Amanhã chegará a Portugal o Papa Francisco que presidirá à peregrinação que marca o centenário da primeira das aparições, a 13 de Maio de 1917. Uma boa ocasião para regressar a uma reflexão sobre o sentido de Fátima e sobre o seu significado para os portugueses. É certo que nos últimos dias se trocaram mais argumentos sobre a pertinência da tolerância de ponto que António Costa concedeu aos funcionários públicos, mas não é por aí que irá este Macroscópio. Vamos apenas procurar guiá-lo através de alguns textos que podem ajudar a compreender melhor Fátima e as controvérsias quase tão antigas como a primeira das aparições.
A abrir gostaria de chamar a atenção para um dos textos que ajudaram a divulgar as aparições e mais terão contribuído para a credibilização do milagre de Fátima: a reportagem do enviado do jornal “O Século”, Avelino de Almeida, que a 13 de Outubro de 1917, foi uma das testemunhas do chamado “milagre do Sol”. A reportagem – Coisas espantosas! Como o sol bailou ao meio dia em Fátima – está reproduzida em vários sites (como este) e seria depois complementada com um testemunho porventura mais pessoal publicado duas semanas depois na Ilustração Portuguesa em conjunto com a reportagem fotográfica de Judah Ruah (de quem são a maioria das fotografias conhecidas desse da multidão que nesse dia se reuniu na Cova de Iria, nomeadamente a que abre esta newsletter). É desse segundo texto aquela que é, porventura, a passagem mais conhecida do seu testemunho: “E, quando já não imaginava que via alguma coisa mais impressionante do que essa rumorosa mas pacífica multidão animada pela mesma obsessiva ideia e movida pelo mesmo poderoso anseio, que vi eu ainda de verdadeiramente estranho na charneca de Fátima? A chuva, à hora prenunciada, deixar de cair; a densa massa de nuvens romper-se e o astro-rei – disco de prata fosca – em pleno zénite, aparecer e começar dançando n’um bailado violento e convulso, que grande número de pessoas imaginava ser uma dança serpentina, tão belas e rutilantes cores revestiu sucessivamente a superfície solar… / Milagre, como gritava o povo; fenómeno natural, como dizem sábios? Não curo agora de sabê-lo, mas apenas de te afirmar o que vi… o resto é com a Ciência e com a Igreja…”
(Quanto aos testemunhos do que se passou nesse dia de Outubro o Observador recolheu alguns deles, assim como reuniu as imagens mais significativas, numa fotogaleria especial, em grande formato: 13 testemunhos sobre o "milagre do Sol".)
Feita esta rápida incursão ao passado, vejamos o que dizem hoje os historiadores, sendo que estes discutem sobretudo como Fátima se transformou no fenómeno que hoje é, mais do que debatem a autenticidade do que se passou. Ora uma dessas interpretações clássicas é a de Vasco Pulido Valente, que no seu livro A República Velha, dedica um subcapítulo a Fátima. No Observador reproduzimo-lo com o título Fátima, a política e a República. Pequena passagem, relativa à atitude que a Igreja portuguesa foi tendo ao longo dos anos: “Ao começo, a hierarquia manteve uma distância prudente, como se costuma dizer. O que significa que, ajudando e permitindo, só se comprometeu quando a reputação de Fátima estava estabelecida e o seu valor como símbolo político confirmado.”
Mas neste ano de 2017 tem sido abundante a publicação de livros, tendo a Rita Cipriano selecionado alguns em O que ler durante a visita do Papa Francisco. Estão lá onze referências sobre Fátima mais três relativas ao Papa Francisco, todas apresentadas de forma muito breve.
Uma análise mais longa da bibliografia recente, comparando-a com as obras clássicas e com a monumental Documentação crítica de Fátima (cinco volumes organizados pela Igreja Católica, mais um volume com uma selecção dos principais documentos relativos ao período 1917-1930 e que está disponível em PDF) é a do longo ensaio de António Araújo no Público, Fátima, cem anos depois, publicado no passado mês de Fevereiro. Na sua síntese, depois de grandes controvérsias, hoje “prevalece uma abordagem mais serena e desapaixonada, da História à Teologia”.
Prova de que há sempre descobertas a fazer foi a revelação, ainda em Março, de que um anúncio no Diário de Notícias previa Fátima dois meses antes. É uma história curiosa, contada por João Céu e Silva, sobre uma pequena inserção publicitária, a 10 de Março de 1917, onde se escrevia: “135917. Não esqueças o dia feliz em que findará o nosso martírio. A guerra que nos fazem terminará." Estranho, mas interessante e sem aparente explicação.
Mas passemos agora à conversa – julgo ser este o termo mais adequado – que se tem desenvolvido entre vários padres e teólogos sobre o sentido e o significado de Fátima e a interpretação a dar ao que foi relatado pelos pastorinhos. Duas entrevistas de D. Carlos Azevedo – uma ao Expresso, outra ao Público – chamaram a atenção pelos seus títulos. “Nossa Senhora não aprendeu português para falar com Lúcia”, no Expresso. “Maria não vem do céu por aí abaixo”, no Público. Eis uma passagem com o essencial da sua posição, retirada desta última referência: “Chegou o momento para falarmos com linguagem exacta. Joseph Ratzinger no ano 2000, quando fez o comentário teológico à última parte do segredo de Fátima, usou sempre a palavra visões e esse é o rigor teológico. O grande teólogo Karl Rahner também escreveu um livro sobre visões e profecias, usando a palavra visões. Esse é o termo exacto.”
Esta leitura remate precisamente para um texto de Joseph Ratzinger escrito antes de ser eleito papa e tomar o nome Bento XVI, um texto teológico de grande densidade que foi escrito pelo então responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé a propósito da revelação, por João Paulo II, do famoso “terceiro segredo”. Esse texto, intitulado simplesmente A Mensagem de Fátima, está disponível em português no site do Vaticano.
(Sobre as circunstâncias da revelação desse “terceiro segredo” vale a pena ler a entrevista que Aura Miguel, da Rádio Renascença, fez ao Cardeal Angelo Sodano, o homem que, no ano 2000, por decisão do Papa, levantou o véu do “terceiro segredo” de no final da missa de 13 de Maio, em Fátima, quando se soube que a visão era sobre as lutas contra os cristãos e contra o “homem vestido de branco”. A sua interpretação é que dar a decisão de João Paulo II o fazer foi por querer "relançar uma mensagem de esperança”).
A interpretação desse texto e a discussão sobre se estamos perante “visões” ou “aparições” já suscitou dois textos com interpretações diferentes no Observador: o padre Gonçalo Portocarrero de Almada interrogou-se sobre o tema em Fátima (1): Aparições ou visões?, tendo defendido que “Na Cova da Iria os pastorinhos tiveram visões e não aparições, mas o valor não é menor porque, como notou Bento XVI, visões têm uma força de presença tal que equivalem à manifestação externa sensível”; já o cónego José Manuel dos Santos Ferreira, num texto com um título quase igual, Fátima: visões ou aparições?, seguiu uma linha porventura mais tradicionalista: “Também os fenómenos físicos que acompanharam os acontecimentos de Fátima e foram observados por numerosas testemunhas, não podem ser frutos de uma visão imaginativa. O seu número é impressionante. Esses fenómenos exteriores manifestam sem qualquer dúvida possível a presença efetiva de uma pessoa celeste.”
Ao mesmo tempo também há os que, dentro da Igreja Católica, contestem Fátima e o seu significado, nalguns casos de forma muito desabrida, noutras de forma mais moderada. Tânia Pereirinha do Observador falou com alguns deles em “Aquilo para mim não é Nossa Senhora, é um pedaço de barro!”. Dois padres – Anselmo Borges e Mário de Oliveira –, um frade – Frei Bento Domingues – e um bispo – D. Januário Torgal Ferreira – expuseram os seus argumentos. E se a contestação de Mário de Oliveira tem muitas décadas, a reflexão de Anselmo Borges, bem mais moderada, ficou também exposta em dois artigos no Diário de Notícias: O que eu penso sobre Fátima (1) e O que eu penso sobre Fátima (2). Nesses textos, para além de regressar ao tema das visões ou aparições, este padre considera que o núcleo da mensagem de Fátima é, “Em primeiro lugar, a oração. É uma grande mensagem? É. Para crentes e não crentes. Quem não precisa de rezar?” Já à outra mensagem, "Fazei sacrifício e penitência", considera que deve ser dado um enquadramento mais cuidadoso: “O sacrifício pelo sacrifício não vale nada, mas, por outro lado, sem sacrifício, nada de grande, de verdadeiramente valioso, se realiza”.
Ainda no domínio da teologia, uma referência para o texto de Paulo Mendes Pinto, especialista em Ciência das Religiões, na Visão: De “aparição” a “visão”: Ratzinger e a redefinição de Fátima como objecto de teologia. Eis o seu ponto de vista: “Ao definir Fátima como uma “visão”, subalterniza teologicamente o que possa ter acontecido, tornando-o “particular”, mas abre ao infinito todas as possibilidades de interpretação, dando guarida às formas mais pessoais de viver a fé. Isto é, ao libertar Fátima do peso excessivo de toda e qualquer narrativa, colocando sempre acima a Revelação bíblica, o futuro Papa dava a Fátima a possibilidade de fugir ao tempo, ao contexto e de continuadamente se poder recriar na maleabilidade e na subjectividade de cada crente no seu momento e no seu contexto específico.”
Mas de todos os textos que tenho vindo a referir, talvez o mais notável, na minha perspectiva, seja o que resultou da conversa muito franca e aberta de João Francisco Gomes, do Observador, com o bispo de Leiria/Fátima, D. António Marto: “Representava melhor o diabo do que o anjo, ironia do destino”. Nela o teólogo que confessa ter sido céptico de Fátima explica como foi evoluindo na sua posição. Primeiro: “Quando acabei o curso, era um racionalista, éramos muito racionalistas. Tudo tinha de passar pelo filtro da razão, portanto tudo o que fosse de um ponto de vista mais do aspeto emocional, sentimental, era desvalorizado. Às vezes olhávamos até com desdém, com desprezo, para as expressões de piedade popular.” E depois: “Punha em causa algumas expressões da fé (risos). Sobretudo a piedade popular, mas isso era típico de uma espécie de cultura de elites, que olha com desprezo para o que é do povo, para o que é popular. A partir daí, mudou a minha maneira de ver e de avaliar esse aspeto da piedade popular. Claro que a piedade popular também precisa de ser purificada com os critérios do Evangelho, mas tem valores profundos, que não podemos desprezar sem mais.”
Ao mesmo tempo, a estreia do mais recente do mais recente filme de João Canijo, Fátima –, um filme que acompanha um grupo de mulheres que peregrina desde Vinhais, que Eurico de Barros, no Observador, considerou que irá “ocupar um lugar especial, pelo método de elaboração e pelo ponto de vista, pela ponta inédita em que pega e pela qualidade dramática, pelo peso de verismo e pela isenção de “parti pris” e de julgamento, na filmografia nacional dedicada ao fenómeno fatimista” – suscitou também algum debate – este entre não crentes. O tiro de partida foi dado por Daniel Oliveira, no Expresso, numa coluna a que chamou Fátima, reflectiu sobre como “é difícil compreender este nosso povo sem compreender o culto mariano, a função libertadora do sacrifício e a experiência coletiva da fé.” Viu mais, pois em Fátima sinais de um “espírito comunitário” que aprecia. Fernanda Câncio veio contrariá-lo no Diário de Notícias, em Do ut des, ou Fátima, altar do egoísmo, onde defende a tese completamente oposta, a de ali só existe um “individualismo egomaníaco”.
Partindo deste filme, da entrevista de D. António Marto e também do que se diz nestes textos, eu próprio escrevi no Observador um texto assumidamente pessoal: Fátima, ou a confissão de humildade de um não-crente. Eis a forma como termino: “Não posso, nem devo, deixar de me emocionar quando olho para os peregrinos que se dirigem a Fátima animados por algo que é muito mais do que pedir uma graça, cumprir uma promessa ou simplesmente ajoelhar-se, acender uma vela e rezar. Tal como não posso deixar de pensar naquilo que não alcançamos, recordando de novo Bento XVI nessa mesma aula: “o perigo do mundo ocidental é que o homem, obcecado pela grandeza do seu saber e do seu poder, esqueça o problema da verdade”. Humanamente e simplesmente.”
A fechar, até porque este Macroscópio já vai longo, mais uma inevitável referência ao último Conversas à Quinta, Fátima, da I República à tradição do culto mariano. Como saberão eu seu o primeiro fã deste programa, não por ser o moderador, mas pela imensa qualidade dos dois "conversadores", Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto. Desta vez arrisco dizer que a conversa foi ainda foi melhor do que o habitual. Superlativa, quer pela forma como Jaime Gama enquadrou Fátima na religiosidade popular e na tradição portuguesa, quer pelo que Jaime Nogueira Pinto recordou do Portugal (e do Mundo) de 1917. Não percam (também em podcast).
E agora sim é tudo. Amanhã regresso para vos falar do Papa Francisco e do que ele representa. Tenham boas leituras e bom descanso.
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