segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Macroscópio – Quando as certezas deixam de ser certezas, ou o ocaso de Angela Merkel

15394f37-d15a-4db8-9900-7c4008f236fe.jpg

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
O Macroscópio está de regresso depois de uma interrupção por alguns dias uma vez que estive fora alguns dias para a realização de uma edição especial do Conversas à Quinta – Que significa ser hoje português no Mundo? E que responsabilidades traz? –, gravado em Macau, e regressa para tratar um tema que já tem alguns dias: a crise política na Alemanha depois do fracasso das negociações para formar uma coligação de governo. Tratou-se de um desenvolvimento inesperado que fez soar as campainhas de alarme em muitas capitais europeias, conscientes que sem a liderança alemã, e de Angela Merkel em particular, tudo se torna mais difícil na União Europeia, havendo mesmo o risco de paralisia. É pois necessário recuperar algum do debate dos últimos dias, mesmo sendo certo que já ocorreram importantes desenvolvimentos, de que se destaca a possibilidade de se voltar a formar uma grande coligação com o SPD.
 
Comecemos pelas circunstâncias da ruptura, bem sintetizadas nesta peça do Handelsblatt, German Coalition Talks Collapse, onde se explica bem que os pontos que separavam os quatro partidos (CDU mais a CSU bávara, com os Verdes e os liberais do FDP) eram substanciais e nunca se conseguira criar um nível mínimo de confiança entre os potenciais parceiros desta possível coligação “Jamaica”.
 
Num ponto quase todos os analistas convergiram depois deste colapso: a chanceler, antes vista como intocável e uma especialista em conseguir acordos e consensos impossíveis, sai deste projecto fragilizada. William Cook, da Spectator (cuja capa reproduzo a abrir esta newsletter), explicou isso muito bem em Where did it all go wrong for Angela Merkel?, um texto onde defende que os dias de Merkel estão contados: “Whenever she goes, however she goes, this is surely the beginning of the end. One German commentator has likened it to Götterdämmerung — the twilight of the gods”. Cook sustenta este ponto de vista escrevendo que, “For Merkel, the breakdown of these talks is uniquely damaging. She’s never been a politician with a consistent ideology. She’s never inspired passionate acclaim. Instead, she’s built a reputation as an honest broker, a pragmatist who’s good at doing deals and getting the job done. (...) Now that she’s lost her ability to unite left and right, her natural authority has vanished.” Mais: “That’s a direct consequence of her immigrant policy — the disastrous decision to allow more than a million migrants into Germany, and the subsequent rise of AfD.”
 
Outras duas análises onde se coloca o acento tónico no fim da carreira política da chanceler são estas que também recomendo:
  • The Beginning of the End of Angela Merkel as Chancellor, um editorial da edição interbacional da Handelsblatt, escrito por Andreas Kluth, que abre a matar: “Reports of the end of the Merkel era, like those of Mark Twain’s death, have long been greatly exaggerated. Not anymore.” Para o autor o quadro não lhe é nada favorável, pois “the fact that there is no clear list must count as another minus against Ms. Merkel’s record. For the mission of any leader, in any field of life, explicitly includes thinking ahead to an orderly succession. Ms. Merkel, by contrast, has focused her prodigious skills on eliminating potential rivals. This omission will come back to haunt her.”
  • The Twilight Of Angela Merkel, de Philippe Legrain, o foco é colocado na comparação com a nova aura do Presidente francês: “But while Merkel herself may not be missed much, a power vacuum in Berlin is a blow for hopes to revive the EU. Merkel used to lament the weakness of Macron’s predecessor, François Hollande; now the shoe is on the other foot. Macron’s bold plans to reboot the European project are based on a renewed Franco-German partnership. Without a strong German counterpart willing to take the necessary political risks, he will struggle to advance his plans to reform the eurozone and pursue closer integration in migration, defense, and much else that is important to Germany itself.”
 
Já no New York Times, Melissa Eddy e Katrin Bennhold assinam uma interessante análise, Consensus? No, Thanks. German Politics Suddenly Get Messy, na qual abordam não apenas o destino da chanceler, mas como esta evolução pode representar uma mudança na cultura política germânica do pós-guerra: The distinctive political tradition of the Federal Republic of Germany is change through consensus,” said Timothy Garton Ash, a professor of European studies at the University of Oxford. That was what was at stake, he said. “It hasn’t worked so far this time.” Ou seja, estaríamos a entrar num tempo em que os governos estáveis se poderiam tornar mais raros, algo que na Alemanha nunca se aceitou com receio de voltar aos tempos conturbados da República de Weimar. Há, contudo, quem pense de forma diferente: “Wolfgang Merkel, director of the democracy and democratization unit of the Berlin Social Science Center, said the dwindling of consensus was a sign of maturity. “The past 30 years we have experienced a disenchantment with politics that can be seen in the persistent drop in voter turnout since the 1970s,” said Mr. Merkel, who is not related to the chancellor. “Now, the important questions are being debated once again. You can say it is a revival of pluralism, of pluralist discourse.”
 
Entre os críticos desta obsessão pelo consenso, e da forma como a chanceler sempre colocou o pragmatismo à frente da ideologia e de uma visão de futuro, estão os editorialistas do Wall Street Journal, que em Angela Merkel’s Failing Center defendem que “She’s in this jam because her political method prioritizes consensus politics over principle. That’s often called pragmatism, but it’s not very practical when she leaves voters so bored and confused by her milquetoast campaigns that they deny her a majority or at least a plausible coalition.”

 
De facto todos estamos recordados como, nas últimas eleições, no debate com o seu principal adversário, o líder do SPD Martin Schulz, ambos quase não divergiram, tal como nos recordamos que dessas eleições resultou o pior resultado de sempre dos maiores partidos alemães, que agora representam pouco mais de metade do eleitorado quando já representaram mais de 80% dos eleitores. Eles foram os verdadeiros derrotados de uma eleição que viu os pequenos partidos ganharem peso, razão porque muitos vêm com maus olhos a possibilidade de acabarem coligados de novo. Entre esses estão os que defendem a necessidade de voltar às urnas, posição tomada pela influente The Economist em How to break the deadlock in Berlin: “There is no guarantee that the result, in the messy seven-party political environment of today’s Germany, will be any more clear-cut than the last. An election would, however, offer the advantage of allowing debate over important issues, such as the future of the European project, that the parties avoided in the previous campaign. Rich and stable, Germany need not fear repeated elections. But none of this looks good for Mrs Merkel.
 
Também a alemã Spiegel, num editorial escrito antes do regresso do SPD à mesa das negociações (por pressão do Presidente da República, ele mesmo um social-democrata que entendeu sair do conforto da sua posição sobretudo cerimonial e pressionar os líderes do seu próprio partido) defendeu, em The End of the End of History, que “rapid new elections are the only thing that makes sense”. Isto depois de, por um lado, enquadrar a crise alemã no fim de um mundo dominado pela Europa e pelos Estados Unidos e, por outro lado, desdramatizar a duração de um processo eleitoral: “It must first be said that the government crisis, which has arisen out of the failed coalition talks, is not a crisis of state - at least not yet. A caretaker government is in office, the federal president is exhibiting prudence, the country's economy is robust, and the system is working as it should.”
 
Ao mesmo tempo também já há quem defenda um governo minoritário, algo que contrariaria a tradição alemã das últimas décadas mas é habitual noutras democracias. É o que faz Andreas Kluth (e volto a citá-lo) na Handelsbatt em In praise of minority government, num texto onde começa precisamente por dar exemplos de países onde essa forma de governar é comum (incluindo na lista Portugal). Para ele “Germans are aflutter at the prospect of their first post-war minority government. They should keep calm and carry on. Or even try optimism.” De resto um governo minoritário devia ser encarado com naturalidade pelos eleitores pois resulta das escolhas que fizeram, um argumento em que cita politólogos: “Mr. Patzelt suggests that voters should begin by remembering that it was they who chose this particular parliament (and who, according to polls, would choose almost exactly the same again in a new election). That is not a crisis; it’s called democracy. Calling a new election just because Angela Merkel finds the result of the previous one inconvenient would be undemocratic.”
 
Na Europa é que tudo isto é seguido com grande inquietação, como se nota por este conjunto de análises que vale a pena referir:
  • Germany’s Political Impasse Will Stymie Further European Change, uma peça mais informativa de Marcus Walker no Wall Street Journal, onde se sublinha que “Prospects for overhauling the EU and its currency, already slim, become even more remote”.
  • Without Merkel in charge, Europe could fall apart, uma análise de Fredrik Erixon na britânica The Spectator: “The EU has been an unhappy family, but Mutti Merkel has brought unity and peace to its high table. That’s all the more remarkable, since she seldom had much to say. (...) Often, she was neither here nor there. But she had an asset that most leaders can only dream of — authority. When she talked, others listened. The squabbling stopped. Without her, who will have this effect?”
  • What Merkel’s political woes mean for the EU, um comentário de John Lloyd para a Reuters: “With such divisions, Germany does not just face a season of choppy politics; it threatens to head out of the zone which its politics have occupied for most of the post-war period. That is, an agreement that the center will hold, and that anti-fascism is an attitude shared by all, part of the fabric of German society, its re-entry into the democratic world.”
 
Este arrepio na espinha que percorreu a eurocracia de Bruxelas deu lugar, depois de reaberta a possibilidade de uma renovação de uma grande coligação CDU/CSU/SPD a um suspiro de alívio. Algo que de resto Peter Müller previu no New York Times, em Hello? Anybody Home? Germany's Voice Suddenly Missing in Brussels. Eis a sua análise: “After the German election, French President Emmanuel Macron laid out his vision for far-reaching EU reforms. But with coalition talks having collapsed in Germany, Berlin suddenly has no voice. Some in Brussels are yearning for a return of the SPD.”
 
Na verdade não é apenas em Bruxelas. Para os entusiastas de uma cada vez maior integração europeia o afastamento do FDP das negociações em Berlim e o regresso do SPD é visto com indisfarçável entusiasmo. No Público Teresa de Sousa desejava mesmo Só mais dois anos, se faz favor: “Depois do colapso das negociações Jamaica, a maioria dos governos europeus faz figas para que volte a ser possível uma “grande coligação”, que assegurará a continuidade da política europeia de Merkel. A Europa ainda precisa da chanceler por mais uns dois anos para concluir as grandes reformas que podem garantir-lhe um futuro. Não é pedir muito.” No El Pais Xavier Vidal-Folch falava mesmo de La Alemania que queremos: “El fiasco de la coalición democristiana/liberal/verde en Alemania, la llamada fórmula Jamaica ,es una muy buena noticia para Europa, desde una perspectiva europeísta.”

 
Há contudo quem, mesmo alinhando no grupo dos mais europeístas, perceba que uma coligação de partidos em crise e a perder eleitorado pode ser uma má solução. É o caso de Wolfgang Munchau, do Financial Times, que assumia abertamente que Germany’s coalition woes reveal the failing centre. Olhando para as sondagens, ele sublinhava o que devia ser óbvio – “The political system is fragmenting. Polls show the CDU/CSU at below 30 per cent, the SPD below 20 per cent — both record lows.” – e por isso não se surpreendia com a decisão dos liberais. Mais: apesar de discordar das posições do FDP sobre a Europa, elogiava a coragem e frontalidade do seu líder, que decidiu não violar uma das bases do seu programa eleitoral: “This is not what German politicians usually do — make an outrageous promise during an election, and then stick to it. Almost the entire political commentariat of Berlin poured scorn over him. They had never seen anything like this before. They predicted that the FDP would lose voter support. Initial polls point to a more mixed picture, with some showing the FDP, and the Greens, actually gaining ground, though one at the weekend has the liberals dropping slightly.”
 
Vale por isso a pena conhecer um pouco melhor este jovem político de 38 anos, algo que podemos fazer com a ajuda deste trabalho do Politico: Christian Lindner’s German government gamble. Nele sublinha-se que “There’s no question that the FDP has learned from past mistakes. The last time it entered into a coalition with Merkel, the party was forced to back off from almost all of its campaign promises, earning it the moniker “pushover party.” It almost disintegrated as a result.”
 
A finalizar dois textos complementares, independentes desta crise mas que ajudam a pensar sobre o momento presente da Alemanha e da Europa, um escrito por uma ensaísta desconhecido, outro de um historiador consagrado. O primeiro saiu no Financial Times, Germany’s place at the centre of the EU cannot hold, e inseriu-se numa série sobre o futuro da UE que aquele jornal está a publicar e para a qual selecionou os melhores ensaios de jovens autores, neste caso Enrico Ellero. A sua tese é que, “At present, Germany can set an example for Europe in terms of economics, trade and government finance, but nothing more: it does not have a clear long-term vision nor the credibility necessary to develop one that could be shared by most of its EU partners.”
 
O outro texto, uma espécie de chave de ouro para fechar este Macroscópio, é um ensaio de Timothy Garton Ash publicado na New York Review of Books, It’s the Kultur, Stupid. Partindo de dois livros recentes, o historiador de Oxford reflecte sobre as características profundas da Alemanha, notando como apesar de todos os seus traumas há tendências que parecem inelutáveis: “The politics are such that the CSU certainly, and the CDU sooner or later, will move to the right on issues of immigration and identity, to try to win back the populist vote—as center-right leaders have done in neighboring Austria and the Netherlands. (...) But precisely if you are moving to the right, while at the same time trying to integrate all those mainly Muslim immigrants, it becomes all the more important to fight the battle of ideas and draw a bright line between positive civic patriotism and xenophobic, new-right nationalism. Here is the cultural struggle for Germany’s future.
 
Se não puderem ler mais nenhum dos textos citados nesta newsletter, procurem não perder este último, apesar de nele não se falar sequer da crise actual – mas fala-se muito de História, e nenhum povo pode ignorar como o seu passado ajuda a explicar o seu presente e permite ler melhor o que futuro pode guardar.
 
De resto já vai muito longo este Macroscópio, pelo que vos desejo boas leituras e, claro, bom descanso.
 
 
b90d7ed2-70a7-41c4-947b-cb56e7c94d84.png
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2017 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa

Nenhum comentário:

Postar um comentário