sexta-feira, 3 de junho de 2016

Macroscópio – Duas polémicas destes dias, uma terra-a-terra (35 horas), outra mais etérea (marxismo e fascismo)

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

O Macroscópio de hoje vai dividir-se entre duas matérias – e duas controvérsias. A primeira vem-nos destes dias de reversão de muitas das medidas tomadas nos últimos anos, mesmo de algumas que tinham carácter mais estrutural, como é o caso do horário na Administração Pública, que agora vai voltar a ser de 35 horas. A segunda deriva da controvérsia causada por uma entrevista de José Rodrigues dos Santos onde ele falava da relação entre marxismo e fascismo.

35 horas para quem?

Há vários debates em torno do regresso ao horário de 35 horas no sector público, sendo que uns ocuparam os sindicatos e os partidos à esquerda do PS – que exigiam que essa medida fosse imediata e sem quaisquer excepções – e outros versaram mais sobre a relação entre o regime dos funcionários e o dos restantes trabalhadores, assim como sobre o curto orçamental da medida. É destes que nos vamos ocupar.

Indo à origens: como e quando é que a Função Pública começou a beneficiar deste regime? O Público procurou responder a essa pergunta num trabalho intitulado As 35 horas nasceram num governo de Cavaco e só com Guterres chegaram a todos. Aí se explicava que “Com Cavaco Silva à frente do Governo, as 35 horas na função pública nascem de um acordo salarial assinado em Dezembro de 1987 com os dois sindicatos da UGT (a CGTP ficou fora). Mas daí até que fossem aplicadas à generalidade dos funcionários públicos decorreram quase dez anos e foi já com António Guterres como primeiro-ministro que a medida se concretizou totalmente.”

E como é que esse horário compara com os que estão em vigor no resto da economia? Margarida Peixoto procurou responder a essa questão num Especial do Observador, Quantas horas trabalhamos? O tempo é relativo... O título já aponta para a resposta, pois há uma grande diversidade de situações: “O Inquérito aos Ganhos e à Duração do Trabalho, realizado semestralmente pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento, mostra como a diversidade é grande entre diferentes setores de atividades económicas. Em abril do ano passado, as atividades financeiras e de seguros apareciam com uma semana habitual de trabalho remunerado (inclui as horas suplementares) de 35,2 horas, enquanto as indústrias transformadoras e as atividades administrativas e dos serviços de apoio tinham 40 horas.” Diversidade que não se encontra apenas nos horários formais, mas também nos regime de horário incompleto e na forma como são encaradas as horas que se fica a trabalhar para além do horário formal.

Finalmente, quanto se poupou com as 40 horas e quanto vai custar reintroduzir as 35 horas? Margarida Peixoto tentou de novo encontrar uma resposta em 35 horas: os números contraditórios de Passos e Costa. É que “O Governo diz que a redução da semana de trabalho para as 35 horas terá um impacto de 27 milhões de euros em seis meses, só na Saúde. O total dos custos ainda não é conhecido. Mas quando Pedro Passos Coelho passou o horário da função pública das 35 para as 40 horas, garantia poupanças de 36 milhões só num trimestre. Os números do presente e do passado parecem não bater certo.”

Não, de facto os números não batem certo, e a ausência de informação fidedigna é mesmo um dos temas que mais preocupou quem acompanhou este debate. Já se pode conhecer o estudo das 35 horas?, escrevia o Público em editorial, no qual se acrescentava que “o mais grave na forma como este diploma foi aprovado, além da ausência de estudo, é a total ausência de planeamento. Nalguns sectores da saúde, o Governo veio colocar a hipótese de se manter as 40 horas e compensar os trabalhadores com férias e dias de folgas. E aqui faz todo o sentido a pergunta feita pela bastonária dos enfermeiros: nessa altura, também mandam os doentes de férias e de folgas?” 

David Dinis, da TSF, também exigiu conhecer o estudo em 35 horas sem estudo à vista? Olá sr. Presidente. Para ele, neste dossier das 35 horas, “Não há mal nenhum em cumprir uma promessa eleitoral. O problema é que não foi isto que António Costa nos prometeu. A promessa do Governo de repor as 35 horas de trabalho na função pública tem um pequeno problema de princípio: ela foi feita na condição de não custar dinheiro ao Estado. E pelos vistos custa: segundo Mário Centeno são 27 milhões de euros num semestre, o que significa 54 milhões de euros num ano inteiro. E isto na Saúde, falta saber o resto.”

Quanto todo este debate começou, há já alguns meses, ainda o Orçamento não tinha sido aprovado mas já se garantia que a lei mudaria mesmo (apesar de então nem se falar sequer em estudo), Paulo Ferreira, colunista do Observador, fazia um pedido numa coluna no Sapo.pt: 35 horas: expliquem-me como se eu fosse muito burro. É um texto onde destaca algumas das contradições existentes neste debate, mas onde nota que tudo isto pode acontecer porque, no fim do dia, há uma singularidade no Estado: “Na função pública trabalha-se tão bem e tão mal como na generalidade das empresas privadas. (…) Há os incompetentes, os inadaptados, os preguiçosos mas há também profissionais como os melhores de qualquer organização. O problema no Estado é outro e está na ausência de racionalidade económica na decisão de políticas públicas e na forma como é gerido. Há pouca transparência nas contas, não há responsabilização por resultados, a avaliação de mérito é coisa de que ninguém quer ouvir falar e, no final, há sempre mais um imposto que se aumenta para pagar as ineficiências. Como o Estado não vai à falência, as contas não são para aqui chamadas.”

Não foram as contas mas foram os sindicatos e venceu a pressão dos partidos à esquerda do PS, o que, na opinião de Armando Esteves Pereira no Jornal de Negócios reforça a percepção de que somos O país dos dois sistemas : “A redução do horário de trabalho para 35 horas semanais na Função Pública consolida o princípio de um país de dois sistemas no que diz respeito aos  direitos  laborais. Os trabalhadores do Estado trabalham menos horas, mantêm alguns benefícios na reforma vedados aos privados, têm mais protecção no trabalho.”



Do marxismo e do fascismo

José Rodrigues dos Santos parece ter um condão especial para incendiar as redes sociais (e não só), e foi isso que sucedeu de novo quando deu várias entrevistas a propósito do seu livro mais recente, nomeadamente uma ao Diário de Notícias intitulada "O fascismo tem origem marxista". Nela o jornalista e escritor concretiza: “Continuo a escrever livros polémicos. As Flores de Lótus e O Pavilhão Púrpura mostram realidades, porém politicamente incorretas. O facto de que o fascismo é um movimento que tem origem marxista, por exemplo, é uma das demonstrações feitas nesta saga que poderá parecer polémica.”

Face aos ataques de que foi alvo Rodrigues dos Santos defendeu-se no Público, com um texto relativamente longo onde retoma exactamente a mesma ideia: O fascismo tem origem no marxismo. Aí argumenta, por exemplo, que “Foi o marxismo soreliano que conduziu ao bolchevismo e ao fascismo. Lenine leu Sorel e apropriou-se dos conceitos revisionistas da elite, a famosa “vanguarda”, e do uso da violência. O mesmo Sorel foi lido com atenção em Itália, em particular pelos sindicalistas revolucionários, marxistas que adotaram a greve e a violência como formas de desencadear a revolução.” Entre esses revolucionários italianos estava Benito Mussolini, que mais tarde se tornaria “Il Duce” numa Itália submetida ao movimento e ao regime que ele próprio baptizou como “fascismo”. Só que, insiste o escritor e jornalista, “Os fascistas mantiveram-se marxistas ortodoxos ao defender que o capitalismo teria mesmo de ser cultivado em Itália para que a revolução do proletariado fosse mais tarde possível.”

Este texto já suscitou duas respostas bastante elaboradas e sofisticadas, uma do historiador António Araújo, outra do filósofo Alexandre Franco de Sá. Araújo escreveu um texto bastante violento no Público, Fascismo é quando um homem quiser, onde sustenta que “O texto de Rodrigues dos Santos (…) representa um lamentável exemplo de como uma amálgama confusa de referências e factos históricos pode conduzir a conclusões erradas, sobretudo quando se pretende, com pontinha de imodéstia, apresentar um sound bite provocatório, estratagema promocional que, de resto, já fora usado pelo autor no lançamento de outros títulos da sua pavorosa bibliografia. Concedendo-lhe um piedoso benefício da dúvida, podemos até pensar que o autor acredita mesmo naquilo que diz, julgando ter feito descobertas revolucionárias, assombrosas, como os heróis dos seus romances.”

Já Alexandre Franco de Sá escreveu no Observador uma prosa que de certa forma replica mas também contradiz o título do texto de Araújo – Fascismo é quando a esquerda quiser –, prosa essa que continuando a ser crítica da leitura, que considera simplista, de Rodrigues dos Santos, chama contudo a atenção para outros simplismos de sinal oposto. Por exemplo: “Se nada há de errado em usar assim o conceito de “fascismo”, há algo de obsessivo e até doentio em usar e abusar dessa designação como arma política de arremesso. É em larga medida o que fez e ainda faz grande parte da esquerda portuguesa, numa atitude em que a amálgama de termos como “direita”, “liberalismo”, “neoliberalismo”, “autoritarismo”, “fascismo”, “conservadorismo” ou “capitalismo” estabelece um cânone politicamente correcto tão estreito e limitador quanto confuso.” É assim que, defende um pouco mais adiante, “Numa situação normal, as afirmações vazias e triviais de José Rodrigues dos Santos – uma espécie de Dan Brown português – na promoção dos seus romances apenas fariam sorrir. Que elas suscitem tamanha fúria e discussão demonstra apenas que Portugal precisa de uma escola em que se forme para o conhecimento, para a cultura, para a verdadeira discussão e para a crítica; não uma escola que promova as ideias feitas.”

Também no Observador, André Azevedo Alves notou precisamente, em De Marx a Mussolini, que, por estas e por outras, parece haver uma fixação naquele autor: “Num contexto de hegemonia quase absoluta da esquerda e extrema-esquerda nas redações da comunicação social portuguesa, Rodrigues dos Santos – goste-se ou não do estilo – é uma presença incómoda. Mais ainda por não ser facilmente intimidável e por ter uma posição que lhe garante alguma autonomia.”

Mas não pensemos que este debate é totalmente esotérico e provinciamente doméstico. Na verdade há um regresso das referências ao “fascismo” em muitas análises sobre o que se está a passar em alguns países europeus e nos Estados Unidos, pelo que, no Conversas à Quinta desta semana, Jaime Nogueira Pinto e Jaime Gama estiveram a procurar responder a uma questão talvez mais presente do que se pensa: Mas afinal o que foi (e o que é) isso do fascismo? Falámos de Trump e de outros populismos europeus, mas também falámos de Mussolini e dos regimes autoritários da Europa na década de 1930, procurando perceber o contexto histórico e as diferenças políticas, de forma a ajudar a situa o debate em termos mais correctos e menos marcados por slogans de efeito fácil (como sempre, o podcast está disponível aqui).

E por hoje é tudo. Despeço-me com os habituais desejos de boas leituras e um restaurador descanso. Bem sei que a selecção joga hoje, mas ainda é a feijões, pelo que não vale estar ansioso. Até amanhã.

 
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