sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

RAP e os mariconços

Fernanda Câncio
Urge criar um movimento para a recuperação de termos tão lindos como "escarumba", "judiaria" e "ciganagem". Sobretudo num país em que quem ande na rua - experiência que recomendo a RAP - sabe que expressões discriminatórias continuam a ser descomplexadamente utilizadas para "gozar" com pessoas concretas.

Pára tudo. Ricardo Araújo Pereira disse, em entrevista ao i, que um seu antigo sketch em que referia pessoas como "o coxo, o marreco e o mariconço" hoje "seria impossível". Saiu uma lei a proibir estas palavras? Há pessoas espancadas por proferi-las? Ameaças de morte? Não. Há, explica RAP, "um ambiente cultural".

Espera aí, mas o sketch em causa não é uma crítica a esses termos, contribuindo para a censura social e cultural do seu uso? É o seu autor, aliás justamente conhecido pelo ativismo na luta contra as discriminações, que agora se queixa de que referir assim pessoas pode ser malvisto?

e estão confusos vão ficar mais. Porque os ambientes culturais não impedem de fazer coisas; podem é levar a pensar duas vezes. Ora RAP não acha que um sketch assim já não faz sentido; teme as consequências de más interpretações - ou seja, tem medo. De quê? Das redes sociais que, diz, "ladram". E então? Não é ele a declarar que "o mundo em que gostava de viver é aquele em que se as pessoas se sentem ofendidas por uma declaração podem ofender o autor desta"? É, mas: "Grupos de pessoas, umas organizadas e outras fruto da dinâmica das redes sociais, conseguem resultados inadmissíveis. Tenho assistido a coisas, felizmente mais no estrangeiro, que levam gente a perder o emprego." OK: RAP teme que deixem de lhe dar trabalho. É compreensível. Mas este é o homem que repete "as palavras não são atos". Dizer que alguém devia ser despedido não é despedi-lo, certo? "São só palavras." Ou afinal as palavras são ações e têm consequências, e RAP só vê isso se a palavra for usada para tentar que alguém perca o trabalho?

Por contraditória e tola que seja, porém, esta campanha de RAP está a resultar. As redes "latem" que os humoristas estão a ser perseguidos e que há quem queira "proibir" - já li "criminalizar"- certas palavras. Eh pá, urge criar um movimento para a recuperação de termos tão lindos como "escarumba", "judiaria" e "ciganagem". Sobretudo num país em que quem ande na rua - experiência que recomendo a RAP - sabe que expressões discriminatórias continuam, incluindo nas escolas onde é ídolo, a ser descomplexadamente utilizadas para "gozar" com pessoas concretas. Um país onde aquilo que tanto o apavora - o PC (politicamente correto) - nunca foi sequer entendido, quanto mais praticado.

Se há, nos países anglo-saxónicos, episódios estúpidos e preocupantes associados ao PC? Há. E devem ser denunciados e combatidos. Mas fazer de conta que se passam cá e acusar de ameaça à liberdade de expressão quem aqui pugna por um tratamento digno e igualitário, lutando contra vitimizações seculares simbolizadas em expressões criadas para ofender e humilhar, como "mariconço", serve exatamente para quê? Qualquer que seja a intenção, resulta no reforço das marcas da dominação e do bullying, em fazer "giro" e "livre" perseguir os perseguidos, massacrar os massacrados. Obrigadinha, RAP, mas para isso já tínhamos a direita trumpista.

Fonte:dn.pt/opiniao
16 DE DEZEMBRO DE 201600:42

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