14/04/2013
No Dia Mundial do Combate a Chagas, Lúcia
Brum compartilha conhecimentos sobre esta doença negligenciada
Doença de Chagas
“Sempre soube que queria trabalhar
contribuindo para a vida das pessoas”, conta Lúcia Brum, referente em doenças
infecciosas emergentes da organização humanitária internacional Médicos Sem
Fronteiras (MSF). Formada em Medicina e mestre em Medicina Tropical, Lúcia
estabeleceu-se por dois anos no Amazonas para conhecer o contexto
epidemiológico do Brasil. Ali, sua intimidade com a doença de Chagas foi
ganhando força. “No mestrado, a gente escuta dos professores que é preciso
namorar todas as doenças durante o primeiro ano e casar quando nos
apaixonarmos. Foi, então, que me casei com a doença de Chagas”. Já tendo atuado
com populações negligenciadas em ocasiões anteriores – ela chegou a ficar
embarcada por 45 dias nas fronteiras entre o Acre e o Peru atendendo, sozinha,
uma população indígena de 2.500 pessoas -, em 2009, Lúcia juntou-se a MSF.
Hoje, no Dia Mundial do Combate à doença de Chagas, ela responde às perguntas
enviadas por usuários das redes sociais sobre a doença, que, embora pouco
conhecida no resto do mundo, é, de longe, a mais letal doença parasitária da
América Latina. Confira:
Como
a doença de Chagas é transmitida?
As formas de transmissão de maior
importância epidemiológica são: vectorial, por meio das fezes – e, não da
picada, como a maioria das pessoas supõe - do barbeiro, insecto hospedeiro do
parasita; por transfusão de sangue; de mãe para filho, de forma congénita; e
oral por meio da ingestão de alimentos contaminados pelas fezes do barbeiro.
2.
Como é diagnosticada?
A doença tem duas fases: a aguda e a crónica.
Embora o diagnóstico de ambas seja realizado por meio da análise laboratorial
de amostras de sangue, há uma diferenciação: na fase aguda, o diagnóstico é
feito por meio do isolamento do parasita (Trypanosoma cruzi) do sangue,
enquanto na fase crónica, o diagnóstico é realizado pela detecção de
anticorpos.
3.
Uma pessoa pode estar infectada sem saber?
Sim. Infelizmente, é muito comum, porque
a maioria dos casos são assintomáticos, mesmo na fase aguda. Pode demorar até
20 anos para que uma pessoa descubra que tem um problema no coração ou no
aparato digestivo. Ou, de repente, a pessoa pode doar sangue ou fazer um
transplante e acaba descobrindo que tem a doença. Aproximadamente 90% das
pessoas infectadas não sabem que têm a doença.
4.
Como se dá o tratamento? Houve avanços recentes?
Hoje, temos apenas dois medicamentos
disponíveis. No Brasil, somente um, o benzonidazol. Em outros lugares do mundo,
pode-se encontrar o nifurtimox. Podemos citar como avanço recente a formulação
pediátrica do benzonidazol, que é a adaptação do medicamento para crianças até
20 kg ou menores de 2 anos. Ano passado, tivemos o primeiro paciente tratado no
mundo inteiro com a formulação pediátrica: no Paraguai, um bebé prematuro de
1,2 kg com infecção congénita foi submetido ao tratamento, e foi curado.
5.
Chagas têm cura? Existe vacina?
A doença de Chagas tem cura. Quanto mais
precoce for o diagnóstico e o quanto antes for iniciado o tratamento, maiores
as chances. Quanto maior o tempo de infecção, menores as chances de cura e mais
difícil será a demonstração da efectividade do tratamento, pois mesmo estando
curado, você continuará gerando anticorpos. E essa é a grande dificuldade: não
temos um teste de cura; o anticorpo pode ser detectado por 20 ou 30 anos. Essa
limitação afecta também o desenvolvimento de novos tratamentos, pois não
podemos medir a efectividade na fase crónica de longa duração. Mas, na fase
aguda, a chance de cura é de praticamente 100%. Não existe vacina ainda,
infelizmente.
6.
Quais as formas de evitar a transmissão? É possível erradicar a doença?
Para erradicar a doença, teriam de ser
eliminadas mais de 100 espécies de mamíferos de pequeno e médio porte, que são
os chamados “reservatórios” do parasita. Complicado, não? O que se pode fazer é
interromper, controlar e vigiar os modos de transmissão nas áreas endémicas,
melhorando as condições de moradia, ampliando o acesso ao diagnóstico e ao
tratamento na atenção primária de saúde, controlando os bancos de sangue e as
doações de órgãos. Ainda assim, erradicar o insecto transmissor é praticamente
impossível, pois já foram identificadas mais de 140 espécies de barbeiros,
todas potencial transmissoras da doença.
A doença é considerada endémica em 21 países.
Actualmente, com a globalização, a doença já está presente em países
considerados não endémicos, como Espanha, Japão França e Itália, entre outros,
onde os imigrantes portadores crónicos da infecção podem transmiti-la pelo
sangue, por transfusão, por exemplo, ou de mãe para filho.
8. Quais as regiões mais vulneráveis à
doença no Brasil? Como está a situação epidemiológica do país?
O Brasil é considerado um país endémico,
que, actualmente, vive um período de transição epidemiológica. Em 2006,
recebemos um certificado de interrupção da transmissão intradomiciliar pelo
Triatoma infestans, que foi responsável por aproximadamente 80% dos casos nesse
contexto. No Brasil, são aproximadamente 2 milhões de infectados crónicos,
segundo estimativas oficiais, mas a principal preocupação, actualmente, é a
transmissão oral na região amazónica, grande fonte de casos agudos, que são de
notificação obrigatória no país, e devem receber tratamento de forma imediata.
Quase 90% dos novos casos são oriundos da Amazónia Legal.
9.
Sendo uma doença que afecta, principalmente, comunidades rurais, pessoas
infectadas nas grandes metrópoles já vieram com a doença ou pode haver
hospedeiros nas grandes cidades?
Pode haver hospedeiros nas grandes
cidades, sim, mas com o êxodo rural a partir dos anos 70, muitos dos infectados
vivem hoje em centros urbanos. Mesmo longe de áreas endémicas, é importante
lembrar que são possíveis transmissões por transfusão de sangue, congénitas e
por transplantes de órgãos.
10.
Uma pessoa com a doença de Chagas pode receber um transplante de coração? E
como seria sua vida pós-transplante? A doença infectaria seu novo coração?
Para pacientes que estão em estágios
avançados da doença, com danos cardíacos graves e refractários ao tratamento,
esse é o único recurso, a última esperança. O transplante aumenta em torno de
80% a expectativa de vida dessa pessoa, que pode viver com qualidade em torno
de 10 anos mais. Já há estudos que mostram que a evolução do transplantado com
Chagas é tão boa ou melhor do que os transplantes realizados por outras causas.
Sim, é possível que o parasita infecte o novo órgão, mas, caso isso aconteça,
será depois de passados cerca de 20 anos.
11.
É verdade que a doença pode ser transmitida por grãos contaminados, como feijão
e lentilha, e que, por isso, temos que deixá-los imersos em vinagre por 15
minutos?
As possibilidades de transmissão da
doença de Chagas são, como já falamos, por via vectorial (contacto directo com
as fezes do barbeiro, pois não se transmite pela picada) oral, congénita ou por
transfusão de sangue. Para os grãos transmitirem a doença, seria preciso que
estivessem contaminados com as fezes do barbeiro, contendo o parasita, e que
fossem ingeridos crus. Além de o parasita precisar de um hospedeiro para
sobreviver, o cozimento dos grãos citados, que não são comumente consumidos
crus, eliminaria a possibilidade de transmissão.
12.
Qual seria a melhor estratégia a ser tomada pelas autoridades brasileiras para
que a doença deixe de ser negligenciada?
O Brasil sempre desempenhou um papel de
vanguarda em pesquisa e vem contribuindo muito, exportando essa expertise para
outros países. Praticamente tudo o que se conhece sobre a doença de Chagas é
resultante de pesquisas realizadas no ou lideradas pelo país.
13.
Como o Brasil pode ajudar a levar o tratamento da doença aos demais países da
América Latina?
Há anos, o Brasil tem sido fundamental
para o acesso ao tratamento para a doença de Chagas, uma vez que produz e
distribui o benzonidazol para o mundo inteiro. O país tem de continuar,
justamente, garantindo essa produção de forma sustentável e acessível para as
pessoas afectadas pela doença, que são, principalmente, populações de baixa
renda e de regiões essencialmente rurais.
14.
Existem recursos para tratamento da doença nas áreas de actuação de MSF?
O acesso a diagnóstico e tratamento é
extremamente limitado, contexto comum nas doenças negligenciadas. Na Bolívia,
por exemplo, os serviços de saúde são pagos e a maioria das pessoas infectadas
não tem recursos financeiros. A gente, como MSF, defende o diagnóstico e o
tratamento gratuito na atenção primária como um direito humano de acesso à
saúde.
Nenhum comentário:
Postar um comentário