoridade para editar normas sociais? Já dissemos que ela provém
de um poder normativo inerente às sociedades. Esse poder normativo, como
qualquer outro poder, envolve a existência de uma autoridade (capaz de gerar
dever) que também seja dotada de força (capaz de impor coercitivamente a
obediência).
Essa
autoridade, por sua vez, somente pode derivar de uma norma, pois a autoridade é
um elemento necessariamente normativo, na medida que me apenas regras jurídicas
podem atribuir autoridade a juízes, parlamentares, governadores ou quaisquer
outros agentes de uma comunidade.
Assim,
afirmar que a validade das regras provém da autoridade de quem as edita implica
admitir que essa validade deriva da norma que confere autoridade a quem a
editou. Portanto, a validade de uma norma somente pode ser fundada na validade
de uma outra norma, que lhe é superior.
Nessa
medida, a validade de uma norma jurídica é sempre relativa.
Entretanto, por mais que essa conclusão derive da própria natureza das normas,
ela nos conduz a uma sequência infinita, em que a validade de uma norma
derivaria da validade de outra, que derivaria da validade de outra, que
derivaria validade de outra, e assim sucessivamente, sem chegar a um ponto
final. Essa solução é evidentemente absurda, pois nos leva da validade ao
vazio.
Para
escapar desse aparente beco sem saída, há somente duas opções. A primeira é
admitir que, no fim da linha, há uma ou mais normas válida em si mesmas, ou seja, normas cuja obrigatoriedade não
pode ser derivada de nenhuma regra superior e que servem como base para a
atribuição de autoridade normativa a qualquer instituição. Essas normas,
evidentemente, não são criadas por nenhuma organização social, pois são elas
próprias que servem como base para justificar a validade do poder normativo das
instituições sociais.
A
segunda é admitir que, no fim da linha, existe uma autoridade originária, que
não deriva de norma nenhuma. Uma autoridade em si, uma
autoridade absoluta, capaz de determinar por sua vontade
as normas básicas, que servirão como fonte de validade de todas as outras
normas sociais. Essa é a saída teológica clássica, que coloca acima de todas as
normas a autoridade divina e identifica um ou vários deuses como os
legisladores originários. Porém, essa posição teológica nos leva imediatamente
de volta à primeira, pois a autoridade originária é a fonte das normas
fundamentais, objectivamente válidas,
que determinam o limite de actuação dos poderes normativos sociais.
Na
tradição jurídica, o conjunto dessas normas originais, cuja validade não
depende de uma criação social, é normalmente chamado de Direito Natural: um
conjunto de normas jurídicas cuja validade não decorre do exercício social do
poder normativo. Essas normas são jurídicas,
na medida em que regulam o exercício do poder, mas elas não são positivas,
pois não foram estabelecidas pelas autoridades sociais constituídas. Assim, a
validade das normas jurídicas naturais é absoluta (pois elas são válidas em si
mesmas), enquanto a validade das normas positivas é relativa (pois a sua
validade é derivada do próprio direito natural).
Em
resumo, a sociedade é dotada de um poder jurídico, que é o poder social de
elaborar as normas do direito positivo, por meio das suas três fontes básicas:
costumeira, legislativa e contratual. Os limites do exercício desse poder são
definidos por um poder social normativo, que é o poder de auto-determinação das
sociedades. Como esse poder supra-jurídico institui os poderes normativos
sociais (jurídico, moral, religioso, etc.), ele não tem uma natureza
instituída, mas instituinte. Na linguagem jurídica contemporânea, esse poder
instituinte é normalmente chamado de poder
constituinte originário, que é o poder de auto-regulação com base no
qual as sociedades estabelecem os seus sistemas jurídicos.
Esse
poder instituinte, retira sua autoridade dos princípios normativos básicos, que
são derivados da própria essência das sociedades e que, portanto, não são
frutos do exercício do poder social. No campo do direito, eles são chamados de
Direito Natural: as normas justas por natureza, que compõem o conteúdo
essencial do próprio direito e são a base de validade dos poderes sociais
instituintes, na medida em que estabelecem a obrigatoriedade do cumprimento dos
contratos, a auto-determinação dos povos, o direito à liberdade, a
proporcionalidade entre pena e delito e o direito à dignidade, entre outros.
Como
afirmam Cunha e Dipp "assim como nas leis da física a vontade do homem é
irrelevante, não dependendo dele que o calor dilate os corpos [...], também
fazem parte da ordem natural do universo alguns princípios imutáveis de ordem social
e jurídica." No contexto actual, esses princípios são normalmente chamados
de direitos humanos ou de direitos do homem, que
são considerados universais, de tal forma que sua validade é heterônoma tanto
com relação aos indivíduos quanto em relação às sociedades.
Com
isso, a observância dos direitos humanos pode ser exigida tanto das sociedades
que os reconhecem em seus direitos positivos, quanto daquelas que não o fazem,
pois sua obrigatoriedade não deriva do exercício do poder normativo social, mas
da própria natureza do homem. Portanto,
o direito positivo de cada comunidade somente é válido na medida em que
respeitam os direitos humanos, que são a representação moderna dos direitos
naturais.
Por Alexandre
Araújo Costa
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