Entre 2017 e 2024, mais de dez mil dadores de sangue desapareceram dos registos nacionais. A cifra, por si só, é alarmante; mas o que ela revela, em profundidade, é um sintoma mais grave: a erosão de uma cultura de solidariedade que outrora pulsava no corpo coletivo do país.
Portugal enfrenta, silenciosamente, uma hemorragia que não se vê. Entre 2017 e 2024, mais de dez mil dadores de sangue desapareceram dos registos nacionais. A cifra, por si só, é alarmante; mas o que ela revela, em profundidade, é um sintoma mais grave: a erosão de uma cultura de solidariedade que outrora pulsava no corpo coletivo do país.
A Federação Portuguesa de Dadores Benévolos de Sangue (Fepodabes) ergueu, esta semana, um novo apelo à consciência pública. As reservas nacionais encontram-se abaixo dos níveis de segurança, sobretudo do tipo O+, o sangue universalmente mais necessário. “É muito importante contribuir com a dádiva para o bem-estar e saúde dos milhares de doentes que dela necessitam”, sublinhou o presidente da Fepodabes. O tom é de súplica cívica, quase pastoral. Mas o silêncio com que este apelo ecoa na sociedade portuguesa é o que mais deve preocupar-nos.
Num país que se quer democrático e solidário, o declínio da dádiva voluntária é um espelho cruel do tempo. A lógica neoliberal, que fragmenta o tecido comunitário e converte o cidadão em consumidor, também se infiltra nas esferas da generosidade. Doar sangue — ato anónimo, gratuito e profundamente humano — é um gesto que resiste à mercantilização da vida. No entanto, quando a solidariedade deixa de ser um valor e se transforma numa exceção, a própria ideia de comunidade adoece.
A crise da dádiva não é apenas uma questão logística de bancos de sangue; é um problema ético e político. Reflete uma sociedade fatigada, onde a precariedade e a desconfiança corroem o compromisso com o outro. Como pedir às pessoas que doem, se tantas sentem que lhes foi tirado tanto — o tempo, a estabilidade, a esperança? Ainda assim, é justamente nesses tempos de desamparo que a generosidade se torna mais revolucionária.
Dar sangue é, talvez, o ato mais igualitário que existe. O sangue não conhece classes, fronteiras ou estatutos. No tubo que se enche, corre a mesma matéria que sustenta a vida de quem trabalha, de quem governa e de quem resiste. É o fio invisível que nos recorda que ninguém se salva sozinho.
É por isso que a esquerda — e todos os que acreditam na dignidade humana como princípio inegociável — deve fazer deste tema um imperativo moral e político. Defender o Serviço Nacional de Saúde é também defender o gesto solidário que o alimenta. O sangue não é apenas fluido vital; é símbolo de pertença e de cuidado mútuo, a metáfora perfeita de uma sociedade onde o bem comum prevalece sobre o interesse privado.
Hoje, o apelo da Fepodabes deveria ressoar como um toque de clarim à consciência nacional. Cada bolsa de sangue doada é um ato de resistência contra o cinismo e o individualismo. É uma flor deixada à porta da humanidade, um tributo silencioso àquilo que ainda nos torna pessoas — a capacidade de nos darmos, sem esperar nada em troca.
E talvez seja tempo de recordar que, no fim, a vida não se mede pela soma do que guardamos, mas pela quantidade de vida que oferecemos.
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por Nuno Malafaia
19 de novembro 2025 - 14:06
Fonte: https://www.esquerda.net/opiniao/quando-o-sangue-escasseia-um-retrato-da-indiferenca-e-da-urgencia-humana/96634

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