Dá aulas em Coimbra e aos fins de semana anda "atrás de pedras romanas". Adriana Calcanhotto nas suas aventuras portuguesas, acaba de lançar a Antologia Incompleta da Poesia Contemporânea Brasileira
Adriana Calcanhotto deixou por uns dias a cidade de Coimbra, onde vive desde fevereiro, para lançar a Antologia Incompleta da Poesia Contemporânea Brasileira, É agora como nunca, com 41 poetas da nova geração, publicada há meses no Brasil. O convite para professora da universidade está a resultar numa aventura de maravilhamento. Dá aulas num auditório com 500 lugares, sempre superlotado. E a antiga atração pela cultura dos romanos vai levá-la, em julho, a participar nas escavações arqueológicas de Idanha-a-Velha.
Como foi acolhida no Brasil a sua antologia?
A coisa mais polémica que existe é uma antologia. As pessoas, mesmo as que discordam, acham que é útil, necessária. Não tenho grande objetivo se não partilhar a minha escolha. A antologia é autoral, como todas as antologias são, mesmo as que se propõem não ser. Venho descobrindo os novos poetas, tanto os portugueses quanto os brasileiros. Eles produzem muito, e com o fenómeno dos sites de poesia, blogues de poesia, revistas eletrónicas, mais e mais, a produção é muito grande. Os poetas vão brotando.
No prefácio diz que é mais prático levar para férias um livro do que carregar 40. Este é suficiente para si?
Este é o meu livro de verão. Qualquer outra pessoa que pegasse os mesmos livros faria outra, mas eu resolvi partilhar a minha. O que disseram foi que até aqui não havia uma que recortasse estas pessoas, esta poética.
Esta geração?
É mais uma geração, é. Uma poesia para o século XXI. Fazer um alinhamento de um concerto, fazer um repertório para um álbum são antologias. Parto de um bruto e vou recortando, peneirando, ficando com as pepitas.
Há sempre coisas que ficam de fora?
A parte ruim de fazer uma antologia ou um alinhamento é tudo o que fica de fora. Impus-me um prazo para terminar, ou não terminaria nunca, porque eles não param de escrever, é uma poesia contemporânea. É diferente de fazer uma antologia de sonetos de Shakespeare. Se entregasse 24 horas antes ou depois, talvez não fosse exatamente a mesma. É um instantâneo do dia em que a dei à editora. Enquanto estamos a falar estão surgindo poetas.
O que mostra a vitalidade da poesia. Está sempre viva?
Sempre viva. Perguntaram-me em aulas em Coimbra se o fenómeno de a poesia ser veiculada pela música não a banaliza, não leva a que as pessoas não leiam livros de poesia. Não me parece, e a resposta está aqui. O que eu tenho na antologia são poetas que estão escrevendo em verso, e ficam fora todas as experiências que não cabem num livro físico. Não usei nada inédito, que alguém me enviou. Esse critério seria confuso, uns inéditos, outros não. Fiz uma antologia com material que qualquer pessoa pode fazer, os livros estão todos nas estantes, nos blogues, tudo já publicado. Se a escolha serviu uma pessoa, e se fui eu essa pessoa, está ótimo.
As duas masterclasses que faltam, em Coimbra, são sobre os trovadores.
A próxima é sobre os trovadores medievais, galaico-portugueses, provençais, e a última sobre os trovadores contemporâneos. Nos contemporâneos começo nos medievais mas não me detenho aí. As cantigas antigas têm um timing de nove minutos, são sextinas inteiras. E na aula dos trovadores antigos detenho-me em alguns poemas inteiros. Há um poema do Arnaut Daniel [trovador do século XIII] que canto em provençal primeiro e depois na versão em português do Augusto de Campos.
Como foi parar aos trovadores, como os descobriu?
Descobri através do Augusto de Campos, porque ele e o Haroldo de Campos traduziram vários. E também pela paixão do Ezra Pound pelo Arnaut Daniel, e pelo facto de ser o único poeta que aparece na Comédia do Dante, falando em provençal, não em italiano. Tudo isso me foi fascinando.
Está a ensinar isso numa das escolas mais antigas do mundo.
Gosto muito do que o reitor João Gabriel Silva diz: ela é muito antiga e só sobreviveu porque é aberta e gosta de avançar. Temos a ideia de que é muito tradicional e em muitas coisas é mas em outras não. É uma universidade que tem investigação de ponta em robótica.
Como têm sido estes meses?
Tem sido sensacional. Não sei o que fiz para merecer isto. Uma coisa vai levando a outra. Faço uma aula e um professor pergunta: aceitaria falar numa aula, numa turma de mestrado? As coisas vão-se desdobrando. As perguntas dos alunos fazem-me pensar. Uma masterclass é para isso, não é para despejar matéria e avaliar as pessoas. Pensam eles e penso eu. Tem sido uma experiência que eu não ousaria sonhar.
O auditório onde dá aulas tem 500 lugares. Tem tido 500 pessoas a assistir?
Tenho, e tenho suplentes. É maravilhoso ver que tanta gente está interessada.
Só vão porque estão interessados, não é obrigatório?
Vão lá para ver as aulas, são aulas contra o ensino obrigatório, contra essa ideia. O poeta Eucanaã Ferraz, numa entrevista ao Diogo Vaz Pinto, no jornal i, disse que a escola só atrapalha, com os livros obrigatórios. É-se obrigado a ler Os Maias, nem se consegue desfrutar daquilo.
Está com pena de estar quase a acabar?
Muita, passou muito rápido. Fora isso, estou a fazer outras coisas que não só a literatura, como o Portugal romano.
O Portugal romano?
Vou fazer escavações em Idanha-a-Velha. Sou fascinada pelo mundo romano, sou Calcanhotto, em qualquer lugar do mundo onde sei que há uma ruína romana vou atrás. Às vezes tenho visitas guiadas de muito nível, às vezes menos, às vezes nem há guia, mas vou . Conheci o professor Pedro Carvalho, que escavou Conímbriga e fez o Criptopórtico, entre outras coisas, e agora vai começar uma escavação em Idanha-a-Velha, que talvez seja a mais antiga cidade romana em Portugal, na fronteira com Espanha. Há resquícios de um fórum, de um templo, pedras com inscrições. E tem a coisa mais linda que já vi: as pedras estão na vida das pessoas. São uns banquinhos na frente da casa das pessoas, um dos pés com uma pedra dos templários, outro com um capitel romano virado de lado, em cima uma pedra com uma inscrição. E em cima há vasinhos com plantas. Aquilo não está roubado num museu na Inglaterra, bem iluminado, está na vida das pessoas. Pode parecer bobagem mas deixa-me fascinada. Há ali uma coisa do tempo que sinto também no Alentejo. Não sei explicar, mas é uma coisa sobre o tempo.
Tem possibilidade de fazer concertos e fazer música?
Abri mão dos concertos, seria demais para mim. Para não me afastar da música de todo, tenho aulas de guitarra elétrica em Coimbra com um professor brasileiro amigo meu que está a morar em Lisboa e vai lá. Não abri a porta para a composição, porque aparece a qualquer hora e quando estou a compor não consigo conversar direito, estou com a canção na cabeça. Embora tenha ocorrido duas vezes. Lisboa faz-me não sei o quê, chego aqui e começo a compor, tenho de controlar-me. Mas estou voltada para estes assuntos, preparar as aulas, ler textos. Li umas coisas sobre o Parangolé Pamplona [de Hélio Oiticica], uma monografia maravilhosa de uma professora que dá aulas na Holanda e que eu não conhecia, uma ligação que eu já conhecia do Haroldo de Campos com o Hélio Oiticica sobre o Parangolé e o Hagoromo, o Manto de Plumas [de Motokiyo Zeami, 1363-1443], uma peça do teatro tradicional Nô japonês. Ela junta aquilo de um jeito tão orgânico que vai parar ao Hélio. Eu estudo esse Parangolé há anos e não tinha visto esse texto. Tenho essa disponibilidade de ler monografias inteiras, textos, livros inteiros, coisa que na nossa casa por mais que queiramos não conseguimos, a vida não nos permite.
Conhecia Coimbra?
Sim, mas aquele conhecimento de chegar, ir para o hotel, para o concerto, etc. Tinha feito uma visita guiada e conheci um pouco melhor, quando fui nomeada embaixadora da Universidade de Coimbra no Brasil. Aí entrei mais em contacto com as instalações, os edifícios, os professores, mas muito dentro da universidade. Agora é que estou a viver a cidade, com essas camadas do tempo, com essa verticalidade que Coimbra tem.
Fora do tempo em que está a dar aulas - seis masterclasses ao todo - o que faz em Coimbra?
Ando atrás dos professores e não só de Letras, por exemplo os da Arqueologia e outros. Tenho alunos que fazem perguntas e eu quando pergunto - você é das Letras? Não, sou do Direito. Estão lá e querem saber coisas.
As escavações em Idanha-a-Velha são quando?
Em julho. Depois de acabar as aulas ainda faço um concerto no Festival das Artes de Coimbra, e é nesse pedaço que tenho entre o final das aulas e o concerto que vou escavar em Idanha-a-Velha.
Calcanhotto é um nome italiano?
É italiano, vem do meu pai.
Daí também o fascínio?
Acredito que tenha que ver, mas é um fascínio... Como hei de dizer? A inteligência arquitetónica romana, por exemplo... Há essa citação que o professor Eduardo Lourenço faz de Álvaro de Campos: "Uma geração só passa para a seguinte tudo aquilo que ela não foi." É o que dá essa impressão de que a humanidade não aprende. Os romanos já fizeram tudo aquilo e o Brasil não tem saneamento básico. Os romanos já sabiam tudo sobre a água. As construções medievais são feitas a partir dos alicerces dos romanos, eles já sabiam tudo. Os romanos tinham uma tolerância com a convivência religiosa, não eram intolerantes. Há uma série de coisas assim no pensamento romano. Claro que também gosto muito dos gregos mas tenho um fascínio pelos romanos, pelo legado político e arquitetónico, estético, sendo que nos gregos há coisas de que gosto mais. E aqui o Portugal romano é muito mais próximo, é uma coisa física, você tropeça em pedras, e isso não existe no Brasil, a não ser nos livros.
Tem-se deslocado muito pelo país?
Sim, aos fins de semana vou atrás das pedras romanas.
Este afastamento do Brasil, de seis ou sete meses, já lhe deu vontade de voltar?
Nunca fiquei tanto tempo fora de casa, nem mesmo nas tournées mais longas. É uma oportunidade que nunca tive. Nunca vivi fora do Brasil, nunca escolheria viver definitivamente fora. Mas é uma experiência. Pensei: não vou ficar em Portugal pensando em voltar para o Brasil. É curioso olhar para o Brasil, no momento que está a viver. Todas as pessoas do Brasil que tiveram a ideia da independência estudaram em Coimbra, passaram por isso, viram o Brasil de longe, do ponto de vista de Coimbra. É uma experiência, digamos assim, tradicional. Na hora de voltar para o Brasil, vou voltar com normalidade. Não gosto de estar num lugar querendo estar noutro. Este segundo de agora é o que temos.
Como tem sido a convivência com a Biblioteca Joanina?
Aquilo é... aquilo é uma coisa, é um templo da língua e do barroco e da ecologia - por causa dos morcegos -, é uma coisa sensacional que se dá por si. Ninguém coloca duas colónias de morcegos pensando em qualquer coisa, eles é que resolvem o problema. É magnífico. Ter cantado ali é uma das experiências mais bonitas da minha vida. Foi nos 725 anos da universidade, quando fui nomeada embaixadora, no ano passado. Fiz um concerto lá num pedestal pequeno, num dia muito frio. Aquela acústica, cantar no meio dos livros, saber que está ali a primeira edição de Os Lusíadas... Eu agora sou tricana, passo pouco por Lisboa.
Ana Sousa Dias/DN
Foto: ORLANDO ALMEIDA / GLOBAL IMAGENS
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