Fernanda Câncio |
Urge
criar um movimento para a recuperação de termos tão lindos como
"escarumba", "judiaria" e "ciganagem".
Sobretudo num país em que quem ande na rua - experiência que
recomendo a RAP - sabe que expressões discriminatórias continuam a
ser descomplexadamente utilizadas para "gozar" com pessoas
concretas.
Pára
tudo. Ricardo Araújo Pereira disse, em
entrevista ao i,
que um seu antigo sketch em que referia pessoas como "o coxo, o
marreco e o mariconço" hoje "seria impossível". Saiu
uma lei a proibir estas palavras? Há pessoas espancadas por
proferi-las? Ameaças de morte? Não. Há, explica RAP, "um
ambiente cultural".
Espera aí, mas o sketch em
causa não é uma crítica a esses termos, contribuindo para a
censura social e cultural do seu uso? É o seu autor, aliás
justamente conhecido pelo ativismo na luta contra as discriminações,
que agora se queixa de que referir assim pessoas pode ser malvisto?
e estão confusos vão ficar
mais. Porque os ambientes culturais não impedem de fazer coisas;
podem é levar a pensar duas vezes. Ora RAP não acha que um sketch
assim já não faz sentido; teme as consequências de más
interpretações - ou seja, tem medo. De quê? Das redes sociais que,
diz, "ladram". E então? Não é ele a declarar que "o
mundo em que gostava de viver é aquele em que se as pessoas se
sentem ofendidas por uma declaração podem ofender o autor desta"?
É, mas: "Grupos de pessoas, umas organizadas e outras fruto da
dinâmica das redes sociais, conseguem resultados inadmissíveis.
Tenho assistido a coisas, felizmente mais no estrangeiro, que levam
gente a perder o emprego." OK: RAP teme que deixem de lhe dar
trabalho. É compreensível. Mas este é o homem que repete "as
palavras não são atos". Dizer que alguém devia ser despedido
não é despedi-lo, certo? "São só palavras." Ou afinal
as palavras são ações e têm consequências, e RAP só vê isso se
a palavra for usada para tentar que alguém perca o trabalho?
Por contraditória e tola que
seja, porém, esta campanha de RAP está a resultar. As redes "latem"
que os humoristas estão a ser perseguidos e que há quem queira
"proibir" - já li "criminalizar"- certas
palavras. Eh pá, urge criar um movimento para a recuperação de
termos tão lindos como "escarumba", "judiaria" e
"ciganagem". Sobretudo num país em que quem ande na rua -
experiência que recomendo a RAP - sabe que expressões
discriminatórias continuam, incluindo nas escolas onde é ídolo, a
ser descomplexadamente utilizadas para "gozar" com pessoas
concretas. Um país onde aquilo que tanto o apavora - o PC
(politicamente correto) - nunca foi sequer entendido, quanto mais
praticado.
Se há, nos países
anglo-saxónicos, episódios estúpidos e preocupantes associados ao
PC? Há. E devem ser denunciados e combatidos. Mas fazer de conta que
se passam cá e acusar de ameaça à liberdade de expressão quem
aqui pugna por um tratamento digno e igualitário, lutando contra
vitimizações seculares simbolizadas em expressões criadas para
ofender e humilhar, como "mariconço", serve exatamente
para quê? Qualquer que seja a intenção, resulta no reforço das
marcas da dominação e do bullying, em fazer "giro" e
"livre" perseguir os perseguidos, massacrar os massacrados.
Obrigadinha, RAP, mas para isso já tínhamos a direita trumpista.
Fonte:dn.pt/opiniao
16 DE DEZEMBRO DE 201600:42
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