quinta-feira, 14 de abril de 2016

Morte, Separação, Perdas e o Processo de Luto

KOVÁCS, Maria Júlia (Cord.) – Morte e Desenvolvimento Humano – São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.
 
O famoso cemitério Père-Lachaise
A morte do outro se configura como a vivência da morte em vida. É a possibilidade de experiência da morte que não é a própria, mas é vivida como se uma parte nossa morresse, uma parte ligada ao outro pelos vínculos estabelecidos.

A perda e a sua elaboração são elementos contínuos no processo de desenvolvimento humano. É neste sentido que a perda pode ser chamada de morte “consciente” ou morte vivida.

Na representação de morte estão envolvidas duas pessoas: uma que é a “perdida” e a outra que lamenta essa falta. Como a morte não pode ser vivida concretamente, a única morte experienciada é a perda, quer concreta, quer simbólica. Ver a perda como fatalidade, ocultar os sentimentos, eliminar a dor, apontar o crescimento possível diante dela, podem ser formas de negar os sentimentos que a morte provoca, para não sofrer.

Sabe-se que a expressão de sentimentos nessas ocasiões é fundamental para o desenvolvimento do processo de luto. No entanto, as manifestações diante das perdas sofreram alterações no decorrer dos tempos. Segundo Ariès (1977), na Idade Média era autorizada a manifestação dos sentimentos diante da morte. Com o desenvolvimento do poder da Igreja, esta passou a exigir uma atitude mais contida e digna, assumindo o controle dão rituais e ditando as formas de comportamento adequadas. No século XIX, a morte romântica traz em seu bojo a ideia de morte como uma ruptura insuportável, porque representa a morte do outro. Já no século XX, ainda segundo Ariès (1977), há uma supressão da manifestação do luto, a sociedade condena a expressão e a vivência da dor, atribuindo-lhes uma qualidade de fraqueza.

O processo de luto por definição é um conjunto de reacções diante de uma perda. Bowlby (1985) refere-se às quatro fases do luto:

A primeira seria a fase do choque que tem a duração de algumas horas ou semanas e pode vir acompanhada de manifestações de desespero ou de raiva. Nesta fase, o indivíduo pode parecer desligado, embora manifeste um nível alto de tensão. Podem ocorrem expressões emocionais intensas, ataques de pânico e raiva.

A segunda fase seria a do desejo e busca da figura perdida, que pode durar também meses ou anos. A raiva pode estar presente nesta fase, principalmente quando há a percepção de que houve efectivamente uma perda, provocando desespero, inquietação, insónia e preocupação. Ao mesmo tempo, existe a ilusão de que talvez tudo não tenha passado de um pesadelo. Essa raiva pode se manifestar como irritabilidade ou uma profunda amargura.

A terceira seria a fase de desorganização e desespero, onde a esperança intermitente, os desapontamentos repetidos, o choro, a raiva, as acusações, podem ser manifestações desta fase. Pode haver ainda a sensação de que nada mais tem valor, muitas vezes acompanhada de um desejo de morte, pois a vida sem o outro não vale a pena. E, por fim, a fase de alguma organização, onde se processa uma aceitação da perda definitiva e a constatação de que uma nova vida precisa ser começada.

Para Raimbault (1979), a fim de que se realize o processo de luto é necessário: Uma desidentificação e um desligamento dos sentimentos em relação ao morto; a aceitação da inevitabilidade da morte; e quando for possível, encontrar um substituto para a libido desinvestida. Se não tiver ocorrido este desligamento do objecto perdido, em cada nova relação se buscará coisas da anterior, com consequências desastrosas.

Bowlby (1985) levanta alguns aspectos que podem afectar o processo de luto e que talvez facilitem o processo de evolução de um quadro patológico: o primeiro ponto a ser levado em conta é a identidade e papel da pessoa que foi perdida; o segundo é a idade e o sexo da pessoa enlutada; o terceiro avalia as causas e as circunstâncias da perda; em seguida deve-se considerar as circunstâncias sociais e psicológicas que afectam o enlutado, na época e após a perda; por fim, leva-se em consideração a personalidade do enlutado e como este responde a situações estressantes.

Mas, afinal, qual a diferença entre o processo de luto norma e o patológico? Para Bowlby (1985), a exacerbação dos processos presentes no luto norma, com uma duração muito longa e com características de obsessividade, configuram um processo patológico. O que se define como luto saudável é a aceitação da modificação do mundo externo, ligada à perda definitiva do outro, e a consequente modificação do mundo interno e representacional, com a reorganização dos vínculos que permaneceram. Os processos defensivos são constituintes regulares de todo o processo de luto, em qualquer idade, e se tornam patológicos quando assumem carácter irreversível, fazendo parte integrante da vida.

Segundo Labaki (2001), para Freud, “o luto é a reacção à perda de um ente querido”. Há uma série de reacções anormais neste sujeito sem que sejam consideradas patológicas. Ocorre um profundo desânimo, cessação de desejo pelo mundo externo, perda da capacidade de amar e inibição de actividades externas. A restrição do ego fica vinculada a esta perda. O trabalho do luto envolve um teste de realidade, que comprova que o objecto não existe mais, e a libido é retirada das ligações com ele.


A abordagem diante de uma situação de dor que poderia impossibilitar a escuta, seria caracterizado como o momento em que a capacidade do psicoterapeuta reconhecer a dor sem, no entanto, perder-se nela, nem tampouco recusá-la, poderá ofertar sentido e deste depurar o afecto do sofrimento permeado pela dor, tornando-a passível de ser dita. Dar-se-ia então neste momento entre psicoterapeuta e paciente a abertura da clínica da dor diante do impacto traumático do diagnóstico de uma doença mortífera ou da morte.

Existe ainda outro tipo de morte, a separação. Esta é uma morte psíquica na vida dos seres humanos. Separa ou partir é morrer um pouco. A separação pode ser em muitos casos pior do que a própria morte porque significa uma capitulação diante da morte ainda em vida. Por outro lado, a separação pode ser a saída menos dolorosa, em alguns casos, porque evita a morte.

A separação é uma vivência de morte numa situação de vida. Segundo Caruso (1982), durante o processo, desenvolve-se: a Catástrofe do Ego, onde com a separação produz-se uma morte na consciência. Ocorre uma mutilação egóica, a identidade sucumbe, o que acciona os mecanismos de defesa para que a morte não aniquila a consciência e não leve a alguma situação psicótica.

Pode se desenvolver ainda a Agressividade que pode surgir como um mecanismo de defesa atacando aquele que abandonou. A desvalorização do ausente é uma forma de tentar reconciliar o ego ferido com o ideal abalado.

Pode acontecer ainda o aparecimento da Indiferença. Esta é uma fase onde se força a diminuição da idealização egóica. Esta indiferença pode ocorrer em meio ao desespero. Pode-se traçar uma analogia com a rigidez da morte, uma renúncia ao prazer, para se evitar o desprazer.

Pode ocorrer uma busca de novas actividades ou de novas formas de prazer, a qual o Caruso (1982) denomina de Fuga para diante. Durante o processo, procura-se intensamente novas relações, como substituição ao parceiro perdido. E, por fim, acontece a Idealização. Esta atua como uma forma de depuração, uma rebelião contra o processo de morte que procura se instalar.

Vivências de destruição/demolição e descontinuidade/interrupção poderão ocorrer, reflectindo conteúdos fantasmáticos inconscientes e frutos da história de vida de cada um. A morte se apresenta pela via da emergência no psiquismo, portanto é considerada material de análise.

As representações inconscientes da ameaça de morte, geradoras de angústia, de algum modo protegem o ego ao mesmo tempo em que sinalizam o perigo de morte. O processo psicoterápico pode, em muitos momentos, se configurar como um elemento preventivo para que não se desenvolva um processo de luto patológico. (Labaki, 2001)

O trabalho clínico promove a transformação do sofrimento numa experiência afectiva concedendo reforço e protecção à vida. Enquanto existir vida a morte se constituirá como experiência de desinvestimento.

Ethienny Corrêa
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Eu sou Ethienny Corrêa, acadêmica de psicologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual do Piauí (FACIME-UESPI).

BIBLIOGRAFIA
AIRES, P. – A História da morte no oriente – Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1997.
BOWLBY, J. – Apego, perda e separação – São Paulo, Martins Fontes, 1985.
CARUSO, I. – A separação dos Amantes – São Paulo, Diadorim Cortez, 1982.
KOVÁCS, Maria Júlia (Cord.) – Morte e Desenvolvimento Humano – São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.
LABAKI, Maria Elisa Pessoa – Morte – São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

RAIMBAULT, G. – A criança e a Morte – Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1979.

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