Em vésperas do centenário, nem todo o mundo católico está a caminho de Fátima. Dois padres, um frade e um bispo explicam porquê. E criticam (uns mais do que outros) o fenómeno.
Em Novembro de 2005, o Congresso Internacional para a Nova Evangelização juntou em Lisboa mais de um milhar de católicos para discutir novas formas de aproximar Igreja e pessoas nas grandes cidades. Ao longo de uma semana, houve debates, concertos, tempos de oração, exposições e uma procissão, como tinha acontecido aliás em Viena e em Paris nos anos anteriores, e viria nos seguintes a acontecer em Bruxelas e em Budapeste — fruto da organização conjunta dos cardeais patriarcas de cada uma das cidades.
Problema, recorda D. Januário Torgal Ferreira: “Aquilo não teve grande calor”. Solução, conta também o agora bispo emérito das Forças Armadas: “O D. José Policarpo trouxe de Fátima a imagem de Nossa Senhora e foi uma apoteose!”
O episódio serve para ilustrar o que D. Januário Torgal Ferreira, 79 anos, considera um dos maiores “escândalos” decorrentes do fenómeno Fátima: “Não quero exagerar e dizer que é idolatria, mas o facto de a fé das pessoas em Nossa Senhora se prender tanto com uma imagem, que até vai pelo mundo, em digressão, obriga-me a perguntar: será que não educámos mal o povo? Escandaliza-me que as pessoas só rezem àquela imagem, que se despeçam dela a chorar, na Procissão do Adeus. Eu nunca me despeço de Nossa Senhora, porque ela está sempre comigo. Aquilo para mim não é nada, é um pedaço de barro!”
Cem anos depois das chamadas aparições de Fátima, nem todo o mundo católico concorda com a forma como a fé se construiu em torno dos três videntes sub-10 a quem, em 1917, Nossa Senhora terá aparecido em cima de uma carrasqueira com mensagens de paz, sacrifício e oração. Mais: há até quem continue a garantir que tudo não passou de um embuste — e não tenha sido excomungado por isso. Falámos com quatro críticos do fenómeno: dois padres, um frade e um bispo.
“Em Fátima até bisbilhotice celestial houve”
Natural de uma aldeia perto de Terras de Bouro, não estranhou o movimento quando, em 1953, aos 19, se mudou para a escola apostólica dos Dominicanos de Aldeia Nova, a cerca de 20 km de Fátima. Para além de ainda não ser a loucura de gente que é hoje, “já estava habituado ao problema dos santuários, as pessoas já iam muito a São Bento da Porta Aberta”, conta ao Observador Frei Bento Domingues.
Quando estudava, ia a Fátima em grupo e chegou a dormir ao relento, em vários 12 de maio, porque não havia alojamento barato –“Era prática comum aos pobres”. Hoje, aos 82 anos, não vai lá e, sem se comprometer com opiniões do género “apareceu ou não apareceu”, sustenta que, como fenómeno religioso, o português nem sequer é muito diferente dos outros que já existiam: “Como em Compostela, por exemplo, a lenda é que Santiago veio num barco de pedra, é absolutamente inverosímil. Mas se não for também não serve, é necessário saltar para fora do normal”.
“Fátima é ambígua, não sou dos encarniçados, que dizem Fátima nunca mais, nem dos que dizem que é Fátima que nos salva. Não acredito em Fátima, acredito em Deus, em Jesus Cristo e na mãe de Jesus. Naqueles fenómenos estou sem saber. Aquilo não faz parte do credo católico. Mas acredito muito em muitas pessoas cuja vida foi transformada por Fátima, há uma experiência física, espiritual e psicológica, não acho que as pessoas estejam a aldrabar”, diz.
Aquilo de que os crentes precisam, a seu ver, é de uma melhor orientação por parte dos padres na interpretação da mensagem de Fátima. “Para lá do plano metafísico, a religião também existe para o alívio das pessoas. Muitos psicólogos estão de acordo em dizer que a religião pode ser benéfica. O que falta a Fátima é uma dimensão social, de transformação da vida das pessoas. Estou muito triste por, em vez de fazer isso, o Clero andar a discutir o que o Papa vai vestir e por que cálices vai beber. Querem educar o papa Francisco na alienação em Fátima”, acusa.
Na génese, o fenómeno das aparições na Cova da Iria é de religiosidade popular, assinala Frei Bento Domingues: “Em Fátima até bisbilhotice celestial houve, algumas pessoas perguntavam à Lúcia se a Senhora lhes tinha falado de pessoas da aldeia, que já tinham morrido, e ela respondia: ‘Esta já está no Céu, aquela no Purgatório, e a outra vai ficar até ao fim do mundo’. Depois houve a manipulação do Clero, que quis inscrever o fenómeno daquelas crianças na Igreja portuguesa, que era perseguida. A Lúcia, nas suas memórias e cartas, andou sempre a reconfigurar tudo. E também confessou que os padres a ajudaram muito”.
Apesar de encontrar na autonomia religiosa que o fenómeno inventou um ponto positivo (“Cada um tem a sua Fátima, os seus problemas, os seus sonhos, acho graça a isso”), o frade dominicano não pode deixar de apontar para os dois elefantes no centro do santuário. O facto de, ao longo do último século, Fátima ter sido consolidada através de dois pilares pouco recomendáveis (ou católicos).
A saber: turismo — “É evidente que quem tomou conta dos santuários foi o turismo religioso. Fátima agora tem uma posição fantástica no país, é muito fácil ir até lá, e tem um conjunto hoteleiro invejável. A partir da primavera, para muitas pessoas, o fim de semana é ir a Fátima” –, e sacrifício, como forma de evitar construções mentais de inferno e purgatório — “Fátima é composta de imagens do catolicismo popular, aquilo que as crianças fizeram foi a objetivação do que tinham em casa: a confissão, a reza do terço, a ida à missa, a leitura da Missão Abreviada, a que na minha terra até se chamava A Vinagreira, porque eram tudo coisas de assustar, com inferno e purgatório e limbo, que entretanto o papa Bento XVI fechou”.
Irremediavelmente perdida a primeira guerra (o turismo não vai abrandar), Frei Bento Domingues diz que há sinais recentes de que a segunda pode ainda ser ganha: “No mês passado, o papa Francisco fez uma carta apostólica para colocar os santuários, até agora nas mãos dos padres, sob a alçada do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização. O Clero não deve servir-se de Fátima para assustar ou prender as pessoas. Fátima tem muitas virtualidades, mas é preciso não seguir aquilo à letra. Pode ser benéfica ou maléfica. O gosto de sofrer é uma doença, quem gostar de o fazer que vá ao psiquiatra! Há uma ideia, que já vem da Idade Média, de Santo Anselmo, de que Deus foi ofendido e nós estamos em dívida para com Ele e temos de o reparar. E sofrer, sofrer, sofrer. Isto parece-me de um ridículo atroz. Vejam só, um Deus que faz sofrer em vez de dar alegria! É uma deturpação”.
“Os senhores bispos não deviam fazer apelos para as pessoas irem a Fátima. Muita gente vai ficar na autoestrada”
“É evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima.” Foi com estas palavras, que repete ipsis verbis ao Observador, que a “bronca” rebentou. Desde a entrevista que deu ao Expresso, em abril, Anselmo Borges não tem tido mãos a medir: “Já está em inglês, em espanhol, em francês, até os alemães de uma rádio me querem entrevistar”.
O pior, garante o padre da Sociedade Missionária Portuguesa, é que a afirmação-bomba, proferida no contexto de uma explicação sobre as diferenças entre aparições e visões foi mal interpretada:”As pessoas pensaram que sou contra Fátima. Não sou, fui ordenado lá pelo cardeal Cerejeira e quando lá vou rezo na capela das Aparições. Agora, não vou lá no 13 de maio, não gosto de confusões. E até penso que os senhores bispos não deviam fazer apelos para as pessoas irem a Fátima. Muita gente vai ficar na autoestrada e vai ser uma imensa frustração”.
A distinção não é nova, foi explicada em 2000 por Joseph Ratzinger, então cardeal e perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé, mas o padre português, 72 anos, repete: “Uma aparição é uma manifestação física, é uma presença física que é vista por outras pessoas. É evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima, Maria não tem corpo físico. Em Fátima o que houve foi uma visão, uma experiência interior religiosa — autêntica, não digo que foi um delírio nem uma alucinação. Agora, é uma experiência religiosa de crianças e à maneira de crianças. Que tem de ser vista no contexto da época”.
Apesar de não colocar em questão a legitimidade das “visões”, Anselmo Borges garante que não é obrigatório acreditar em Fátima para ser católico. Primeiro, porque Fátima não é um dogma da Igreja, depois, porque a própria mensagem resultante das visões não é das mais… cristãs. “Há experiências religiosas melhores e menos boas. Que mãe é que mostrava o inferno a crianças de 10 anos?! Acredito que há ali um núcleo de experiência religiosa. Com aspetos bons — elas viram a luz — e aspetos maus — o terror que pregam.”
Mesmo adaptando as visões de Lúcia, Jacinta e Francisco à realidade sociopolítica de 1917, o padre, que acaba de publicar “Francisco: Desafios à Igreja e ao Mundo”, livro onde endereça uma série de críticas ao interior da Igreja, a partir das posições do atual Papa, é reticente relativamente à cultura de castigo e sacrifício que emana de Fátima. E também não se coíbe de fazer menção aos “arranjos e rearranjos” que a narrativa do milagre sofreu com o tempo e pela mão de Lúcia-adulta: “Lentamente apareceu a Segunda Guerra Mundial, depois o comunismo. Não percebo por exemplo porque é que em Fátima nunca houve também a condenação do nazismo“.
“A Primeira Guerra Mundial estava em curso, as crianças ouviam dizer que os soldados iam para a guerra, havia perseguição da Igreja por parte da Primeira República, e os pregadores aterrorizavam os fiéis com histórias de um Deus castigador, que devia ser compensado com penitências. Admiro a generosidade das crianças, que faziam sacrifícios pela conversão dos pecadores, mas o sacrifício pelo sacrifício não vale nada. Deus não quer que as pessoas vão a Fátima e andem ali a arrastar-se, não é isso que o Evangelho diz“, defende.
Pegando em “metanoia”, a palavra grega que dá origem ao conceito de penitência, traduz à letra e explica: “Fazer penitência é mudar de vida e de mentalidade, não é fazer sacrifícios físicos. O que é mais fácil? Andar de joelhos ou mudar de vida? Ser justo, estar interessado nos mais desgraçados — isso exige sacrifício. É isso que o Evangelho diz! E é esse o grande problema do papa Francisco: ele já se converteu ao Evangelho, agora é preciso que todos os padres e bispos se convertam também”.
Exatamente pelo mesmo motivo de fundo, Anselmo Borges não é a favor da canonização de Jacinta e Francisco, o ponto alto da celebração do centenário. Mas também não se manifesta ativamente contra: “Agora vão canonizar os dois miúdos… todas as crianças são santas, porque são inocentes. Se for uma oportunidade para que se tome consciência disto, de que todas as crianças são santas e devem ser tratadas assim, então sou a favor. Se servir para acabar com o tráfico, a exploração sexual, a violência física e psicológica e a fome, que todos os dias mata no mundo mais de 10 mil crianças, sou a favor. Esse é que seria o verdadeiro milagre”.
“A Senhora de Fátima é um mito, uma criação, não tem nada a ver com a mãe de Jesus, que é Maria”
Nasceu em 1937, duas décadas depois dos acontecimentos registados na Cova da Iria e outras tantas antes da expansão do santuário, hoje visitado por seis milhões de pessoas todos os anos. Garante que, na dúzia de anos que passou no seminário no Porto, em regime de internato, como na altura tinha de ser, nem por uma só vez ouviu falar em Nossa Senhora de Fátima.
“E os últimos quatro anos foram só Teologia! Nunca nos falaram, nem a mim nem aos meus condiscípulos, em Fátima. Nem nas aulas, nem nas missas, nem nas devoções mais particulares. Entrei em 1950, fui ordenado em 1962”, conta Mário de Oliveira, 80 anos, dois livros anti-Fátima no currículo, padre sem paróquia desde 1975.
Diz que foi em 1967, em plena guerra colonial na Guiné-Bissau, para onde foi enviado como capelão militar assim que fez 30 anos — “Cada batalhão levava um padre católico, no ano em que completássemos os 30 éramos chamados e tínhamos de ir, sob pena de sermos considerados refratários” — que conheceu os primeiros devotos de Fátima. Liderava espiritualmente um grupo bem heterogéneo: metade eram alentejanos, “que não queriam saber de missas para nada”, os restantes eram minhotos, ultra devotos que passavam a vida a fazer e a cumprir promessas e iam para as matas combater de terço ao pescoço. “Isso fez-me muita confusão, falavam de Fátima, atribuíam-lhe os tais milagres e as vitórias que tinham na guerra, pediam-me que lhes rezasse missas, para não morrerem em combate. Nunca o fiz: um padre é de toda a gente, eu era deles como era dos que eles combatiam, nunca podia rezar pela vida de uns se em causa estava a dos outros“.
Quando voltou a Portugal, quatro meses depois (“Quando perceberam que tinham ali um padre que defendia o direito dos povos à liberdade e à independência dos povos, despacharam-me”), percebeu rapidamente que o culto que tinha descoberto na colónia estava ainda mais vivo na metrópole. Primeiro na paróquia de Paredes de Viadores, no Marco de Canaveses, depois na de Macieira da Lixa, em Felgueiras, levou um banho de Fátima.
“Faziam os cantares de maio, as novenas, o rosário. Durante todo o mês, ao fim dos trabalhos nos campos, vinham rezar o terço à Igreja, cantar os cânticos e fazer uma meditaçãozinha — e os padres tinham de presidir a isso. Percebi que aquelas pessoas nunca tinham ouvido falar em Maria, mãe de Jesus, só em Nossa Senhora de Fátima! Como não pude impedir essa devoção, em vez de ter ali as pessoas a dizer 50 ave marias, resolvi fazer diferente: rezava só um mistério, 10 ave marias, e todos os dias escrevia uma meditação. Foi em 1970. Na meditação de 12 para 13 de maio falei abertamente naquilo que se fazia lá e nas promessas, nos rastejares, nos pagamentos: ‘Vedes algum bispo lá de joelhos? A dar os anéis ou a puxar da bolsa? Então porque ides para lá vocês?!‘”
Os sermões, em que também criticava recorrentemente a guerra colonial, valeram-lhe a presença de agentes da polícia política entre os fiéis e dois bilhetes de ida para Caxias — esteve detido pela PIDE, ao todo, durante 19 meses. Quando tudo acabou, padre sem paróquia, decidiu tornar-se jornalista e mergulhar ainda mais a fundo nas questões da fé (e do resto) em Fátima. Autor de dois livros: “Fátima Nunca Mais” (1999) e “Fátima S.A.” (2015), Mário de Oliveira mantém: “A Senhora de Fátima é um mito, uma criação, não tem nada a ver com a mãe de Jesus, que é Maria. Não há nenhum teólogo católico de renome internacional que aceite as chamadas aparições, sejam as de Fátima, de Lurdes ou de Guadalupe. Dizem que não é uma expressão de fé mas de medo“.
Mais do que apontar o dedo aos devotos ou aos videntes de Fátima, o padre acusa a Igreja Católica de alimentar a devoção, sem a enquadrar: “As pessoas estão em sofrimento e aquilo é um ópiozinho. Sentem-se melhor enquanto lá estão, embora depois tenham de lá ir outra vez, tomar outra dose. São devoções de religiosidade popular do mais primitivo que há, precisam de ser evangelizadas. É criminoso da parte dos bispos — e do Papa, então, nem se fala! — que alimentem esta anestesia em vez de ajudarem as pessoas a resolver os seus problemas”.
Já sobre os acontecimentos de 1917, Mário de Oliveira, cujo segundo livro é baseado na análise da Documentação Crítica de Fátima, entretanto recentemente disponibilizada, não tem dúvidas: “Aquilo foi uma encenação, um teatrinho formado pelo clero de Ourém, com guião escrito pelo cónego Formigão, que andou um mês e meio em Lourdes a estudar como se faziam milagres e depois arranjou três atores, três crianças tenrinhas da mesma família que andavam naqueles ambientes de pregação de terror que havia na paróquia de Fátima naquela altura. O clima, o ambiente, era tudo horrível. Os pregadores diziam que os pecadores iam todos para o inferno se não se arrependessem dos pecados — e depois diziam que era mais fácil encontrar um corvo branco do que um pecador ser salvo! Acredito que as crianças, neste ambiente e com a preocupação grande que tinham em agradar ao adulto, tenham acreditado. Coitada da Jacintita, que foi a mais impressionável dos três e não comia nem bebia pela conversão dos pecadores”.
Apesar de garantir que sem o cónego Manuel Nunes Formigão Fátima nunca teria existido, Mário de Oliveira enquadra o que aconteceu depois num plano muito maior, de reação de uma Igreja acossada e “a perder clientela”, contra a Primeira República que a perseguia: “Se não é dogma, se não é uma verdade fundamental para se ser padre, se não faz parte da fé, por que motivo se lhe dá tanta importância? O tempo veio a revelar que aquilo é a galinha dos ovos de ouro, no sentido não só do dinheiro mas também das multidões que ali se reúnem gratuitamente, da Igreja Católica e do Vaticano.”
Profundamente crítico do fenómeno, levanta dúvidas sobre a veracidade de alguns documentos incluídos no processo do santuário, questiona acontecimentos — passados e atuais. Como o 13 de agosto, por exemplo: “Nesse mês o governador de Ourém fez um teste e levou as crianças para a sua casa no dia 13. Na Cova de Iria não houve nada, queriam matar o padre e tudo, que as deixou ir, mas se não havia atores, como é que podia haver teatro? A ‘aparição’ teve de ser adiada para 19, quando elas voltaram, porque a senhora não se deu ao trabalho de ir ter com elas a Ourém. Curioso também é a Igreja, como agosto é o mês de os emigrantes andarem por aqui e pode lá cair muito dinheirinho em Fátima, ter posto a Peregrinação dos Emigrantes a 13. Que é um dia em que não houve nada”.
“Há pessoas que têm 40 vestidos ou blasers e nem um dão aos pobres — mas vão a Fátima”
Sem querer entrar em discussões sobre as diferenças significantes de “aparições” ou “visões”, nos planos religioso ou filosófico, mas entrando — e citando Sartre, Camus e Kant no processo –, D. Januário Torgal Ferreira encerra o assunto com vários “não sei”. Não sabe se aquilo que aconteceu em Fátima em 1917 foi uma ou outra. Ou sequer aquilo que aconteceu: “Não sei se acredito. Não tenho nada de me confessar publicamente. Uma coisa é Nossa Senhora narrada por Lúcia. Sigo mais a narrativa de São Lucas. Sei o que ela fez em Caná, quando o filho se perdeu, o que sofreu com saudades quando o filho andava a pregar, como subiu com ele o calvário”.
O que atormenta o bispo emérito das Forças Armadas no que respeita a Fátima são outras coisas. Nomeadamente o facto de o fenómeno, assumidamente popular, nunca ter sido arrancado à incultura em que surgiu e devidamente enquadrado na doutrina da Igreja Católica: “Muita gente diz, quando volta de Fátima, que lá foi ver a santinha. Como?! Qual santinha?! Aquilo é Nossa Senhora, está acima de todos os santos, é a mãe da Igreja! Isto não devia ser composto? Há muitas pessoas que até dizem que Nossa Senhora de Fátima é melhor do que a do Evangelho! Saberão que só há uma?!”
Outro aspeto de que é crítico: a troca de favores que, a arrepio da verdadeira mensagem do fenómeno, que deveria ser de amor e mudança, o povo estabeleceu com e em Fátima. “A minha maior angústia é que as pessoas reduziram Fátima a um pedido salvacionista, mas não modificam a sua própria vida em Fátima. Os adúlteros vão amantizados para Fátima e voltam de Fátima amantizados. Os que defendem o capitalismo selvagem fazem o mesmo. Há pessoas que têm 40 vestidos ou blasers e nem um dão aos pobres — mas vão a Fátima. A mensagem de Fátima veio do Evangelho e devia fazer com que as pessoas mudassem de facto o próprio coração”, lamenta.
Faz o mesmo relativamente à cultura de sacrifício que decorre de toda a interpretação popular do fenómeno: “Respeito as pessoas que vão a Fátima de joelhos em sangue, mas o Deus em que eu acredito não quer o sangue de ninguém, basta-lhe a única cruz que o filho trouxe às costas“.
Tânia Pereirinha | Observador
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