A frase é esta: “Tal como a pobreza, a fome, o desemprego, os baixos salários, a criminalidade, a guerra, a degradação cultural, artística, social e ambiental, também o terrorismo é resultado da acção dos NOSSOS governos. Se queremos resolver o terrorismo, temos de acabar com a política de direita aqui.” Palavra por palavra, está na página do Facebook de um deputado do PCP. Independentemente de saber se os “NOSSOS governos” inclui o governo que esse deputado apoia, o que importa nesta formulação é que ela representa o que uma parte importante da opinião pública pensa, mesmo que não o expresse nestas horas mais dolorosas. Fosse outro o Presidente dos Estados Unidos, ou ocorressem os atentados num outro país, e teríamos por certo encontrado muito mais gente a dizer e escrever coisas parecidas.
Esta frase serve contudo de pretexto para regressar ao incontornável tema do terrorismo, tornando mais forte a pergunta que é também o título deste Macroscópio: O problema é a Bélgica? Ou o problema é o Ocidente?
Já ontem aqui falámos da Bélgica, e dos seus problemas muito especiais, no facto de ser o país da Europa onde, em proporção da população é maior o número de jihadistas. Hoje, no Observador, João Almeida Dias desenvolveu o tema, em Como a Bélgica se tornou no maior viveiro de terroristas na Europa. Eis quatro dos problemas que identificou:
- A “localização estratégica” de Bruxelas, a partir de onde se pode chegar rapidamente a vários países europeus (…);
- O sentimento de “anonimato” que faz de Bruxelas “um esconderijo perfeito” onde os terroristas podem contar com a ajuda de simpatizantes;
- A falta de clérigos muçulmanos de Bruxelas abre caminho à instalação de outros que vêm de fora, inclusive alguns que são“patrocinados” pela Arábia Saudita (…);
- O tamanho “relativamente reduzido” do aparato de segurança belga, que se estima contar com cerca de 1200 operacionais (…).
Mas existem estas razões próximas, a própria natureza da Bélgica e da política que se faz num país “inventado” para servir de tampão entre a Alemanha e a França. Em 1999 o tema já chamara a atenção do grande historiador Tony Judt, que então escreveu um ensaio para a New York Review of Books intituladoIs There a Belgium? (o artigo tem paywall na NYRB, mas pode ser lido na íntegra aqui). É um ensaio muito interessante que ajuda a explicar muita coisa, e de que vos deixo apenas uma breve passagem: “Belgium has two distinguishing features. First, the pervasive system of patronage, which begins in village councils and reaches to the apex of the state, has reduced political parties largely to vehicles for the distribution of personal favors. In a small country where everyone knows someone in a position to do something for them, the notion of an autonomous, dispassionate, neutral state barely exists. As Belgium’s current prime minister, Guy Verhofstadt, said in the mid-Eighties, Belgium is little more than a party kleptocracy.”
Duas leituras complementares, ambas bastante interessantes:
- What’s the Matter With Belgium?, um trabalho da The Atlantic realizado pouco depois de se ter percebido que alguns dos jihadistas dos atentados de Paris tinham vindo de Bruxelas. Isto é, do seu hoje famoso bairro de Molenbeek: “Daily life in Molenbeek works well—but that’s maybe what has fooled us: that in ordinary life, there are no difficulties,” Schepmans, the mayor, said. “And next to that, there are people living in the shadow. And we have left them living in the shadow. We didn’t ask ourselves the right questions.”
- Journey to Jihad é uma excelente reportagem da New Yorker, saída já em Junho do ano passado, e que nos relata como cidades como Bruxelas ou Antuérpia são hoje incubadoras de islamistas radicais. Aí se conta, por dentro e com detalhe, a história de um dos grupos por eles formados, o Sharia4Belgium.
Ainda sobre a Bélgica, uma referência final a uma análise saída na alemã Spiegel e escrita já depois dos atentados, Europe's Underbelly: Brussels Is the Ultimate Soft Target. Nela se explica porque é que “Nowhere in Europe is it easier to plan and carry out a terrorist attack.” Eis uma das razões: “Belgium's society, government and structures spent years, perhaps decades, underestimating the problem posed by violent Islamists. Salah Abdeslam, who was involved in the Paris attacks, was able to hide out here for four months after the attack with friends, family and acquaintances. He was even seen at the barber getting his hair cut and at a shop buying clothes. Apparently nobody thought to notify the police.”
Mas talvez estejamos a ser injustos com os compatriotas do pobre Tintim. A desorganização belga e a ineficiência dos seus governos não explicam tudo. Para muitos vivem-se naquele país problemas comuns a outras partes da Europa. A começar pela atitude com que se encara a ameaça do radicalismo islâmico.The West won’t even defend its own values. How can it be expected to defeat Isis?, interrogava-se hoje na Spectator Brendan O'Neill. Eis um dos seus pontos: “Listening to our leaders’ heated talk about fighting fascists and watching their less-than-heated action in Syria, we’re left with this stickler: either they don’t believe their own rhetoric about Isis being a grave moral threat and thus are quite chilled out about attacking it, or they do believe it but lack the bottle, the moral resolve, to fight Isis for real. I think it’s the latter.”
No Observador, José Pinto, professor universitário e politólogo fazia um apelo – Atentados de Bruxelas: Acorda Ocidente! – enquanto Maria João Marques era mais concreta, ao centrar na defesa dos direitos das mulheres uma das linhas de fronteira que temos de defender se queremos defender os nossos valores. EmJe suis já nem sei o quê sustentou, por exemplo, que existe entre nós uma errada desculpabilização do islão. E conclui: “Não tenho soluções para o terrorismo. Mas sei que enquanto diligentemente fizermos por ignorar este mal sob o sol que cresce nas comunidades muçulmanas residentes na Europa, enquanto não afirmarmos com contundência (inclusive judicial e penal) que os valores europeus são incompatíveis com o estatuto das mulheres no islão (um exemplo), estaremos a apimentar o caldo periclitante. O primeiro passo para resolver um problema costuma ser perceber onde está e qual é.”
Há, claro, toda uma discussão nas páginas de análise e comentário sobre o que fazer. Com abordagens que naturalmente cruzam o Atlântico. Eis alguns pontos de vista a merecer referência:
- From Syria to Brussels, o editorial do Wall Street Journal: “Tuesday’s Brussels attacks, and Paris and San Bernardino, Calif., before, are mainly an indictment of Western foreign-policy failures in Syria. Terrorists linked to Islamic State, which Western governments initially ignored and now claim to be “degrading and destroying,” are perpetrating one large attack after another in the West. Islamist attacks large and small around the world have become a daily occurrence.”
- The long war against Islamic extremism, o editorial do londrino Telegraph: “It is inevitable that the location of the latest attacks will invite debate about the European Union, its members’ security, and Britain’s role in that union. Among the lessons to be drawn, one of the foremost is surely that an organisation where members share responsibility for security is one where the weakness of one is the concern of all. Belgium’s response to extremism is evidently in need of improvement, a task that all EU members should support in due course.”
- The Islamic State’s European Front, uma opinião de Daniel Byman no New York Times: “Europe also faces another difficulty: Muslim integration. Across the Continent, Muslims often feel alienated from the broader population. Trust in the police and security services is particularly low. In the United States, many plots are disrupted because the American Muslim community reports them to the police and the F.B.I.; such trust is lacking in Europe.”
- Why Europe can’t fix its terrorism problem, um artigo do embaixador norte-americano Daniel Benjamin na edição europeia do Politico: “One big reason why the chances of a Brussels or Paris-like attack are lower here is that we’ve been working flat out to reduce the threat for almost 15 years, since 9/11. With one of the worst extremism problems in the West, Britain has gone hard at this as well. But the same cannot be said for our Continental cousins. The United States has spent upwards of $650 billion on homeland security since 9/11. No comparable European statistic exists, but judging by law enforcement, border security and other agency budgets, the overall figures are much lower. The numerous French government foul-ups in the run-up and aftermath of the Paris attacks tell the story.”
- As lágrimas impotentes de Mogherini, de Teresa de Sousa, no Público: “Há hoje na Europa 25 milhões de cidadãos de origem muçulmana, o Islão é uma religião europeia, a Europa não consegue nem nunca conseguiu ser um continente fechado sobre si próprio. Mas também não é dizendo que o Islão é uma religião de paz, limitando o terrorismo islâmico a um pequeno grupo de maus intérpretes do cânone, que se devolve a confiança das pessoas.”
Por vezes não temos noção da dimensão da ameaça, e do ritmo dos atentados, pois só raramente eles ocorrem numa capital europeia. Por isso vale a pena recordar, como faz Sohrab Ahmari no Wall Street Journal, Global Jihad’s Deadly Calendar. Senão vejam a sequência dos dez dias que precederam o ataque de Bruxelas:
On Sunday, March 13, jihadists sprayed gunfire on sunbathers in Grand Bassam, a resort town in the Ivory Coast popular with Westerners and wealthy Ivorians. (…)
On Monday, March 14, two Palestinians fired on Israelis waiting at a bus stop in Kiryat Arba, in the West Bank, wounding one soldier before Israeli forces killed both. (…)
On Tuesday, March 15, al Qaeda’s Somali franchise, al-Shabaab, kidnapped three Red Crescent aid workers in the country’s southwest, according to local media. (…) The aid workers were freed a day later after local villagers pleaded for their release.
On Wednesday, March 16, a pair of female suicide bombers blew themselves up at a mosque in Nigeria, killing 24. (…)
On Thursday, March 17, the stabbing intifada claimed a fresh victim when a pair of Palestinian terrorists jumped and wounded an Israeli soldier with a knife in Ariel, in the West Bank. (…)
On Friday, March 18, suspected al Qaeda fighters fired rockets at the Salah gas facility in Algeria. No one was injured, but BP and Norwegian oil giant Statoil withdrew some staff and suspended operations.
On Saturday, March 19, a bomb went off in a tony shopping district of Istanbul, killing three Israelis (two of whom were U.S. citizens) and one Iranian, and wounding 39 others. (…) The same day, a mortar assault on a checkpoint in El-Arish, Egypt, killed 15 policemen. (…)
On Sunday, March 20, al-Shabaab overran a Somali military base just 28 miles from the capital, Mogadishu, killing at least one person and seizing several vehicles. (…)
On Monday, March 21, Islamist fighters likely affiliated with al Qaeda in the Islamic Maghreb targeted a hotel in the capital of Mali, Bamako, that houses a European Union military-assistance mission. (…)
Esta última citação foi bastante longa, como longo é o ensaio que recomendo a fechar este Macroscópio. Tal como a leitura que sugeri a abrir, de Tony Judt, trata-se de um texto que certamente enriquecerá uma Páscoa de leituras, sobretudo se o mau tempo nos fizer ficar em casa. O texto é sobre nós, o Ocidente, e a eterna questão se a nossa civilização passa ou não por um período de crise. Saiu na Standpoint, é do seu director Daniel Jonhson, e chama-se Western Civilisation In Crisis, Deixo-vos apenas um pequeno aperitivo: “Europe was the first region to create what we now think of as Western civilisation. Will Europe be the first to renounce that civilisation? Not being a prophet, I have no idea. But I do know that the crisis of Western civilisation, its loss of roots and identity, will afflict us for a long time to come. To survive, our civilisation will have to adapt — even reinvent itself — as it has done before. It must change in order to remain the same. People speak of the “values” of our civilisation, to which we adhere, or not, as the case may be. (…) The Western values that will emerge must at once be very old and entirely new, proof against the ravages of relativism but also opening up a horizon that is not overshadowed by death, but restores to life its value sub specie aeternitatis.”
Despeço-me por hoje e por esta semana. O Macroscópio regressará apenas na próxima segunda-feira. Tenham todos uma boa Páscoa.
“Jeremiah lamentando a destruição de Jerusalem”, Rembrandt, c.1630
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