Vem aí um fim-de-semana invernal, com chuva, vento e frio, um desconsolo uma vez que é, também, o primeiro fim-de-semana da Primavera deste ano de 2018. Sem querer agoirar constipações ou gripes, antes desejando uns dias sossegados no aconchego do lar, lembrem-se de recuperar a velha mezinha dos resfriados para sugerir que, nestes dias em que pode não apetecer sair à rua, algumas leituras podem ser boa companhia para umas horas de repouso bem agasalhado. E são precisamente algumas sugestões de leituras soltas, sem muita relação entre elas, que pela sua qualidade resolvi alinhar de seguida. Vamos pois a elas, sem mais delongas.
A minha primeira escolha é muito pessoal, mas espero que o texto que me chamou a atenção também vos possa entusiasmar. Digo que é uma escolha pessoal por duas razões: primeiro, porque fala da relação dos homens com os cães e eu vivo com vários cães; depois porque a abordagem é científica e a biologia sempre foi a minha paixão. Mas o interesse de Raised by Wolves, o ensaio de Tim Flannery na New York Review of Book é mais alargado, julgo eu, pois não só se desenvolve em torno de três livros, como nos fala naquilo que aproxima o nosso cérebro do de outros animais, e que é muito mais do que julgamos. Os livros abordados são The First Domestication: How Wolves and Humans Coevolved, de Raymond Pierotti e Brandy R. Fogg, What It’s Like to Be a Dog: And Other Adventures in Animal Neuroscience, de Gregory Berns, e How to Tame a Fox (and Build a Dog): Visionary Scientists and a Siberian Tale of Jump-Started Evolution,de Lee Alan Dugatkin e Lyudmila Trut. Deixo-vos apenas este pedaço para vos abrir o apetite: “By way of summary, Berns writes, “With similar brain architectures for the experience of joy, pain, and even social bonds, we can assume that animals experience these things much like we do, albeit without the words for those subjective states.” Modern humans may need Berns’s science to convince us of the similarity between us and other animals, but I suspect that those Neanderthal/human hybrids who entered into a relationship with wolves tens of thousands of years ago already knew it.”
Nestes dias em que tanto de fala do Facebook é bom estar consciente que há mais quem trabalhe com algoritmos que “leem” as nossas preferências e orientam as nossas escolhas. É por isso que ler YouTube, the Great Radicalizer de Zeynep Tufekci no New York Times é tão perturbante. Basta pensar nisto: “It seems as if you are never “hard core” enough for YouTube’s recommendation algorithm. It promotes, recommends and disseminates videos in a manner that appears to constantly up the stakes. Given its billion or so users, YouTube may be one of the most powerful radicalizing instruments of the 21st century.” Um dos trabalhos citados é uma investigação do Wall Street Journal, How YouTube Drives People to the Internet’s Darkest Corners (paywall) que revelou algumas das estranhas preferências do algoritmo daquela plataforma: “It found that YouTube often “fed far-right or far-left videos to users who watched relatively mainstream news sources,” and that such extremist tendencies were evident with a wide variety of material. If you searched for information on the flu vaccine, you were recommended anti-vaccination conspiracy videos.”
Mas se acharem estas últimas leituras demasiado sombrias para um fim-de-semana de descanso podem sempre olhar para o outro lado da tecnologia, o seu lado mais luminoso, algo que encontramos em Rise of the robots: are you ready?, um texto de uma especialista em robótica do MIT, Daniela Rus, sobre “why we need to collaborate rather than compete with artificial intelligence”. Os argumentos são numerosos e o ponto de partida faz todo o sentido: “Technology and people do not have to be in competition. Machines are better at things like crunching numbers, remembering things, finding patterns, lifting heavy objects, and moving with precision; humans are better at tasks that involve creativity, abstract thinking and uncertainty. Collaborating with AI systems, we can augment and amplify many aspects of work and life. (This is something we take to heart at MIT — this year we launched MIT Intelligence Quest, a new initiative focused on human/AI intelligence and collaboration.)”
Mas se este último texto é uma viagem ao futuro, The last whalersé uma reportagem publicada no jornal online Aeon que nos leva a conhecer a saga dos baleeiros que saiam das ilhas Shetland, ao largo da Escócia, e rumavam à Antártida para caçarem o maior animal que a Natureza jamais viu. É também o retrato de como se leva um recurso natural à quase delapidação total: “Many of the Shetlanders spoke about whaling as a deep and broad experience, an identity, a unique landscape, the allure of the whale itself. ‘There’s no doubt about that,’ says Jamieson. The close quarters of a whaling ship, albeit an entire factory floating in the middle of the sea, created a kind of seclusion that even the edge of Antarctica couldn’t bring. Shetland whalers who worked on catcher boats or factory ships lived between the antipodes, commuters to the edge of the world. They had an understanding of the ‘seasonal round’ – that is, the shift in natural-resource harvesting that each season brings. They knew that there was an end to the abundance of the sea.”
A próxima sugestão já a tinha guardada há algumas semanas, à espera de oportunidade, e penso que também calha bem neste fim-de-semana, mesmo sendo uma reflexão mais político-constitucional. Trata-se de um artigo de Fernando Rey Martínez, professor catedrático de Direito Constitucional, saído no El Pais a propósito, ainda, dos 500 anos da Reforma protestante. Ora o que é interessante em Reforma protestante y constitucionalismo é que nele se retoma a ideia de que existem duas tradições constitucionais, uma protestante e centrada no mundo anglo-saxónico, outra de matriz mais católica e que reverencia mais depressa a Revolução Francesa – e que é a tradição espanhola, mas também portuguesa. Defendo o autor que “En el constitucionalismo protestante hay tanta sociedad como sea posible y sólo tanto Estado como sea imprescindible; en el constitucionalismo de impronta católica hay tanto Estado como sea posible y sólo tanta sociedad como resulte necesaria.” O que tem consequências: “En nuestra tradición, el Estado es un dios secular y, como tal, el proveedor ilimitado de gracias, privilegios y prebendas, pero sólo a los “buenos”, es decir, a los míos. En este contexto, la idea de responsabilidad personal se diluye. Sólo cuenta lo que se me debe inmediatamente y gratis. El Estado lo puede todo. En definitiva, contamos con la letra del constitucionalismo, pero la música no suena melodiosa del todo.”
Talvez valha a pena ter esta reflexão presente se lermos, como recomendo, a entrevista que o primeiro-ministro holandês deu à Spiegel sobre a reforma da Eurozona, uma entrevista em que fica bem claro que no seu país se pensa de forma diferente e que lá não se diz que sim a tudo. Em 'We Won't Simply Rubberstamp Everything' Mark Rutte mostra-se disposto a fazer frente a Merkel e a Macron: “We enjoy free movement of people within the EU, so the new German government is welcome to meet with the French government at any time without us being present. But this doesn't mean that we and other EU countries support everything that the Germans and the French agree to. We won't simply rubberstamp everything -- and we will continue to make our own proposals.” Um exemplo daquilo que os holandeses não parecem dispostos a aceitar é a criação de um seguro de depósitos comum a toda a Europa. As suas palavras são duras: “As long as the countries concerned fail to reduce the risks on their own banks' balance sheets, nothing will happen. The Maastricht Treaty imposes public debt ceilings on the member countries, and not on Europe. Just because the Netherlands failed to qualify for the FIFA World Cup, doesn't mean that I now maintain that we have to enter the tournament as a joint European team. Our team will fight its way back to the top on its own.”
Quase a terminar de novo um texto em torno de um livro, desta vez um livro que acaba de sair em Espanha. Em Dos Españas, la misma sangre o El Pais leva-nos até à autora de uma história espantosa: “Un abuelo de Cristina Fallarás fue fusilado en 1936, el otro formaba parte de los pelotones de fusilamiento. Ahora publica la historia de su familia en 'Honrarás a tu padre y a tu madre'” Um título que é justificada assim pela autora: “He conseguido no juzgarlos. Como mucho me juzgo a mí misma. Y no a mí cuando era una niña de 12 años que asistía es casa de mi familia franquista a escenas humillantes para mi abuela Presen, me juzgo a mí de adulta. He tenido que cumplir casi 50 años para preguntarme de dónde vengo y quién soy: si soy una intensa, una payasa, una hija de puta o una escritora”.
Não podia acabar as minhas sugestões de leitura sem alguns especiais do Observador. Foi rica e farta a colheita desta semana, como podem ver aqui, com muitos trabalhos a levar mais longe um jornalismo que procura explicar e enquadrar a actualidade, pelo que estes quatro que seleccionei procuram dar aos leitores opções de leitura muito diversas:
- Como desmontar a retórica anti-vacinas em 8 passos, de Vera Novais, procura responder à questão de saber se é preferível a criança ter uma doença ou ser vacinada contra essa doença. No total são 8 mitos desmontados pela ciência, nomeadamente estes outros dois: “Muitas vacinas em pouco tempo fazem mal? A vacina do sarampo provoca autismo?”
- O que a Cambridge Analytica escondeu em Lisboa, de Ana Pimentel, é um regresso à Web Summit onde falou fundador da Cambridge. Neste texto conta-se o que ele disse e também o que escondeu, ou seja, os milhões de dados tirados do Facebook, as operações na sombra, as relações de Trump com as mulheres.
- Amália, bifes com ovo a cavalo e um Pink Cadillac, de Ana Kotowicz, é uma revisita à mais electrizante campanha eleitoral da nossa democracia, a disputa pela Presidência da República entre Mário Soares e Freitas do Amaral, um luta renhida que ocorreu em 1986 e que a série de Nuno Markl revive. Neste texto há muito que contar, desde recordar que Soares dormia sestas depois de almoço ou que Freitas esteve quase a ter Amália a cantar-lhe o hino.
- Nazis entre oliveiras: Creta e a II Guerra Mundial, de José Carlos Fernandes, é uma introdução a "Creta 1941", o mais recente livro de Antony Beevor, grande historiador da II Guerra Mundial, a ser editado em Portugal, um livro que é um relato detalhado da invasão de Creta pelo ar e da resistência grega ao ocupante alemão, num misto de incompetência e rigidez e desprezo pelas vidas dos homens.
E pronto, é quase tudo, só que deixei um docinho para o fim: a The Atlantic reuniu aqui um extraordinário conjunto de fotografias que nos dão uma ideia da desmesura da China. Em concreto de como a criação de dezenas de empresas de empréstimo de bicicletas levou à construção de milhões de bicicletas a mais, como estas congestionaram as cidades e como, num ano, milhares delas já se encontram em inimagináveis e colossais depósitos de sucata. Só vendo, pelo que não deixem de ver.
Por mim despeço-me não com um até para a semana, mas sim com um até depois da Páscoa, pois o Macroscópio descansará nesta Semana Santa – e eu tentarei fazer o mesmo. Tenham todos boas leituras. E, mesmo sem gripes ou constipações, abifem-se, avinhem-se e abafem-se
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