Num país de tradição cristã, o povo ucraniano sofreu verdadeiro genocídio perpetrado por Stalin. Nos anos 1932-33 pereceram aproximadamente 8 milhões de camponeses.
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 679, Julho/2007
- José Narciso Barbosa Soares
Lisboa — Numa ensolarada tarde de março, recebeu-me para uma conversa o Sr. Rostyslav Tronenko — embaixador da Ucrânia em Portugal desde janeiro de 2006 — na sede da embaixada, um palacete do elegante bairro do Restelo, em Lisboa.
Conhecera-o eu casualmente na embaixada da Itália, meses antes, no dia da festa nacional transalpina, junto com a simpática embaixatriz Da. Fabiana Melisse da Costa Tronenko, curitibana com quem se casara quando exercia funções de ministro-conselheiro da embaixada de seu país em Brasília.
Católico, licenciado em Línguas Modernas pela Universidade Estatal de Kiev, tem mestrado na Academia Diplomática e em Relações Internacionais. Além do português, fala fluentemente vários idiomas. No Brasil, onde é grande a comunidade de imigrantes ucranianos, e em Portugal, com grande imigração recente (70 mil legalizados, 60 mil não legalizados), o cargo de embaixador ganha especial relevância. Com apenas 45 anos, o Sr. Tronenko já pode exibir um consistente currículo diplomático, tendo servido junto a organizações internacionais, como a OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa).
Daquele nosso rápido encontro, ficara combinada uma conversa sobre a Ucrânia e os problemas que o país vem enfrentando depois da independência conquistada em agosto de 1991, ratificada plebiscitariamente em dezembro do mesmo ano por mais de 90% da população.
Nossa conversa versou sobre diversos assuntos, sendo o tema principal o genocídio perpetrado contra o povo ucraniano em 1932-33, pela barbárie stalinista. Nessa ocasião pereceram entre 7 e 9 milhões de camponeses — fato sinistro conhecido como Holodomor ou Golodomor [Grande Fome]. Sobre essa atrocidade, o Sr. Tronenko disparou sem pestanejar: “Foi uma retaliação brutal do homo sovieticus ateu, sem família e contra a propriedade privada, para submeter a Ucrânia com a morte indiscriminada de camponeses, base social da nossa nação”.
A análise e compreensão desse drama é tanto mais importante no momento atual, quando assistimos a muitas tentativas de se fazer esquecer os crimes do comunismo, tendo em vista a sobrevivência da utopia socialista depois da poeira levantada pela queda do Muro de Berlim em 1989, e do estrepitoso colapso da União Soviética em 1991.
Tal análise é um imperativo de consciência para Catolicismo, que desde sua fundação não hesitou, contra ventos e marés, estar sempre na linha de frente no combate aos totalitarismos que ensangüentaram o século XX. Ademais, neste ano de 2007 celebram-se, cheios de esperança, os 90 anos das aparições de Fátima. Celebram-se também o horror da tomada do poder pelos bolchevistas na Rússia (com a ajuda prestimosa de Kerensky) e os 75 anos do genocídio ucraniano, acontecimentos estes previstos, direta ou indiretamente, naquelas aparições.
Faremos de início um recuo histórico, a fim de aproximar o leitor da realidade geopolítica, histórica e cultural daquele grande e longínquo país da Europa, em parte já exposto em Catolicismo (edição de janeiro/2005) por Dom Efraim, Eparca para os católicos ucranianos no Brasil.
Situação geográfica, história conturbada e heróica
A Ucrânia está situada no centro geográfico da Europa. A oeste faz fronteira com a Polônia e Eslováquia; a sudoeste, com a Hungria, Moldávia e Romênia; ao norte e a nordeste com a Bielorússia e Rússia; e ao sul é banhada pelos mares Negro e Azov.
Com mais de 600 mil km², o território ucraniano possui planícies e florestas atravessadas pelos montes Cárpatos, a oeste, e pelas montanhas da Criméia, ao sul. Com 48 milhões de habitantes, é o quinto país mais populoso da Europa; é integrado por 110 grupos étnicos, sendo os ucranianos a maioria (37 milhões). Mas há que registrar importantes minorias de russos, poloneses, húngaros, bielo-russos, búlgaros, gregos, tártaros, moldavos e de várias outras nacionalidades.
É anterior à era cristã a implantação de vários núcleos agrícolas no território da atual Ucrânia. Da fusão dos eslavos com os guerreiros citas, antepassados dos sármatas, criou-se o poderoso reino dos Bosporos. Os gregos, vindos do Mediterrâneo, penetraram no Mar Negro, fundaram várias cidades e transmitiram sua civilização, combatendo a hegemonia de Roma.
Kiev, a capital, embora seja incerta a data de sua fundação, aparece nos primeiros documentos por volta do século V. Dois séculos depois, já era o centro de um vasto império que ia do mar Negro ao Báltico, chegando até ao rio Volga. Nascia então o principado de Kiev. São Vladimir, o Grande, oficializou em 988 o cristianismo na Ucrânia.
Depois de guerras com povos vizinhos, as tradições ucranianas se mantiveram. Já no século XV Kiev ficou sob controle político-militar do principado da Lituânia juntamente com outras terras, mas gozou do estatuto de cidade livre.
Após um período conturbado por lutas sangrentas, no século XVII a Ucrânia começou a entrar na esfera de influência do império russo por meio do Tratado de Pereiaslav. O insucesso das ações de autonomia ucraniana ocasionou expedições punitivas por parte dos czares russos e a subseqüente partilha territorial. A zona oeste da Ucrânia foi colocada sob o domínio dos Habsburgos. Entretanto, a identidade cultural, histórica e política ucraniana não sucumbiu a tais vicissitudes.
Com a queda do czar Nicolau II, a Ucrânia experimentou uma independência efêmera (1917-1921). Quando o império austro-húngaro caiu em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial, os bolchevistas já tinham tomado o poder na Rússia, e em 1922 derrotaram o exército nacional ucraniano. A Ucrânia foi integrada à força na União Soviética. Dez anos depois sobreveio a Grande Fome (Golodomor).
Colapso da URSS: aspiração de liberdade x interferência russa
Com a queda do Muro de Berlim e a desintegração da URSS, as repúblicas anexadas à força clamaram por independência. A Ucrânia não constituiu exceção. Foi assim que a Rada (parlamento ucraniano) aprovou, a 16 de junho de 1990, o Ato de Soberania, que consistiu no primeiro passo para a restauração da independência. Realizaram-se eleições, sendo eleito Leonid Kravchuk, um ex-comunista “reciclado” (1991-1994). Seguiu-se, por dois mandatos, Leonid Kuchma (1994-2004), também ele um “reciclado” das hostes do antigo Partido Comunista. O primeiro-ministro desse período foi Viktor Yuschenko, que veio a desempenhar importante papel na Revolução Laranja de 2004. Esta revolução levou às ruas milhares de pessoas contra os resultados fraudulentos do segundo turno das eleições de 2004. Em 2005, Yuschenko foi eleito presidente, seguindo uma linha reformista e claramente pró-ocidental. Na seqüência das eleições legislativas de 2006, os resultados foram adversos para Yuschenko. Seu segundo partido, Nossa Ucrânia, obteve o 3º lugar. O “Bloco” da Sra. Timochenko ficou em 2º, e em primeiro o pró-russo Partido das Regiões, coligado com os partidos comunista e socialista, este conquistou maior número de assentos no Parlamento, tornando-se Viktor Yanukovitch o primeiro-ministro.
É difícil aquilatar hoje a verdadeira dimensão da metamorfose operada pelo comunismo no leste da Europa, quer nos países que foram satélites da URSS, quer nas repúblicas anexadas ao império czarista.
A Ucrânia, por um lado, vem dando passos na privatização da terra, e está em fase de conclusão a transferência da propriedade agrária para pessoas singulares e coletivas de direito privado; abriu negociações bilaterais com a União Européia e a OMC (Organização Mundial do Comércio); atribui grande importância às relações com a NATO para uma futura adesão; ajudou a criar uma organização de cooperação e desenvolvimento pró-ocidental com outros países, conhecida como GUAM (Geórgia, Ucrânia, Azerbaijão e Moldávia). Por outro lado, existe uma disputa no estilo braço-de-ferro entre o Presidente Yuschenko, pró-ocidental, e o primeiro-ministro pró-russo Yanukovitch, seduzido pela “deriva totalitária” de Putin. É difícil prever o desfecho dessa crise.
Celeiro da Europa transformado em território de genocídio
Com a documentação que o embaixador Tronenko me forneceu sobre o Golodomor (Grande Fome), vamos tentar enquadrar nesse contexto o drama brutal que se abateu sobre o povo ucraniano, de forma a torná-lo compreensível aos leitores.
Corria o outono de 1931. A fome começou artificialmente, como instrumento de terror político manejado pelo tirano Stalin, o qual se utilizou principalmente dos seguintes expedientes: 1) confisco das colheitas e das reservas alimentares dos camponeses ucranianos, recorrendo a todo o tipo de violências e abusos, colocando em grave risco sua sobrevivência; 2) repressão a qualquer forma de resistência (deportação de populações, detenção em campos de concentração e fuzilamentos); 3) fechamento das fronteiras da Ucrânia pela polícia, impedindo que os camponeses procurassem alimentos na Rússia e em outras regiões, ou os transportassem para a Ucrânia; 4) proibição da venda de passagens de trem, instalação de barreiras policiais nas estações ferroviárias e nas estradas que levavam às cidades. Centenas de milhares de famintos foram assim obrigados a regressar às aldeias, morrendo de fome; 5) revogação dos direitos de autonomia cultural, lingüística e política da nação ucraniana, incluindo as comunidades que viviam nas outras regiões da União Soviética; 6) repressão da elite cultural e política (escritores, sacerdotes, dirigentes políticos, artistas, etc.), sob a acusação de nacionalismo.
O objetivo dos déspotas de Moscou era não só quebrar a resistência dos agricultores à coletivização agrícola, como também eliminar a alegada conspiração nacionalista que pretendia separar a Ucrânia do restante da União Soviética. Com seus 30 milhões de hectares de excelentes terras aráveis, a Ucrânia era o celeiro da Europa. Nas mãos de Stalin, tornou-se instrumento de tortura e morte!
Em 7 de agosto de 1932, os títeres de Moscou aprovaram o decreto Sobre a proteção da propriedade das empresas do Estado, kolkhozes e cooperativas e o reforço da propriedade social (socialista), em que estava previsto o fuzilamento e o confisco dos bens. Os camponeses eram condenados à morte, sem julgamento ou inquérito, por tentar salvar-se apanhando espigas nos campos. Os resultados, em fins de 1933, ficaram patentes: entre 7 e 9 milhões de mortos, talvez o maior genocídio da História.
Reconhecimento do Holodomor por vários países
Alguns governos estrangeiros, apesar de terem conhecimento da fome através de seus embaixadores, não apresentaram qualquer protesto ao governo soviético conduzido por Stalin. Além disso, em setembro de 1934 a URSS foi admitida na Sociedade das Nações!
Durante mais de 50 anos, a diáspora ucraniana procurou divulgar a verdade sobre o Golodomor. Com esse objetivo, apoiou a investigação realizada por diversas entidades acadêmicas, tais como a Comissão do Congresso dos Estados Unidos da América, presidida pelo historiador James Mace (1988), e a Comissão Internacional de Inquérito da Fome de 1932-1933 na Ucrânia, dirigida pelo jurista Jocob Sundberg (1990).
Por proposta do presidente Yuschenko, a 28 de novembro de 2006 a Rada (Parlamento) da Ucrânia reconheceu oficialmente o Golodomor como ato de genocídio contra o povo ucraniano.
Na 58ª Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas foi elaborada uma declaração apoiada por 63 países, incluindo no dicionário político internacional o termo Golodomor, confirmando assim o reconhecimento da tragédia nacional do povo ucraniano.
Os parlamentos de dez países (EUA, Canadá, Estônia, Argentina, Austrália, Itália, Hungria, Lituânia, Geórgia e Polônia) já reconheceram que o Golodomor foi um ato de genocídio.
No governo Lula da Silva, idealizador do esdrúxulo programa Fome Zero, a solidariedade em relação ao povo ucraniano, vítima de genocídio pela Grande Fome, teve… apoio zero!
ABIM
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