segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Macroscópio – Um dia de recordações. E lições

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Um pouco por todo o mundo, há hoje muitos milhões que recordam as canções de George Michael – sobretudo se eram adolescentes na década de 1980 – pois ele foi mais um ícone da música pop que desapareceu neste ano de 2016. Um ano ingrato, já o sabemos. Mas George Michael não é, como se costuma dizer, a minha praia pelo que, mesmo sem deixar de recomendar a leitura de Bruno Vieira Amaral – É melhor ser alegre do que ser triste –, preferi dedicar este Macroscópio a outras recordações. Começando pelas do fim de um império, o soviético, que acabou formalmente há exactamente 25 anos, num 25 de Dezembro em que Gorbatchov anunciou a sua renúncia à Presidência de um país que já não existia.
 
Isso mesmo recorda no Observador José Milhazes, que viveu esses acontecimentos por dentro, em A bandeira foi arreada, mas não para todos. É um texto que recapitula o que então se passou mas também aborda a actual realidade da Rússia, onde a nostalgia do império ainda marca os dias: “Segundo um estudo de opinião pública do Levada-Tzentr, publicado a 5 de dezembro deste ano, é verdade que mais de metade dos inquiridos lamenta o fim da URSS (56%), mas também é de salientar que apenas 12% defendem o seu restabelecimento.”
 
Na verdade, como se escreve num dossier especial da Foreign Policy, The Soviet Union Is Gone, But It’s Still Collapsing. Esse trabalho abre precisamente com textos de cinco especialistas que procuram fixar algumas lições desse processo, nomeadamente a de que a morte de um império nunca é súbita: como escreve Serhii Plokhy, professor em Harvard, “The redrawing of post-imperial borders to reflect the importance of nationality, language, and culture has generally come about as a result of conflicts and wars, some of which went on for decades, if not centuries. (…) The ongoing war in eastern Ukraine is not the only reminder that the process of Soviet disintegration is still incomplete. Other such reminders are the frozen or semi-frozen conflicts in Transnistria, Abkhazia, South Ossetia, Nagorno-Karabakh, and the semi-independent state of Chechnya.”
 
O império, de resto, ao desaparecer deixou órfãs algumas das suas nacionalidades, como recorda o jornalista e investigador Ahmed Rashid, no Diário de Notícias, em 25 anos atrás a Ásia central tornou-se relutantemente independente: “Os líderes da Ásia Central não queriam nada com a independência. Eles temiam não serem capazes de governar Estados independentes e não terem as capacidades necessárias para gerir os seus próprios assuntos - algo que não faziam desde a revolução de 1917.” Paradoxal, mas revelador e pesado de consequências, pois “Os seus sistemas políticos nunca se desenvolveram depois de 1991 e, com exceção do Quirguizistão, continuam a ser ditaduras de partido único. Os seus sistemas políticos moribundos e a recusa da mudança mergulharam as populações em desespero e levaram a um êxodo maciço de pessoas.”
 
O que se passou nessas repúblicas, onde por regra os antigos chefes locais do Partido Comunista se fizeram eleger para a presidências dos novos estados, representa uma das consequências indesejadas de um processo que Michail Gorbatchov desencadeou mas depois não controlou. É por isso interessante ler Could Mikhail Gorbachev Have Saved the Soviet Union?, um ensaio de Chris Miller de novo na Foreign Policy e onde este especialista compara a forma como o último líder soviético promoveu as reformas a que chamou “perestroika” com aquelas que, ao mesmo tempo, Deng Xiaoping estava a promover noutro imenso império comunista, a China. Deixo-vos a sua conclusão: “The reason why Gorbachev lost out is not because the Soviet economy was unreformable. China’s example proved that the transition from a centrally planned to a market economy was possible. Rather, the Soviet Union collapsed because vast political power was entrusted to groups that had every reason to sabotage the efforts to resolve the country’s decades-long financial dilemmas.
 
Ora foram precisamente estas dificuldades, assim como a discussão do processo que acabaria por levar ao fim do “país dos sovietes” fundado por Lenine em 1917, que esteve à mesa do último Conversas à Quinta. Em A URSS acabou há 25 anos. Obrigado Gorbachov? debati com Jaime Nogueira Pinto e Jaime Gama o porquê da queda de um império que, dez anos antes, ainda parecia capaz de dominar o mundo e triunfar na Guerra Fria. Foi uma conversa informada e, para mais, animada pela evocação de memórias pessoais de quem, nesses tempos, vivia por dentro a política internacional.
 
A fechar este bloco, um texto de alguém que também conheceu este mundo por dentro, pois foi militante comunista. Falo de Antonio Elorza, um académico espanhol que, no El Pais, em El fin del comunismo, é lapidar: “Resulta preciso volver a Lenin para entender hasta qué punto era irreformable el comunismo soviético, basado en la eliminación de la democracia y de todo pluralismo mediante la violencia de Estado. Lo probó el fracaso de los intentos finales del propio Lenin por hacer del partido “una gota en el mar del pueblo”. Su dictadura del partido-Estado desembocaba inevitablemente en Stalin.”

 

Salto agora para outros temas, numa rápida selecção em procuro chamar a atenção para reflexões que me parecem importantes sobre temas que dominam a actualidade – e nos interpelam. Um desses é o que se passou em Alepo, uma tragédia que já referimos muitas vezes e sobre a qual muitos lamentaram a indiferença, ou impotência, do Ocidente. Um deles foi John McCain, senador americano e antigo candidato presidencial republicano, que no Washington Post, We have a stake in Syria, yet we have done nothing, é muito duro e directo: “The mass graves are before us, and the name Aleppo will echo through history, like Srebrenica and Rwanda, as a testament to our moral failure and everlasting shame.” Contudo, nota a The Economist, Aleppo presents a moral dilemma for Christian leaders. Isto porque os cristãos são perseguidos pela generalidade dos rebeldes e “protegidos” regime de Assad: “The reaction of global Christianity to the unfolding drama in northern Syria has been muffled and contradictory. There are good reasons for that. The leaders of Syria's local churches have generally looked to President Bashar al-Assad as their protector; and their feeling that only Mr Assad guarantees their lives has deepened as the conflict has polarised, with fundamentalist Sunni fighters, murderously hostile to all other faiths, on one side and government forces backed by Shia militias and Russian air power on the other. In this state of affairs, only the latter coalition seems to offer Christian churches any chance of prolonging their precarious existence.” (Sobre este tema recordo a entrevista à freira que escapou várias vezes da morte “por minutos”, um trabalho de João Francisco Gomes no Observador e onde a irmã Maria de Guadalupe Rodrigo, uma argentina, recorda a sua experiência na cidade-mártir.)
 
Temas difíceis, reflexões por vezes complexas que exigem cultura, inteligência e abertura de espírito, algo que encontramos em A Christian Answer to the Age of Terror, uma entrevista do Wall Street Journal ao Cardeal de Viena, Christoph Schönborn. Não sendo fácil de resumir, destaco dela uma passagem significativa, sobretudo nestes dias de rescaldo do que se passou em Berlim: “The physical insecurity and social incohesion created by ill-assimilated Muslim communities are there, to be sure. But these things are byproducts of the West’s own existential confusion. “The real challenge is: What does it mean for the Christian roots of Europe?” asks the cardinal. Christianity, he says, is a “missionary religion by its founder. Jesus said, Go and make all nations my disciples, teach them what I taught you, baptize them. And a similar thing is true for Islam.”
 
Timothy Garton Ash, o historiador de Oxford que temos citado muitas vezes nesta newsletter e de quem agora o Observador tem a honra de publicar as suas colunas – a primeira, precisamente sobre Berlim, foi editada a semana passada: Se a Alemanha ceder, que o céu nos ajude a todos – publicou no Financial Times sobre um dos temas mais sensíveis do ano que termina, o da chamada “pós-verdade” e como a podemos contrariar no tempo das redes sociais. Em What to do when the ‘truth’ is found to be lies, Garton Ash recorda que se “Orwell and Solzhenitsyn did not surrender in the face of Goebbels and Stalin, it would be pathetic for us to give up now. There are numerous ways in which the post-fact threat can be countered to make 2017 the year of anti-post-fact.” Depois, abordando o papel de gigantes como o Google e o Facebook, nota: “How can we check the workings of the algorithm if only Facebook has access to all the data? Facebook’s great power, like all other kinds of power, needs to be scrutinised and held to account. Yet we should be careful what we wish for. Mr Zuckerberg is right that Facebook should not be asked to become an “arbiter of truth”.


Para me despedir com uma nota de optimismo – e o optimismo informado é sempre muito importante – quero sugerir-vos que consultem um interessante trabalho do site Our World in Data, pois através dele percebemos como a Humanidade tem, apesar de todas as nossas queixas, progredido imenso. Trata-se de A history of global living conditions in 5 charts, que na verdade são um pouco mais de cinco cartas, pois além das que reproduzo acima ainda há mais algumas a merecer atenção e reflexão. Como aí se explica, “For our history to be a source of encouragement we have to know our history. (…) Because our hopes and efforts for building a better future are inextricably linked to our perception of the past it is important to understand and communicate the global development up to now. A positive lookout on the efforts of ourselves and our fellow humans is a vital condition to the fruitfulness of our endeavors. Knowing that we have come a long way in improving living conditions and the notion that our work is worthwhile is to us all what self-respect is to individuals. (…) Freedom is impossible without faith in free people. And if we are not aware of our history and falsely believe the opposite of what is true we risk losing faith in each other.” 
 
E por hoje, com esta nota mais feliz – mais natalícia? gostava de acreditar que sim – termino uma resenha que, espero, tenha sido útil. Tenham bom descanso e melhores leituras. 

 
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