terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Macroscópio – Uma despedida, um aniversário, mas sobretudo boas leituras

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


16 anos é muito tempo. Pelo menos é muito tempo enquanto dirigente de um partido em democracia. No caso de Paulo Portas foram 5.727 dias de liderança do CDS. Uma pequena eternidade nas poucas décadas que dura a nossa democracia e a que quis pôr fim na última noite, anunciando que não se recandidatará à liderança do partido. Teremos muito tempo para amadurecer esta saída e recordar o que foram os seus anos à frente do CDS, pelo que por hoje apenas vos recomendo um breve apanhado, realizado por Helena Pereira e Rita Dinis aqui no Observador, das suas principais vitórias e derrotas. Boa altura para recordar, por exemplo, como chegou à liderança em 1998, como não controlou a dissidência do “queijo limiano” ou como será sempre perseguido por uma palavra – “irrevogável” – e por um caso – o dos submarinos.

151 anos é muito mais tempo, o tempo que leva de vida o Diário de Notícias, o segundo diário nacional mais antigo (o mais antigo é publicado em Ponta Delgada, é o Açoreano Oriental). Curiosamente a data – 29 de Dezembro – também diz alguma coisa ao Observador, porque foi num 29 de Dezembro, mas de 2011, que este projecto começou a germinar. Mas fiquemos no DN que, cumprindo a tradição, publicou uma edição especial com muitos textos de convidados. Desses textos seleccionei três para vos recomendar:
  • Ensino e avaliação, de João Lobo Antunes, uma crónica muito pessoal onde recorda como viveu, na sua infância, os seus primeiros exames, com destaque para o da 4ª classe: “A Mãe, que era a favor das avaliações, entendeu que como preparação para o exame de admissão ao liceu eu teria de fazer o exame de instrução primária. As tias assistiram, fazendo tricot, sentadas nas carteiras. Não esqueço a pergunta cuja resposta falhei: "Porque é que uma galinha quando é atropelada oferece alguma resistência?" Eu duvidei da resistência e achei a pergunta muito estúpida. A resposta certa era: "Porque é vertebrada e tem esqueleto."
  • A agenda do Papa, de D. Manuel Clemente, onde o Patriarca de Lisboa procura olhar para 2016 através das lentes do Papa Francisca e das mensagens que ele tem enviado.  Por exemplo: “Para os crentes, a mútua atenção que se prestam adequa-os à própria atenção com que Deus acompanha as suas vidas. A esta atenção divina chama o Papa "misericórdia", palavra latina que resume várias passagens bíblicas - e mesmo extrabíblicas - em que Deus manifesta um amor entranhado pelo povo, sobretudo pelos mais pobres e frágeis. Misericórdia traduz-se por "coração voltado para os pobres". Assim sendo, a misericórdia é o contrário da indiferença. Para os católicos, o Papa Francisco abriu um Jubileu da Misericórdia (dezembro de 2015 - novembro de 2016), que há de ser vivido na conversão de cada um e no maior compromisso solidário de todos.”
  • Cristãos e muçulmanos, de Claudio Torres, que não é mais uma reflexão sobre a relação entre os seguidores de duas das religiões do Livro, antes um bom resumo daquilo que a arqueologia nos permitiu saber sobre a passagem dos muçulmanos pela Península – e por Portugal. Escreve ele: “O que sabemos hoje é que não foram esses exércitos ou soldados [árabes e berberes] a trazer o Islão e a implantá-lo na Península. A islamização, como uns séculos antes acontecera com a cristianização, foi um processo lento e gradual alimentado pelas grandes rotas do comércio mediterrânico. Os grandes movimentos de ideias, as grandes religiões nunca foram ou são difundidas ou impostas por militares. Estes não sabem dialogar ou convencer. O seu papel e eficácia é o saque e a conquista.”

Feita esta referência obrigatória, passo a uma mão-cheia de outras sugestões que cobrem temas bastante variados, algumas delas de textos que têm vindo a ser recuperados para este final de ano pela sua qualidade e pelo impacto.

Começo porém por um texto de hoje para poder regressar a um tema já tratado no Macroscópio de ontem: o caso da morte de David Duarte no Hospital de S. José. Faço-o para recomendar o texto de Paulo Rangel no Público, A propósito da morte no S. José. Destaco em especial esta passagem:
Quase todo o debate foi feito com alarde e com demagogia, numa lógica de aproveitamento “político”. Primeiro, pelos actores partidários e depois pelos candidatos presidenciais. Quase todos, praticamente sem excepção, afinando pelo mesmo diapasão: o de que a falta de neurocirurgião de serviço é uma consequência imediata da política de cortes cegos na saúde e no Serviço Nacional de Saúde. Sintomaticamente, a única voz que, de um modo responsável e sereno, chamou a atenção para que esta falha não era uma simples decorrência dos ajustamentos financeiros na saúde foi a do Ministro Adalberto Campos Fernandes. Com efeito, e num momento em que teria sido fácil embarcar na “corrida ao populismo”, o novo titular da pasta chamou a atenção para que estava também em jogo um problema de “organização” e deu até os exemplos dos hospitais de Coimbra e do Porto, onde uma situação desta natureza não teria nunca sucedido.
Ainda há muito por esclarecer sobre este caso, e não estou seguro que Rangel tenha toda a razão quando escreve, mais adiante, que “o nosso Serviço Nacional de Saúde atenta profundamente contra a equidade territorial”, mas é de sublinhar que, tal como nos textos de ontem, também aqui se foge da demagogia sobre os “cortes” que tudo explicariam.

Recupero a seguir uma entrevista já com mais dias, a do Expresso ao escultor Rui Chafes, que ganhou este ano o Prémio Pessoa:“Não existe arte sem a ambição de parar o tempo”. É uma conversa longa e rica, de que destaco a passagem que sustenta o título, uma reflexão que me pareceu especialmente interessante:
Sou alérgico a uma grande parte da atitude da arte contemporânea, que é produto de um grande facilitismo, de uma época em que tudo é low cost, as viagens, a gasolina, a arte. E, portanto, uma grande parte dessa atitude não me agrada porque é pouco profunda, é superficial, vai desaparecer, não tem capacidade para nos agarrar. A arte não contemporânea, nem que seja uma escultura do Camboja, tem a paragem do tempo. E para mim não existe arte se não houver essa ambição de parar o tempo. Essa ambição de criar silêncio, de criar um momento onde o tempo é suspenso. E alguma arte contemporânea suspende o tempo.

Prossigo agora com um texto da Spectator, um daqueles que a revista recuperou para este final de ano, uma peça de Douglas Murray escrita pouco depois dos ataques ao Charlie Hebdo e a que os atentados de Novembro vieram dar toda a actualidade:‘Religion of peace’ is not a harmless platitude. É um texto que procura contrariar o discurso dominante sobre o Islão:
We have spent 15 years pretending things about Islam, a complex religion with competing interpretations. It is true that most Muslims live their lives peacefully. But a sizeable portion (around 15 per cent and more in most surveys) follow a far more radical version. The remainder are sitting on a religion which is, in many of its current forms, a deeply unstable component. That has always been a problem for reformist Muslims. But the results of ongoing mass immigration to the West at the same time as a worldwide return to Islamic literalism means that this is now a problem for all of us.

Um interessante contraponto a esta visão – ou um complemento, se preferirem – um texto da Quartz sugestivamente intitulado A letter to a young Muslim on the future of Western Islam. Sem iludir os preconceitos que possam existir no Ocidente, o autor é directo: “People will also ask you, “Do you condemn terrorism?” And you must not say “Islam is a religion of peace.” You will do more than condemn, too. You will show that you are actively involved in building narratives that compete with the dangerous ones. I know you won’t do this because powerful people are asking the questions, but because you, like me, want better for your communities.”

Continuando por estas águas, é importante termos consciência de que o terrorismo faz cada vez mais vítimas, algo que é bem visível nos gráficos de um artigo do Asian Times, The tolerable level of terrorism, um dos quais que reproduzo a seguir:

O autor do texto, David P. Goldman, argumenta longamente, e com muitos dados, sobre a evolução da nossa relação com os islamistas radicais, notando que a sua forma de actuar coloca problemas nunca antes conhecidos:
Cultivating “good Islamists” (good because they refrain from violence even though they have the same sentiments and objectives as the terrorists) and “bad Islamists” (who actually kill people) was a dodgy approach to begin with. The trouble is that very large numbers of Muslims are willing to kill themselves in order to harm enemy noncombatants, and the number appears to be increasing. To my knowledge that is something new under the sun. Japanese kamikazes and Nizari assassins in the Middle Ages, like the pre-1917 Bolsheviks, were wiling to die to kill public officials or soldiers. But the murder of noncombants through suicide attacks (or attacks likely to prove suicidal) is something we have never before witnessed.

Para terminar este bloco, um última recomendação: a de uma reportagem fora-de-série do New York Times, A Syrian Family’s Tragedy Goes Beyond Iconic Image of Boy on Beach, um trabalho onde se dá conta de como os vários ramos da família do pequeno Alan Kurdi, cujo corpo deu à praia este Verão na Turquia, provocando a comoção geral, tem procurado fugir do inferno sírio. É um trabalho impossível de sintetizar mas que se baseia em conversas com os membros de uma família alargada e que a guerra espalhou pelo mundo: alguns, poucos, ainda estão na Síria, os outros vivem, ou sobrevivem, na Turquia, no Iraque, na Alemanha e no Canadá. Leiam, vale a pena.



Antes de terminar por hoje regresso a Portugal para vos apresentar uma nova colaboradora do Observador, a escritora Djaimilia Pereira de Almeida que nos brinda com uma deliciosa crónica, Um halo de migalhas, onde nos conta como tentou aprender, com pouco sucesso, a fazer filhoses enroladas com a ajuda da avó de uma amiga, algo que exige saberes que se passam de geração em geração mas não através de livros de receitas. Pequena e significativa passagem:
Mortos os nossos mortos, viramo-nos para as suas receitas e talentos, na esperança de uma ressurreição mimética. Filhos sexagenários, até então desapaixonados da comida insossa da sua mãe, incitam as mulheres a que aprendam a fazê-la. Filhas e netas revezam-se, ano a ano, na tentativa de acertar num pudim molotov que não coube a ninguém por testamento. E cada Natal é este menu de erros, tentativas, aproximações seguidas à risca, fados e atrasos, halos de migalhas, carne seca demais, sonhos engordurados: a pauta adulterada dos anos que precedem o momento em que alguma coisa se torna própria, muito antes de nos esquecermos para sempre do que lhe dera origem.

Não me enganarei muito se pensar que ainda deverá haver migalhas em muitas das mesas dos leitores do Macroscópio, doces que sobraram e esperam durar até ao Ano Novo, alguma coisa de que talvez se acabem por esquecer no fundo do frigorífico. É isso que também faz a nossa vida, neste tempo, em que o Natal resiste, mesmo quando aqui e além lhe querem dar outro nome e significado. Mas deixo essas dores para outra altura, por hoje despeço-me com votos de bom descanso e melhores leituras.

 
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