sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Macroscópio – À entrada daquele fim-de-semana especial, uma newsletter especial

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Sexta-feira, fim da tarde, princípio da noite, muitos leitores – imagino eu – a preparem um período mais prolongado de descanso, porventura de folia carnavalesca. E o Macroscópio, que ainda hesitei se devia dedicar a alguns desenvolvimentos poucos saudáveis da política doméstica, opta também por uma espécie de intervalo. Em vez de ter um só tema, vai ter muitos, tantos como os artigos que escolhi, quase todos eles leituras de algum fôlego, todos leituras que me pareceram interessantes, nalguns casos mais lúdicas, noutros desafiando ideias feitas, noutros ainda permitindo aprofundar alguns dos temas recorrentes nesta newsletter. Vamos então a uma selecção que, espero, possa server de guia para quem quiser dedicar algum tempo à leitura nestes dias a meio-gás que vão até terça-feira de Carnaval.
 
Começo por chamar a atenção para quatro especiais do Observador dos últimos dias, textos que merecem ser lidos, até pelo seu lado às vezes surpreendente:
  • “Tenho aprendido muito com o meu AVC. Mas não precisava dele para nada”, uma entrevista de vida de Marlene Carriço ao psiquiatra Carlos Amaral Dias, que, aos 71 anos, a recebeu “na sua casa no centro de Lisboa, que é também o seu consultório, e, entre livros e quadros, falou connosco sobre a sua infância e o amigo imaginário, o amor e a paixão, a relação “ambivalente” com a filha Joana Amaral Dias no que toca a ideais políticos, a “filha-neta” e o trauma da morte da mãe. E sobre cannabis. Precisou de ajuda na hora de se sentar e também para se levantar. As sequelas do AVC (acidente vascular cerebral) que teve há cinco anos são muitas e a conversa não poderia ter fugido desse assunto.” Uma conversa que é uma lição de vida.
  • O modus operandi do blogger que defendia Sócrates, onde Vítor Matos e Miguel Santos recordam como funcionava, e para que servia, o temível “Câmara Corporativa”, um blogue onde assinava um misterioso “Miguel Abrantes”, nome que encobria, porventura entre outros, António Costa Peixoto, um economista reformado que caiu nos nos radares da Operação Marquês por causa das alegadas avenças pagas pelo ex-PM. Como se recorda detalhadamente num texto que é também uma viagem ao passado e a certos métodos de luta política, “O blogue foi uma das principais armas de comunicação do período socrático: além fazer um permanente levantamento dos artigos de opinião mais favoráveis a José Sócrates e ao seu Governo, os autores da página nunca se coibiram de criticar fortemente todos os adversários do ex-primeiro-ministro — e sempre sob a proteção do anonimato. A perda de influência da página coincidiu com a diminuição do fulgor da blogosfera, mas a verdadeira identidade de “Miguel Abrantes”, o misterioso pseudónimo que assinava grande parte das publicações, e as alegadas ligações da página ao aparelho socrático chegaram ao radar dos investigadores da Operação Marquês.”
  • Ciência vs. Deus. Um cientista e um padre entram num bar… é um trabalho de João Francisco Gomes que foi conversar com o físico Carlos Fiolhais e o jesuíta Guy Consolmagno, diretor do Observatório do Vaticano, a propósito da passagem dos 90 anos da teoria do Big Bang. Porquê? Porque… “Em 1927, o astrónomo belga Georges Lemaitre dava os primeiros passos rumo à hipótese que hoje é conhecida como teoria do Big Bang. Naquela altura, Lemaitre propôs a ideia de que o universo teria de estar em constante expansão e sugeriu a hipótese do átomo primordial — uma única partícula estaria na origem de tudo. As origens dessa ideia do Big Bang como momento criador do universo são habitualmente atribuídas ao astrónomo americano Edwin Hubble (…). De facto foi ele quem viria, mais tarde, a desenvolver e a confirmar a teoria. Mas a verdade é que a hipótese foi avançada primeiro por Lemaitre. Lemaitre que, além de astrofísico, era um padre católico. Isso mesmo. A teoria que, aparentemente, contradiz tudo o que a Igreja Católica afirma sobre a criação do Universo foi proposta por um padre católico.”
  • Na Lisboa renascentista cabia o Mundo inteiro, considera Rita Cipriano numa reportagem que nos apresenta mais uma exposição importante patente em Lisboa (as outras são as das obras de Amadeo Souza-Cardoso no Museu de Arte Contemporânea e a de Almada Negreiros na Gulbenkian). Trata-se da nova exposição do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), A Cidade Global, uma mostra que tem uma história para contar: “Tudo começou há muito, muito tempo, numa pequena loja de antiguidades no norte de Londres. Foi aí que, num dia cinzento de abril de 1866, Dante Gabriel Rossetti descobriu o quadro que hoje abre a mostra do museu lisboeta.” Se estiver por Lisboa, é mais uma opção que vale a pena ser considerada – afinal nem só de mascaradas se faz um Carnaval.
 

Deixo agora o Observador, e também as sugestões vindas da imprensa portuguesa, para saltitar um pouco pela Europa e pelos Estados Unidos. A minha primeira paragem é na Holanda, já que o Financial Times nos levou a conhecer a pequena povoação de Oude Pekela, na Holanda, a mais pobre do país, uma terra onde os seus repórteres foram para procurar respostas à pergunta Is far-right populism winning in the Netherlands? Escreve Simon Kuper que “The first thing you notice is how much richer it looks than poor towns in Britain or France. If this is the poorest village in the Netherlands, then the Netherlands is in pretty good shape. The Dutch state is very present here.” Só que as aparências podem iludir e, como se compreenderá lendo a interessante reportagem, “Last year’s events in Oude Pekela can read like a standard story of our time: a poor white village tells an out-of-touch elite that (to use the Volkskrant’s phrase) asylum-seekers “are no good”. In this narrative, Wilders replaces the communist Fré Meis as the voice of “the people”.”
 
Na verdade o bem estar não é tudo, como Philip Stephens recorda, no mesmo Financial Times, um texto que, não reflectindo sobre o populismo na Holanda, não deixa de recordar palavras antigas que podem soar hoje muito actuais. Em What George Orwell would have made of Donald Trump sublinha precisamente que “The energy of populist insurgents is about more than flat living standards”, socorrendo-se para isso daquilo que Orwell’s escreveu em 1940 sobre o livro de Hitler Mein Kampf: “Orwell reflected on the complacency of that era’s progressives. The ruling assumption had been that material welfare — the greatest happiness of the greatest number — would safeguard the prevailing order. But, in Orwell’s words, “human beings don’t only want comfort, safety, short working hours, hygiene, birth control and, in general, common sense; they also, at least intermittently, want struggle and self-sacrifice, not to mention drums, flags and loyalty-parades”. It helps, he might have added, if the promised struggle is rooted in identity, with “the other” — be they Jews or Muslims — the enemy.” Dá que pensar, não dá?
1862574
 
Mas regressemos à Europa e aos seus problemas, e regressemos aos sempre controverso e iconoclasta colunista do Telegraph Ambrose Evans-Pritchard que, em Unpayable debts and an existential EU financial crisis - are eurozone central banks still solvent?, chama a atenção para os riscos existentes em França – “The wild card is that France's divided Left could suppress their bitter differences and team up behind the Socialist candidate Benoît Hamon on an ultra-radical ticket, securing him a runoff fight against Ms Le Pen. The French would then face a choice between the hard-Left and the hard-Right, both committed to a destruction of the current order. That contest would be too close to call.” – e em Itália – “Anything could happen over coming months (…) in Italy where the ruling Democratic Party is tearing itself apart. (…) As matters now stand, four Italian parties with half the seats in parliament are flirting with a return to the lira, and they are edging towards a loose alliance.”
 
Se o euro não nos dá descanso, a Rússia também não. Por isso sugiro uma visita à cidade natal de Kant, pela mão conhecedora de Daniel Johnson da Standpoint, que em The Kaliningrad Contingency nos conta como esse enclave que actualmente faz parte da Rússia é um perigo para a paz na Europa e para a NATO: “Today Kaliningrad resembles Mordor in The Lord of the Rings: a shadowland dominated by the all-seeing towers of the Russian intelligence agencies. It houses an arsenal of tactical nuclear weapons capable of devastating north-eastern Europe, the most likely theatre of war after Ukraine. No credible defence of the Baltic states is possible as long as this Russian bridgehead remains to the rear of Nato forces, far behind the eastern borders of the Western alliance. Kaliningrad is a time bomb waiting to explode.

 
Como não podia deixar de ser, nos tempos de correm um Macroscópio sem Trump não é Macroscópio que se preze, sendo que para hoje escolhi quatro textos com o seu quê de provocatório. Começo por um de grande utilidade, pois é sobre os livros que Steve Banon, o controverso conselheiro estratégico do Presidente, lê e dá a ler. Eliana Johnson e Eli Stokols do Politico falam-nos deles em What Steve Bannon Wants You to Read: “Bannon, described by one associate as “the most well-read person in Washington,” is known for recommending books to colleagues and friends, according to multiple people who have worked alongside him. He is a voracious reader who devours works of history and political theory “in like an hour,” said a former associate whom Bannon urged to read Sun Tzu’s The Art of War. “He’s like the Rain Man of nationalism.”
 
O segundo é uma crítica violenta ao jornalismo que hoje se faz nos Estados Unidos. Saiu na revista judaica The Tablet e recorda com nostalgia os tempos em que publicações como a nova-iorquina Village Voice era capaz de investigar os negócios imobiliários dos Trump quando agora não há investigação decente sobre as suas relações com a Rússia, por exemplo. É um texto muito duro que tem como referência um icónico jornalista americano: Wayne Barrett, Donald Trump, and the Death of the American Press. Lee Smith defende que os problemas começam pela perda de centralidade da imprensa, mas não se ficam por aí: “What was once known as the prestige media became indistinguishable from the other stuff that Facebook gives away. Was it The New York Times or BuzzFeed that published that video about cats terrorized by cucumbers? Or was it Fake News because, in fact, cats aren’t scared of vegetables? It doesn’t matter where it came from, because there is no longer any hierarchy in the press. The media, as Thomas Friedman might say, is flat.” E o pior é que, nos anos de Obama, o jornalismo abdicou por completo do seu espírito crítico, tornando-se quase militante: “But it was all OK for the press to humiliate and threaten Obama’s opponents in accordance with the talking points provided by Obama administration officials—they were helping the president prevent another senseless war. That’s for history to decide. What everyone saw at the time was that the press had put itself in the service of executive power. This was no longer simply tilting left, rather, it was turning an American political institution against the American public.” É uma peça longa, bem argumentada, que nos custa a engolir, a nós jornalistas, mas que deve merecer a nossa atenção.
 
E já agora que estamos a olhar para onde não costumamos olhar, eis dois textos que, mesmo sem darem credibilidade às referências de Trump à Suécia, nos contam como nem tudo corre bem nesse país no que se refere à política de imigração:
How Sweden became an example of how not to handle immigration é um trabalho de Tove Lifvendahl na Spectator, por acaso publicado antes das declarações do Presidente dos Estados Unidos, onde este suece defende que “We’ve taken in far too many people and we’re letting them down badly – especially the children”. Algo que justifica assim: “Sweden accepts more refugees in proportion to size of population than any other nation in the developed world — when it comes to offering shelter, no one does it better. But when it comes to integrating those we take in (or finding the extra housing, schools and healthcare needed for them), we don’t do so well. It may be news to the rest of the world, but gang warfare has been a feature of our country for years now. Stockholm has been witness to Dickensian scenes of young pickpockets and thieves playing games of cat-and-mouse with the police, who feel powerless. Until fairly recently, Sweden was admired for its progressive social policies. Today, one in seven voters supports the Sweden Democrats, a populist party until recently reviled in polite Swedish society.”
They won't admit it in Stockholm, but Donald Trump is right about immigration in Sweden, crónica de Fraser Nelson no Telegraph, coloca o dedo noutras feridas, até porque já foi escrito depois dos distúrbios do passado fim-de-semana num subúrbio de Estocolmo: “In so many fields – technology, music, retail – there are Swedish firms leading the world. But its social model, created from the best of intentions, has ended up incubating a violent underworld in which too many immigrants are ensnared. As a friend of mine puts it, Sweden is still “10 parts heaven to one part hell” and you can avoid the hell (if you’re not a refugee). But the problems it now faces are hideous: shadow societies, mafia courts, gangland killings and conundrums like how to handle adult refugees who turn up with a child bride in tow. And how to pacify  suburbs that are slipping out of police control.

 
A terminar, um pequeno rebuçado, ou seja, uma leitura completamente diferente – e surpreendente. Também a encontrei na Spectator e o título é bem chamativo: The Islamic world did liberalise – but then came the first world war. Neste ensaio Christopher de Bellaigue, autor de um livro que acaba de ser publicado, The Islamic Enlightenment, defende uma tese que surpreenderá muitos leitores. Pequeno extracto: “One of the reasons why Islam’s liberal moment was never revived was its association with an avowedly liberal West that in fact behaved anything but liberally; this confusion of message and messenger fuelled the Muslim Brotherhood and subsequent Islamist movements, while defenders of a measured westernisation such as the secular-minded Iranian prime minister Mohammad Mossadegh were rewarded for their political independence with the hostility of the West.”
 
Foi um Macroscópio um pouco mais longo do que o habitual, mas talvez os meus leitores também disponham por estes dias mais tempo do que o habitual para ler. Tenham um bom descanso.
 
 
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2017 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa

Nenhum comentário:

Postar um comentário