Rui Peralta, Luanda
A França é um exemplo “sui generis” nos processos de descolonização encetados no pós-II Guerra Mundial. Esta potência colonial descolonizou, no sentido de outorgar a independência formal às suas colónias mantendo, no entanto, a sua forma de actuar e de interpretar o mundo exterior, ou seja, manteve inalterável a sua estrutura cultural colonizadora. A França pertencia á relação colonial e ignorou esse processo em termos internos, não efectuou qualquer processo de aculturação no que respeita ao seu passado colonial. Um exemplo disso é a forma como trata, actualmente, as suas ex-colónias africanas, hoje países formalmente independentes. E um exemplo histórico maior é o facto de, durante a guerra da Argélia, a França ter evitado, “in extremis”, que os generais da “guerra suja” na Argélia – traumatizados pelos acontecimentos na Indochina – tomassem o Poder na metrópole.
Esta é uma das muitas razões porque a França não está em posição de inventar ou reinventar ideias e projectos que sejam viáveis para um relacionamento soberano com os Estados africanos. Todo o relacionamento da França com África (e em particular com as suas ex-colónias) está enlameado por essa cultura colonial que a democracia francesa nunca conseguiu sublimar. No entanto não é apenas este relacionamento França/África que é vitimado pelo facto de culturalmente a elite francesa não se ter “auto-descolonizado” em termos culturais.
É vitimada a própria democracia francesa, presentemente em permanente Estado de emergência, com problemas enormes com as comunidades imigrantes e com os trabalhadores franceses numa luta pela sobrevivência contra uma reforma laboral que é um instrumento de regressão das regras sociais. A França neoliberal - que estigmatiza imigrantes árabes e africanos, estigmatiza os seus próprios trabalhadores e conduz ao ostracismo, através do Estado de emergência, os seus cidadãos - é a extensão da França colonial. E o combate ao terrorismo assentou como uma luva nas pretensões neocoloniais e imperiais atlantistas.
Falar de terrorismo não é só falar do islamismo mas, também, referir a política externa ocidental que eliminou milhões de pessoas e destruturou sociedades inteiras em África e no Médio-Oriente. Falar de combate ao terrorismo implica analisar a aliança histórica das grandes potências do Ocidente com os regimes obscurantistas dos Estados do Golfo. O combate ao terrorismo não conduz a lado algum – apenas ao esmagamento dos direitos individuais e sociais, como acontece na França e na Bélgica - se não for um combate ao fascismo, às causas profundas do integrismo e do obscurantismo. Não se trata apenas der um combate entre um técnico digital que controla drones e alta tecnologia militar e um bárbaro que procede por decapitação e por actos de extinção indiscriminada.
Este conjunto de políticas criou uma terrível desordem em África. A Líbia é, hoje, um país governado por milícias de onde partem todo o tipo de violências incontroladas em benefício do terrorismo em todo o continente. Mali e Nigéria vêem os seus projectos de desenvolvimento afectados. Nos últimos anos a actividade de bandos fascistas islâmicos ceifou a vida a dezenas de milhares de pessoas. A União Europeia, preocupada com os êxodos migratórios e com a instabilidade que a NATO criou ao invadir a Líbia subvenciona os Estados do Magrebe para que façam o papel de guarda-fronteiras e impeçam a circulação, mediante detenções e torturas. Esses milhões de euros que subvencionam a repressão poderiam ser utilizados em projectos de desenvolvimento nas regiões de origem do êxodo. Mas não.
As oligarquias africanas, maioritariamente de origem colonial, transnacionalizaram-se. Os seus interesses não estão limitados aos seus países de origem, nem mesmo ao continente africano. Os seus capitais estão colocados na banca externa, os seus planos de saúde são em clinicas privadas nos USA e Europa e os seus filhos são educados na Europa e nos USA. Esta estrutura de relacionamentos permite às oligarquias tecerem redes de interesses, garantindo o status-quo nos seus países e dominando os respectivos aparelhos de Estado, impedindo que qualquer projecto de desenvolvimento seja desencadeado a montante ou a jusante dos seus interesses. Copiam os muros com que os seus sócios europeus e norte-americanos se protegem.
África não necessita de muros. Deve olhar para esta Europa das barreiras sociais como um exemplo a não seguir. África deve transformar-se num amplo espaço de circulação sem fronteiras internas, um espaço sem muros. E isto implica uma análise objectiva do que aconteceu com a Europa. Implica, portanto, um diálogo soberano, sem estigmas, com a Europa. Não com A, B ou C e entre A, B ou C, mas entre África como um todo e a Europa da U.E.
Urge, a bem de todos, para acabar com os estigmas.
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