sábado, 12 de janeiro de 2019

Macroscópio – Como se destrói um país seguido de outras histórias (e de uma árvore do Botswana)

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
Instagram @jmf1957 

Com poucos dias de diferença tomaram posse dois presidentes de dois grandes países da América do Sul: Jair Bolsonaro no Brasil e Nicolas Maduro na Venezuela. Naturalmente que foi a cerimónia de Brasília que mais atenção concentrou, mas não faltaram artigos onde se estabeleciam paralelos entre dois líderes que, situando-se em extremos opostos do espectro político, partilham um registo populista. No New York Times, por exemplo, Jorge G. Castañeda, um antigo ministro dos Negócios Estrangeiros do México, deixou a interrogação sobre Bolsonaro vs. Maduro: The Next Clash in Latin America?, enquanto no Washington Post Ishaan Tharoor elaborou sobre The looming showdown between Maduro and Bolsonaro. Apesar de nestes textos se reflectir sobre os desafios de um continente a passar por grandes mudanças – há mais um presidente populista a chegar ao poder por estes dias, Lopez Obrador no México, sendo que este disporá também de uma maioria legislativa de apoio, o que não sucede com Bolsonaro – a verdade é que a tentação dos paralelos leva porventura a alguns exageros. E é claramente exagerado colocar no mesmo patamar no que se refere ao respeito pela democracia um presidente brasileiro que acaba de tomar posse e um autocrata venezuelano que já vai para o segundo mandato num país literalmente devastado pelas suas políticas.
 
É precisamente por isso que inicio este Macroscópio chamando a atenção – até porque nunca é demais fazê-lo – para o drama venezuelano, um drama bem sintetizado no título do editorial do Washington Post: Latin America has never seen a crisis like Venezuela before: “The epic political and humanitarian crisis in Venezuela is due to pass a new juncture Thursday when President Nicolás Maduro is sworn in for a second six-year term. His first saw an implosion unprecedented in modern Latin American history: Though his country was not at war, its economy shrank by 50 percent. What was once the region’s richest society was swept by epidemics of malnutrition, preventable diseases and violent crime. Three million people fled the country. Yet Mr. Maduro, having orchestrated a fraudulent reelection, presses on with what the regime describes as a socialist revolution, with tutoring from Cuba and predatory loans from Russia and China.”
 

Em Portugal, no Observador, dedicámos também alguma atenção a este país onde ainda vivem tantos portugueses, tendo publicado dois especiais cuja leitura recomendo sem reservas:  
  • Venezuela até ao fundo: os números do país de Nicolás Maduro, de João de Almeida Dias, um apanhado quantificado daquilo que é o dia a dia num país que podia ser um dos mais ricos do mundo. Um exemplo: “Atualmente, estima-se que o salário mínimo da Venezuela, 4500 bolívares, valha 6,38 dólares norte-americanos, também equivalente a 5,57 euros. A impossibilidade de comprar comida de qualidade de forma regular e sustentada ficou já patente numa fotogaleria da autoria da Reuters, na qual, ao lado de bens de primeira necessidade, eram colocadas torres com o dinheiro necessário para comprá-los. À altura, em agosto de 2018, um quilo de carne valia 1,45 dólares; a mesma quantidade em carne de frango subia aos 2,22 dólares; um quilo de queijo custava 1,14 dólares; e um quilo de cenouras ficava por 0,46 dólares.”
  • “A Venezuela tornou-se o sonho de Pablo Escobar.” Entrevista ao “sicário financeiro” Russ Dallen, realizada por Edgar Caetano, uma conversa muito reveladora onde não se fala apenas de economia mas se conta também o que é viver em Caracas: “Antigamente a Venezuela tinha uma vida noturna ótima, as pessoas iam para as ruas comer e cantar, hoje ninguém sai à rua à noite porque a qualquer momento podemos ser assaltados… ou pior. Há muita gente que se dedica ao crime e até alguns polícias chegam a casa, mudam de camisa e vão para a rua assaltar. Alguns nem sequer se dão ao trabalho de mudar de camisa: fazem assaltos mesmo com a farda policial. Transformámos este país num narco-Estado que corresponderá ao sonho de Pablo Escobar, com um sistema judicial completamente corrupto e sem qualquer réstia de democracia.”
Sucede ainda que a experiência venezuelana tem lições mais gerais, como Sebastián Edwards, do Project Syndicate, argumenta em The New Old Populism. Para este autor, “As populist politics takes hold in developed countries, Latin America’s long experience with such governments is instructive. Ultimately, the lower- and middle-income voters who support populist leaders typically find themselves worse off than they were before.” Por outra palavras: mesmo havendo diferenças substantivas entre os populismos de um Trump ou de um governo italiano por comparação com os populismos latino-americanos, os pontos de contacto são numerosos e uma parte importante do discurso económico até coincide de forma surpreendente. Daí que o risco de virmos a ter resultados económicos semelhantes é real.
 

E mais real é se pensarmos que as economias desenvolvidas dão sinais de falta de vigor, porventura mesmo de alguma contração. Isso mesmo se discute na Spiegel em Germany Prepares for an Economic Downturn, um longo e informado dossier no qual Christian Reiermann passa em revista os principais indicadores e procura explicações para os resultados menos bons dos últimos trimestres. Mais: deixa um alerta para as fragilidades das economias desenvolvidas, um alerta cheio de condimentos para nos deixar a nós, portugueses, bem inquietos: “There is no doubt that the dangers are growing, and that this is happening at one of the worst moments imaginable. The IMF's Lipton is indeed not alone in his worry that governments and central banks aren't sufficiently prepared for a downturn. Many countries are still dealing with the consequences of the last financial crisis. State debt in France and the United States, for example, is about 100 percent of their GDP. If a new crisis were to take place, the governments of many countries would hardly have the financial elbow room for spending programs or tax rebates. The situation isn't particularly rosy when it comes to the central banks either.”
 

Mas se na Alemanha se acendem sinais amarelos, um pouco mais para leste a Polónia continua a mostrar como se concretiza um milagre económico. E se tantas vezes somos pessimistas, o artigo de Jan Cienski no Politico, Poland’s transformation is a story worth telling, é daqueles que revigora a confiança na capacidade do génio humano para, dadas as condições necessárias, se superar. É um testemunho muito pessoal que vai bem além da simples aridez dos números: “Looking at the numbers, there isn’t much question that the transformation that began in 1989 (...) has been the best time in the country's 1,000-year history. However, that isn't a story that the current Law and Justice party government is keen to tell. It's more concerned with highlighting wartime bravery (and covering up wartime cravenness) than extolling something that really makes Poland stand out: Its long record of economic growth created by home-grown entrepreneurs and foreign investors lured to a country of hard-working people keen to get rich. The scale of what’s happened in Poland over the last 29 years is difficult to grasp unless you were there at the beginning, as I was.” Devo dizer que este espírito empreendedor e trabalhador que o autor identifica foi precisamente o que mais me surpreendeu sempre que estive na Polónia, um país de onde sempre regressei, fosse qual fosse o momento político, com a sensação de que por lá havia, e continuará a haver, uma vontade de atingir a prosperidade que há muito eu não encontro em Portugal.
 

Um outros país onde também sempre encontrei muita vontade de trabalhar para se viver melhor foi a China – ou mais exactamente a China que segue a máxima de “enriquecer é glorioso” deixada pelas reformas de Deng Xiao Ping. É essa China que já se alcandorou hoje à posição de segunda economia mundial e começa a rivalizar em cada vez mais frentes com os Estados Unidos. O seu mais recente sucesso, já referido num Macroscópio anterior, foi o envio de uma nave para a face oculta da Lua, uma proeza científica que justifica um dos editoriais da edição desta semana da The Economist: How China could dominate science – Should the world worry? O texto deixa-nos alguns motivos de inquietação mas também explica que a China só poderá crescer muito cientificamente abrindo-se ainda mais, o que pode ajudar a controlar os riscos do mau uso político dos desenvolvimentos científicos. Em concreto, “Authoritarian governments have a history of using science to oppress their own people. China already deploys ai techniques like facial recognition to monitor its population in real time. The outside world might find a China dabbling in genetic enhancement, autonomous ais or geoengineering extremely frightening. These fears are justified. A scientific superpower wrapped up in a one-party dictatorship is indeed intimidating. But the effects of China’s growing scientific clout do not all point one way.
 
Para o fim desta newsletter deixei três leituras que podem enriquecer o fim-de-semana em que estamos a entrar (e não digo aquecer, pois o frio que se anuncia não passa só com letras...). São elas:
  • Combatiente por la paz, Mario Vargas Llosa, é um sentido testemunho pessoal sobre Amos Oz, o grande escritor israelita recentemente desaparecido, um texto muito franco do Prémio Nobel peruano – “Todas las veces que he dicho en mi vida que Israel era el único país donde yo me he sentido siempre un hombre de izquierda, era por las cosas que allí hacía, decía y escribía Amos Oz”. Eis uma passagem significativa do porquê deste sentimento: “Era un sionista convicto y confeso, porque creía que los israelíes tenían derecho a ocupar una tierra a la que estaban ligados históricamente y un país que habían construido, pero su sionismo no le impedía ver las injusticias que cometían los colonos en los territorios ocupados. Por eso defendió hasta el fin de sus días la idea de los dos Estados —uno israelí y otro palestino—, pese a que muchos de sus antiguos amigos, luego de la derechización tan atroz experimentada por el Gobierno israelí y el canceroso crecimiento de los asentamientos ilegales en los territorios ocupados, la encontraban ya imposible y tendían a sostener la idea de un solo Estado laico y compartido por las dos comunidades. A Amos Oz esta solución le parecía absolutamente irreal e inoperante (“eso sólo en Suiza”, insistía).”
  • Warnings From Versailles, de Margaret MacMillan, a consagrada autora de Sleepwalkers, o conhecido livro sobre como se chegou à imensa catástrofe que foi a I Guerra Mundial, analisa neste texto da Foreign Affairs as razões do fracasso da paz imposta pelos vencedores, considerando que “The terms of Versailles were not the only obstacle to a lasting resolution of European conflicts in 1919. London and Washington also undermined the chances for peace by quickly turning their backs on Germany and the rest of the continent.” É este ponto, o do abandono da Europa ao seu destino pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido no pós-guerra, que MacMillan não gostaria de ver repetir-se: “Today’s world is not wholly comparable to the worlds that emerged from the rubble of the two world wars. Yet as the United States once again turns inward and tends only to its immediate interests, it risks ignoring or underestimating the rise of populist dictators and aggressive powers until the hour is dangerously late. President Vladimir Putin of Russia has already violated international rules and norms, most notably in Crimea, and others—such as President Recep Tayyip Erdogan of Turkey or Chinese President Xi Jinping—seem willing to do the same. And as Washington and other democratic powers abdicate their responsibility for the world, smaller powers may abandon their hopes for a peaceful international order and instead submit to the bullies in their neighborhoods. A hundred years on, 1919 and the years that followed still stand as a somber warning.” Sobre este mesmo tema recordo que a semana passada ele foi o objecto das minhas habituais Conversas à Quinta com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto: Versailles, uma paz que levou à pior das guerras.
  • The Mysterious Life (and Death) of Africa’s Oldest Trees, de Jaime Lowe com imagens maravilhosas de Mikhael Subotzky–Magnum Photos, é a sugestão que guardei mesmo para o fim finzinho pois será a leitura mais relaxante, mesmo que abordando um tema de algum alarme, o progressivo desaparecimento de um tipo muito especial de grandes e velhíssimas árvores africanas. Com efeito “A shocking study published in 2018 found that some of the most beautiful, and famous, baobab trees are dying. What will this mean for the people who depend on them—and for the planet?” Um dos lados interessantes deste inquérito que é também uma grande reportagem é que reenquadra o alarmismo mediático e explica como o problema pode ser bem mais complexo do apenas mais um efeito das alterações climáticas, o tipo de explicação-padrão que vai servindo para explicar todos os desastres naturais: “The mainstream news stories about baobab demise immediately connected the death of the trees to our current climate crisis. The articles tended to leave out any nuance about what we know, and what we don’t, about the current state of baobabs.” É um trabalho longo mas que vale a pena ler – ou, pelo menos, não deixar de apreciar as fotografias que o ilustram.
 
E por hoje é tudo. Tenham um bom fim-de-semana, com boas leituras e poucas gripes,

 
 
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