Imagem de Nossa Senhora é profanada na Villa Doria Pamphilj, em Roma, no dia 15 de julho de 2013 |
Para o momento presente é oportuníssima esta questão respondida pelo Mons. José Luiz Villac. Resposta publicada na revista Catolicismo um ano antes do falecimento do saudoso Monsenhor.
Pergunta — No mundo de hoje, o católico é testemunha (e até, por vezes, vítima direta) de ofensas a Deus que nos indignam e nos levam a desejar que Deus castigue ainda nesta Terra os responsáveis por essas infâmias (até mesmo como meio de tentar salvá-los do inferno). Na própria Bíblia lemos passagens de profetas amaldiçoando cidades ou pessoas. A minha pergunta é a seguinte: se diante de uma blasfêmia ou ofensa a Deus particularmente clamorosa é lícito amaldiçoar os seus promotores, como faziam os profetas do Antigo Testamento (desejando, porém, que eles acabem se salvando). Ou isso é uma manifestação de cólera, e, portanto, um pecado?
Resposta — Não podemos senão nos alegrar com o zelo do nosso missivista e concordar com ele a respeito da situação gravíssima de pecado em que o mundo atual se encontra mergulhado, para deplorarmos juntos o pulular de ofensas feitas a Deus, muitíssimas das quais merecem a qualificação que figurava nos antigos catecismos, ou seja, de que tais pecados clamam ao Céu e pedem a Deus por vingança.
Mas fica a pergunta: é lícito pedir ou desejar essa vingança de Deus, de tal maneira que o mal recaia sobre os autores dessas blasfêmias e ofensas, por exemplo, quando elas são dirigidas a sua Santa Mãe?
A questão é delicada, mas a resposta simples, clara e concisa já foi dada por Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica. Na parte em que trata da virtude da justiça, o Doutor Angélico analisa os distintos pecados que são cometidos por palavras contra a justiça, dentro e fora dos tribunais, e aborda no fim a maldição (II-II, q. 76).
Para responder se é permitido amaldiçoar um homem, posto que, segundo São Paulo, “abençoai os que vos perseguem, abençoai-os, e não os amaldiçoeis” (Rom. 12, 14), Santo Tomás começa por explicar que “maldizer é dizer mal” (male dictio) e que isso pode realizar-se sob a forma de difamação (da qual ele já tratou anteriormente), ou então como desejo ou ação para que um mal recaia sobre outrem.
Nesse ponto ele introduz uma distinção entre — de um lado — desejar ou ordenar o mal a outrem porque isso lhe causa dano, desejando esse dano em si mesmo (que é a maldição propriamente dita), o que é sempre ilícito; e de outro lado desejar ou ordenar um dano a outrem em razão de um bem, o que é lícito.
Impor um castigo almejando um bem
O santo doutor explica que o mal pode ser ordenado ou desejado a outrem em vista de um bem por dois motivos. Em primeiro lugar, por uma razão de justiça — e é por isso que um juiz pode “maldizer” um acusado infligindo-lhe uma pena merecida ou a Igreja lançar um anátema. Em segundo lugar, por vezes há uma razão de utilidade que autoriza a “dizer o mal”: por exemplo, desejar a um pecador uma doença ou um obstáculo qualquer para que ele se corrija ou, pelo menos, para que cesse de agir mal e de causar dano aos outros. São lícitas essas formas de desejar ou causar danos em razão do bem, porque não se opõem ao afeto que se deve ao pecador ou ao malvado, mas são, pelo contrário, aplicação prática do sentimento de benevolência para com ele, pois o que se deseja é o seu bem.
E nas respostas às objeções, Santo Tomás declara que São Paulo proíbe somente a maldição propriamente dita, ou seja, aquela que deseja para outrem o mal pelo mal.
Mas a forma benevolente de maldição é lícita, sendo esta a razão pela qual nas Sagradas Escrituras há muitas passagens em que Nosso Senhor Jesus Cristo e os profetas amaldiçoam pessoas ou até cidades e povos inteiros. Não se deve ver nessas imprecações apenas uma figura simbólica ou um recurso de retórica, mas graves ameaças ou profecias de grandes castigos. Porém, convém recordar que nas suas imprecações mais ardentes eles desejavam o fim do estado de pecado, e não a condenação dos pecadores, cujos males eram desejados para eles se corrigirem e para que os bons fossem libertados da opressão dos maus.
Por amor a Deus, contemplar o castigo aos ímpios
Em outra parte da Suma Teológica, Santo Tomás não se esquiva de tratar uma questão delicada: em certas passagens da Bíblia, os autores sagrados parecem desejar o inferno para os ímpios, como, por exemplo, no Salmo 9, cujo versículo 18 registra: “Que os pecadores caiam na região dos mortos, todos esses povos que olvidaram a Deus” (mais explícita, a tradução da Vulgata: “Convertentur peccatores in infernum, omnes gentes, quae obliviscuntur Deum”).
O Aquinate explica que essas imprecações contidas nas Escrituras podem ser interpretadas de três modos: 1) como predições e não como desejos; 2) como desejos, mas nesse caso o objeto do desejo não é propriamente o castigo dos homens, mas a justiça d’Aquele que castiga, como diz o salmo: “O justo terá a alegria de ver o castigo dos ímpios” (58, 11); e 3) como um desejo do afastamento do pecado e não propriamente do castigo, ou seja, que os pecados sejam destruídos para que o homem viva eternamente.
Mas há também as maldições divinas, particularmente terríveis, porque se os homens podem invocar um dano sobre alguém, a justiça de Deus vai muito além e pode infligi-lo a quem merece. Assim, Deus amaldiçoa a serpente que serviu de instrumento a Satanás (Gn 3, 14); a Terra manchada pelo pecado do homem (Gn 3, 17; 5, 29; 8, 21); e Caim, assassino de seu irmão (Gn 4, 11).
A pregação de Nosso Senhor estava impregnada da perfeição da caridade, desconhecida dos autores sagrados do Antigo Testamento. Isso não impediu, porém, que Ele amaldiçoasse a figueira estéril (Mc 11,14 e 21), nem que empregasse a duríssima expressão “Ai de ti!” — que é uma forma de maldição — contra as cidades de Corozaim e Betsaida (Mt 11, 23), contra os escribas e fariseus (Mt 23, 13-16) e contra os ricos de coração e os que buscam o louvor dos homens (Lc 6, 24-26); imprecações essas tanto mais terríveis quanto Ele falava como Mestre e Juiz infalível!
Increpar o malvado, mas não por ressentimento pessoal
Atroz e simbólica profanação, acompanhada de satânica destruição, do Crucifixo da Igreja da Gratidão Nacional, em Santiago do Chile, em 9 de junho de 2016 [foto acima e abaixo] |
Estabelecidos esses pressupostos, voltemos à pergunta de nosso caro missivista: é lícito proceder como fizeram Nosso Senhor e os Profetas e amaldiçoar os malvados?
Em princípio, sim, desde que as nossas imprecações contra os gravíssimos pecados cometidos diante dos nossos olhos e contra os responsáveis por esses pecados sejam movidas exclusivamente pelo zelo de Deus, pelo restabelecimento da ordem e da justiça e pelo próprio bem desses pecadores, sem nenhuma sombra de ódio ou malevolência, nem de ressentimento pessoal pelo mal de que se é vítima.
Porém, é preciso não esquecer que a maldição propriamente dita — ou seja, desejar ou executar o mal pelo próprio mal, que vai causar dano a outrem — é um pecado de cólera ou contra o amor devido ao próximo. Trata-se, além do mais, de um pecado mortal por seu próprio gênero, ou seja, se o mal desejado ou executado é grave e proferido seriamente e com plena vontade.
Por isso, trata-se de um ato que não é recomendável para simples particulares sem maior formação teológica e moral, ou então muito apaixonados, pelo que facilmente podem manchar com suas imperfeições um ato legítimo e até louvável.
O que o nosso missivista pode fazer com toda segurança é, sem propriamente pronunciar uma imprecação ou maldição contra os fautores de pecado, oferecer a Deus, em reparação, a sua indignação pelas blasfêmias e ultrajes que são cometidos contra Ele, contra Nossa Senhora, contra a Igreja etc.
A santa cólera para reparar a Deus
Dessa forma justa e razoável de cólera não se deve ter medo, porque não só é santa, mas o reverso do amor de Deus. Como diz Santo Tomás, “aquilo por que nós sobretudo nos interessamos, consideramos como bem nosso; por onde, quando isso é desprezado, consideramo-nos também como desprezados e lesados” (I-II, q. 47, a. 1, s. 3) e, por isso, “quando se faz um mal a um bem que amamos, nosso amor torna-se mais sensível; e é por isso que o coração se comove com um ardor novo para remover o obstáculo daquilo que amamos; de modo que o fervor do amor é excitado pela cólera que o torna mais sensível” (I-II, q. 48, a. 2, s. 1).
Foi dessa santa cólera, fruto do amor de seu Pai, que Nosso Senhor deu exemplo expulsando os vendilhões do Templo (Lc 19, 45-48).
É uma boa meditação para este ano do centenário das aparições de Fátima, porque Nossa Senhora veio pedir aos homens precisamente a conversão e a penitência, assim como atos de reparação a Deus pelos imensos pecados cometidos contra Ele, os quais atraem sobre o mundo os castigos divinos, eles próprios uma manifestação do amor infinito de Deus pelos homens.
ABIM
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