domingo, 13 de março de 2016

A medicina humanista


"Hoje em dia quando um doente entra no consultório, a primeira coisa que faz é mostrar os imensos exames e radiografias que traz na mão. E o mais estranho é que se lhe peço para me falar de como se sente, do que tem, até fica surpreendido".

João Lobo Antunes in JN

Mas é esta a Medicina que muitos (doentes) querem. Na minha última urgência, dizia-me uma mãe: "Ó dôtore, parece impossível! Já vim 5 vezes à Urgência com a criança e ainda não lhe fizeram uma chapa". Não queria saber do exame físico, do que a levava lá. Queria que a criança fizesse "uma chapa". Lá lhe tentei explicar que os exames de diagnóstico, principalmente nas crianças, só devem ser feitos quando realmente necessários. Que têm problemas, que custam dinheiro e que muitas vezes não trazem informação nova. A criança, coitada, acabou por levar com umas análises, porque a mãe insistia que tinha febre (curiosamente nunca teve, durante as para aí 8 horas que esteve no SU). Como estávamos à espera, as análises eram normais.

Mas voltando ao tema... Hoje em dia, bom médico é aquele que pede muitos exames. E quanto mais complicados melhor. De que interessa fazer um exame neurológico completíssimo, se a D. Joaquina quer é fazer "um taco à cabeça". De que interessa colher uma história clínica completa, se o Sr. Fernando quer é fazer "umas análises gerais".

É cada vez mais difícil ser um médico humanista. Ouvir, examinar, aconselhar, apoiar. São coisas cada vez mais difíceis, cuja dificuldade aumenta em relação directa com os avanços técnicos da medicina. Os médicos, cada vez mais são (e têm de ser, na minha opinião), dividos em dois grupos. Não é os médicos de primeira e os de segunda, mas os médicos de cuidados primários, que conhecem o doente a fundo; que têm de ter tempo para os "seus" doentes; que conhecem o contexto familiar e social dos indivíduos; que ouvem e apoiam. E os outros... Os técnicos diferenciados. Os que executam as técnicas altamente diferenciadas; os que tratam de doenças específicas; os que se especializam em alguns dos sistemas desse "universo" que é o ser humano. São os médicos que tratam doentes e os médicos que tratam doenças...

E a escolha, está também nas mãos da sociedade. Se querem continuar a descredibilizar os cuidados de saúde primários, em detrimento dos "cuidados hospitalares". Se querem estabelecer uma ligação ao "seu" médico de família, ou recorrer de forma desordenada e desconexa às urgências hospitalares; se preferem tratar dos seus familiares doentes em casa ou depositá-los numa enfermaria de um hospital; se querem continuar a ter hospitais desumanizados, com enfermarias colectivas, burocráticos e centralizados ou centros de excelência, mais pequenos, com privacidade e pessoal dedicado; se querem continuar a "explorar" os erros médicos, forçando uma medicina defensiva, baseada no confronto e nos meios auxiliares de diagnóstico ou se por outro lado preferem uma medicina de "responsabilidade partilhada", baseada na confiança e no humanismo.

Se o humanismo, por parte dos médico, obriga a ver o doente como um todo, a perceber o contexto da doença e do seu impacto na vida do indivíduo, em compreender e ajudar; ao doente obriga a confiar e respeitar o seu médico, a aceitar que nem todos os problemas têm resolução (pelo menos em tempo útil), que o "seu" médico tem mais doentes, mas acima de tudo que o seu médico também é Homem, também tem dias bons, tem dias maus, tem emoções, família, erros, alegrias e tristezas, amigos, sofrimento, doenças, dores, mágoas, mau-feitio, férias, luxúria, contas a pagar, fins-de-semana, horário de trabalho, paixões, clube de futebol, partido político, ambições, cansaço...


O dia chegará em que os médicos serão funcionários, operadores de um computador, em que se limitarão a pôr os dados de um lado e a recolher a terapêutica do outro. E os humanistas, que ouvem, vêem e tratam os doente passarão a ser os curandeiros do futuro! Ou talvez não...



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