"Hoje em dia quando um doente entra
no consultório, a primeira coisa que faz é mostrar os imensos exames e
radiografias que traz na mão. E o mais estranho é que se lhe peço para me falar
de como se sente, do que tem, até fica surpreendido".
João Lobo Antunes in JN
Mas é esta a Medicina que muitos
(doentes) querem. Na minha última urgência, dizia-me uma mãe: "Ó dôtore,
parece impossível! Já vim 5 vezes à Urgência com a criança e ainda não lhe
fizeram uma chapa". Não queria saber do exame físico, do que a levava lá.
Queria que a criança fizesse "uma chapa". Lá lhe tentei explicar que
os exames de diagnóstico, principalmente nas crianças, só devem ser feitos
quando realmente necessários. Que têm problemas, que custam dinheiro e que
muitas vezes não trazem informação nova. A criança, coitada, acabou por levar
com umas análises, porque a mãe insistia que tinha febre (curiosamente nunca
teve, durante as para aí 8 horas que esteve no SU). Como estávamos à espera, as
análises eram normais.
Mas voltando ao tema... Hoje em dia, bom
médico é aquele que pede muitos exames. E quanto mais complicados melhor. De
que interessa fazer um exame neurológico completíssimo, se a D. Joaquina quer é
fazer "um taco à cabeça". De que interessa colher uma história
clínica completa, se o Sr. Fernando quer é fazer "umas análises
gerais".
É cada vez mais difícil ser um médico
humanista. Ouvir, examinar, aconselhar, apoiar. São coisas cada vez mais
difíceis, cuja dificuldade aumenta em relação directa com os avanços técnicos
da medicina. Os médicos, cada vez mais são (e têm de ser, na minha opinião),
dividos em dois grupos. Não é os médicos de primeira e os de segunda, mas os
médicos de cuidados primários, que conhecem o doente a fundo; que têm de ter
tempo para os "seus" doentes; que conhecem o contexto familiar e
social dos indivíduos; que ouvem e apoiam. E os outros... Os técnicos
diferenciados. Os que executam as técnicas altamente diferenciadas; os que
tratam de doenças específicas; os que se especializam em alguns dos sistemas
desse "universo" que é o ser humano. São os médicos que tratam
doentes e os médicos que tratam doenças...
E a escolha, está também nas mãos da
sociedade. Se querem continuar a descredibilizar os cuidados de saúde
primários, em detrimento dos "cuidados hospitalares". Se querem
estabelecer uma ligação ao "seu" médico de família, ou recorrer de
forma desordenada e desconexa às urgências hospitalares; se preferem tratar dos
seus familiares doentes em casa ou depositá-los numa enfermaria de um hospital;
se querem continuar a ter hospitais desumanizados, com enfermarias colectivas,
burocráticos e centralizados ou centros de excelência, mais pequenos, com
privacidade e pessoal dedicado; se querem continuar a "explorar" os
erros médicos, forçando uma medicina defensiva, baseada no confronto e nos
meios auxiliares de diagnóstico ou se por outro lado preferem uma medicina de
"responsabilidade partilhada", baseada na confiança e no humanismo.
Se o humanismo, por parte dos médico,
obriga a ver o doente como um todo, a perceber o contexto da doença e do seu
impacto na vida do indivíduo, em compreender e ajudar; ao doente obriga a
confiar e respeitar o seu médico, a aceitar que nem todos os problemas têm
resolução (pelo menos em tempo útil), que o "seu" médico tem mais
doentes, mas acima de tudo que o seu médico também é Homem, também tem dias
bons, tem dias maus, tem emoções, família, erros, alegrias e tristezas, amigos,
sofrimento, doenças, dores, mágoas, mau-feitio, férias, luxúria, contas a
pagar, fins-de-semana, horário de trabalho, paixões, clube de futebol, partido
político, ambições, cansaço...
O dia chegará em que os médicos serão
funcionários, operadores de um computador, em que se limitarão a pôr os dados
de um lado e a recolher a terapêutica do outro. E os humanistas, que ouvem,
vêem e tratam os doente passarão a ser os curandeiros do futuro! Ou talvez
não...
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