sábado, 7 de novembro de 2015

Algazarra no Parlamento

Algazarra no Parlamento
O Parlamento reúne numa sessão. Há importantes questões a tratar. Um deputado expõe os seus pontos de vista. Depois, fala outro do partido contrário e deita por terra o que o orador precedente tinha dito. Nenhuma prova objectiva. Não fez o menor esforço por compreender bem. Corta por onde lhe parece, arranca proposições do contexto, exagera nos seus juízos e pontos de vista, põe a ridículo e torna suspeita a opinião do seu adversário.
Mal o orador acaba o seu discurso, o atacado pede a palavra e responde precisamente no mesmo tom, com a única diferença de ser um pouco mais contundente. A seguir, falam outros e outros; talvez não se tenham preocupado nada pelo assunto que o primeiro orador propôs nem pela sua exposição; derivam a pouco a pouco para temas totalmente diferentes. De maneira que, depois de alguns discursos, já ninguém consegue determinar propriamente a linha da discussão. Ou então formam-se dois bandos, que talvez venham a acabar por assumir atitudes indignas e a transformar num alvoroço selvagem aquele diálogo para onde o POVO tinha enviado os homens da sua confiança.
Uma pessoa até se enche de vergonha quando ouve ou lê tais coisas nos relatos das sessões parlamentares. E ainda se lêem coisas piores! Chega-se a sentir nojo daquela algazarra. Quem enviou os deputados para o Parlamento? Nós eleitores! Deviam representar a nossa causa! Por conseguinte, semelhante conduta desonra-nos a nós todos.
Mas há mais: quando isto acontece, é porque não há POVO nem há Estado, caso contrário colocava aqueles senhores vs. senhoras na ordem. Não se exprimem os problemas, nem os anelos, nem as necessidades do POVO que os elegeu. Não se manifestam as suas energias. Não se diz, nem se ouve, nem se pesa a causa comum, nem se faz esforço algum por a compreensão mais profundamente, graças à contribuição particular de cada um dos representantes.
O Parlamento converte-se numa entidade ergotista de mentecaptos e indisciplinados, que não fazem o mínimo esforço para compreenderem os outros. Onde as coisas caminham assim, não se edifica a unidade; tudo são ruínas. Em lado algum aparece a vontade comum do POVO; não vêm ao de cimo os diferentes interesses e orientações para se poder comparar e pesar a importância que têm, até se conseguir uma vontade comum por meio de atinadas e prudentes observações. Não se concentram as diferentes orientações e energias, de maneira a constituírem uma cunha poderosa e claramente orientada, que possa abrir caminho e permitir a actuação do POVO. Tudo se vai em lamentáveis discussões vazias de clareza, conteúdo e de rigor.
Aqueles dois contendentes deviam ter sido «POVO», para isso foram eleitos. Tinham de defender diferentes pontos de vista; era natural. Um deles veio em nome da economia do país; o outro, em nome dos trabalhadores. Mas cada um deles devia ter tido consciência disto: «Eu estou aqui por todo o POVO; e o meu adversário o mesmo. Queremos examinar juntos o que convém a este mesmo POVO. Haveremos de coordenar e dirigir, em ordem a uma actividade mais poderosa, todas as forças dele». A isto é que se chamaria «POVO» e ao povo «Estado». Mas eles jogaram e perderam o Estado; deram cabo dele. Ainda pior. Não tiveram nem um nem o outro: nem Povo nem Estado. Foram simplesmente gente que brigava, nada mais. Nem por sombras souberam congregar numa ordem disciplinada, inteligente, justa, de vontade criadora, tudo o que o «Estado» significa.
Aqueles deputados à maneira de homens sem Estado e sem povo. Um grego diria: «como bárbaros». Cada um deles começou por considerar o outro néscio, ignorante, perverso… de contrário não poderiam falar como falaram. Era esse o clima dos seus olhares, dos seus pensamentos e das suas palavras, dos seus gestos. Resultado: foram-se afundando cada vez mais e afundam todos os outros nessa ausência de Estado e de POVO, isto é, nessa barbárie parlamentar. Chamam a isto liberdade e democracia.
Quando um deputado é eleito, qual deve ser a sua primeira reflexão? Qual a sua convicção fundamental? Esta: «Não só sou enviado pelo meu grupo, mas eleito pelo POVO que me concedeu um voto de confiança. Hei-de colaborar para que surja no POVO uma convicção viva e profunda, um entusiasmo recto por tudo o que é útil e glorioso no país. Para que nasça nele uma vontade clara e consciente dos seus objectivos. Assistimos tudo ao contrário, a uma luta por interesses pessoais, subterrâneos.
Se um deputado eleito pelo POVO vê no homem de frente um inimigo, que é preciso derrubar, desautorizar e meter a ridículo, não respeita a diferença, não pode ser democrata. Aquele que assim actua não é político, não edifica o Estado, está por interesses pessoais. Só conhece a lei dos punhos; não passa de um bárbaro, por mais que leve na cabeça todos os códigos e conheça tintim por tintim todos os artifícios da politiquice. Ao passo que quem actua da outra maneira é um verdadeiro estadista, representante do POVO que o elegeu. Entre ele e os da oposição já existe «Estado». É preciso civilizar os políticos para que o Povo acredite neles.

Por J. Carlos
(Jornalista)

*Por ser português, o autor do artigo não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.



Nenhum comentário:

Postar um comentário