Enquanto por cá pelo burgo ficámos a saber que as investigações do “caso Sócrates" vão prosseguir Verão adentro, o que relançou as discussões sempre repetidas sobre a morosidade da justiça, na Europa terminámos uma semana que ficou marcada pelo debate em torno da relação que devemos ter com as minorias muçulmanas. Isso mesmo: as eleições holandesas foram apenas um dos três desenvolvimentos que têm como pano de fundo o lugar das minorias muçulmanas neste nosso Velho Continente. Naturalmente que a centralidade de Geert Wilders, o candidato islamofóbico, na campanha holandesa foi possível porque, como veremos adiante, o tema da integração dessas minorias é há muito um dos que mais divide – e mobiliza – o eleitorado dos Países Baixos. Mas não podemos esquecer nem o aumento de tensão entre vários países europeus e a Turquia, tal como não devemos omitir a sentença do Tribunal de Justiça da União Europeia que considerou que as empresas podem, cumpridas certas condições, impedir que funcionárias suas usem o véu islâmico.
Não vou demorar muito com as eleições holandesas, a que já me referi nos dois últimos Macroscópios, pelo que me fico apenas por algumas referências a textos que, de uma forma geral, tratam de colocar água na fervura do entusiasmo dos que celebraram “a derrota do populismo” por Wilders não ter ficado em primeiro lugar numa Holanda que reconduziu o actual primeiro-ministro, Mark Rutte, mesmo tendo este perdido um quarto dos seus eleitores. Eis algumas referências interessantes:
- A revolta da tolerância, de Rui Ramos, no Observador: “Na Holanda, os “nacionalistas” defendem a igualdade das mulheres e dos homossexuais, a liberdade de expressão e a democracia. Wilders dirige uma espécie de revolta da tolerância. Porquê? Porque lhe é possível pintar a Holanda iluminista e progressiva sob a ameaça de uma imigração que rejeita a história e os valores holandeses.” Mais: “As elites instaladas (…), muito ingenuamente, ainda encaram a imigração com uma velha arrogância colonial. Uns esperam que as comunidades muçulmanas na Europa renunciem a identidades e projectos próprios, para se diluírem em novas pátrias ou num multiculturalismo secularista. Outros, na esquerda radical, acreditam que são a “classe operária” que lhes tem faltado para a “luta de classes”.
- Não abram já o champanhe, de Teresa de Sousa, no Público: “O primeiro-ministro holandês não hesitou em copiar alguns slogans “wilderianos”, do género “Quem não está bem que se vá embora”, sem qualquer preocupação de moderar a linguagem. Geriu com mão pesada a crise com a Turquia, fazendo frente a Erdogan, no que foi apoiado por 86% dos eleitores. Algumas análises dizem que este episódio ajudou a aumentar a sua vantagem sobre Wilders.”
- Quartos de Final na Holanda: por pouco mais que uma unha negra, de Diana Soller, no Observador: “Wilders não iria formar governo. A eleição é parlamentar, e as outras (várias) formações partidárias que terão acento parlamentar já declararam recusar coligar-se com o PPV. Mas deixa uma marca indelével nestas eleições. São aquelas em que o populismo (minoritário) sufocou a democracia (maioritária) no discurso dos principais candidatos. O populismo controlou a campanha e as análises políticas sobre as eleições.”
- O populismo perdeu? Não. Está é a ganhar, de Martim Silva, no Expresso (paywall): “O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, declara-se otimista. [A sua afirmação] parece no entanto ser um mero wishfull thinking com muito difícil adesão à realidade. Ao contrário do que o seu otimismo militante afirma, as eleições de ontem na Holanda não foram o travar da maré do populismo xenófobo. Pelo contrário, a maré subiu, e quando antes nos chegava aos calcanhares agora já nos molha os joelhos.”
- A Holanda foi o Waterloo do populismo? Cuidado com as generalizações, o sempre interessante Conversas à Quinta do Observador, onde esta semana Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto consideraram que é cedo para falar de refluxo do populismo. Até porque não só nenhum outro país europeu é como a Holanda, como já ninguém tira os temas Wilders do centro do debate político (podcast aqui)
- What Did the Dutch Election Really Prove?, de Adam Chandler na The Atlantic: “As France, Germany, and Italy go to the polls in the coming months, with far-right populist factions threatening to surge, it’s tempting to see grand connecting narratives between what has happened in the United States, Britain, and now the Netherlands as some kind of guide to future results. But the truth is that the differences may outstrip the similarities.”
Depois deste pequeno apanhado, deixem-me passar para um outro texto, o editorial do Wall Street Journal – The Dutch speak – But they offer little comfort for elites in Paris, Berlin or Brussels – que recorda a frase marcante do primeiro-ministro reeleito que escolhi como título deste Macroscópio (“Quem não está bem que se vá embora”), uma frase dirigida aos imigrantes que resistem à integração, e que está longe de representar um “consenso holandês”, estando até porventura muito mais próximo do defendido por Wilders do que das plataformas eleitorais dos partidos com quem terá de formar uma nova coligação. Interroga-se por isso, com pertinência, aquele jornal: “Mr. Rutte’s ability to put substance behind his “behave normally or go home” rhetoric will depend on whether his coalition partners are willing to support a meaningful assimilation agenda. One recent controversy involves the question of whether jobs should be denied to bus drivers who won’t shake hands with women for religious reasons. Will Mr. Rutte’s left-leaning coalition partners risk their political support among Muslim voters to enforce such an edict?”
No mesmo Wall Street Journal há mesmo um outro artigo verdadeiramente surpreendente, sendo que a surpresa começa no seu título provocador: Europe Is Voting Wrong. Nele Joseph C. Sternberg não critica as escolhas dos eleitores holandeses, nas a forma como foram obrigados a escolher entre 28 partidos diferentes acabando pore leger 13 deles para um parlamento hiperfragmentado. Na sua opinião isso coloca não só problemas de ingovernabilidade, como acaba por impor soluções políticas que nunca são clarificadoras: “How can any Dutch voter think her vote can affect policies on these matters when she’s governed by someone who barely won one-fifth of parliamentary seats, in cahoots with a clutch of other losing parties betraying the principles they sold to their supporters? It’s a new lesson in how proportional representation is kneecapping Europe.”
(Não deixa de ser curioso ler esta análise e recordar que uma crítica muito semelhante aos sistemas eleitorais proporcionais foi realizada em Lisboa, há quase 30 anos, mais exactamente em Outubro de 1988, por Karl Popper na Conferência que deu na Gulbenkian integrada no ciclo “Balanço do Século” promovidas pelo então Presidente Mário Soares. Essa conferência pode ser lida aqui, págs. 49 a 67)
Mas se esta é uma reflexão sobre sistemas politicos que conduzem a amálgamas que tornam difícil aos eleitores escolherem entre políticas contrastantes, a verdade é que isso acabou por acontecer na Holanda muito por efeito do impacto das propostas de Geert Wilders. Ora estas têm como base o mal-estar indisfarçável que a existência de comunidades imigrantes com culturas que entram em choque com a tradição holandesa inevitavelmente gera (como sublinhou Rui Ramos no texto que referi atrás). Por isso é altura de passar a outro tema desta semana, a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia segundo a qual empresas podem proibir uso de véu islâmico. Houve (no Público) quem defendesse que, depois desta decisão, o que falta “é o fecho das mesquitas, a proibição do credo e a expulsão dos muçulmanos”. Curiosamente, noutras paragens, são muçulmanas que saiem em defesa desta deliberação. As a Muslim, I strongly support the right to ban the veil, escreveu Qanta Ahmed na Spectator, acrescentando que, “At last, the European Court of Justice has made a stand for European values”. Mas não se ficou por aqui: num texto em que discute os textos corânicos contesta mesmo a ideia de que as muçulmanas sejam obrigadas a cobrir o cabelo por razões religiosas: “Not until recent years has the idea taken root that Muslim women are obliged by their faith to wear a veil. It’s a sign, I think, not of assertive Islam, but of what happens when Islamists are tolerated by a western culture that’s absurdly anxious to avoid offence. This strange, unwitting collaboration between liberals and extremists has been going on for years. But at last there are signs that it is ending.”
Este tema merecerá mais debate, até porque a proibição do véu em certos espaços começa a ser norma em vários países europeus, mas por hoje vamos terminar indo até à interferência que a Turquia de Erdogan teve nas eleições holandesas, olhando não para a Holanda mas para o que se está a passar na Turquia, onde estes incidentes foram explorados pelo regime para reforçar a sua campanha para o referendo que visa reforçar os poderes do Presidente, algo que Rose Asani explica bem na mesma Spectator, em How Erdogan used the Dutch as political pawn: “Now the polls show support for constitutional change is increasing and it’s unlikely that Turkey will resist the desires of its president. But power in the hands of one person, unchecked, is a slippery slope. It may be granted in a democratic way, but already we can see freedom of speech being eradicated at every level in Turkey.”
A aparentemente irreversível deriva autoritária da Turquia é mesmo o tema dos dois textos com que fecho o Macroscópio de hoje:
- Is Turkey Still a Democracy?, de David Kenner na Foreign Policy: “The constitutional amendments would concentrate executive power in the hands of the president, a position that until now has been largely ceremonial. The amendments would give him the power to appoint and fire ministers, as well as design state budgets. The president would be able to serve two five-year terms and, unlike now, continue to serve as the head of a political party. With the changes going into effect in 2019, this would potentially allow Erdogan to stay in power until 2029.”
- Is Turkey Lost to the West?, um texto de Patrick J. Buchanan na The American Conservative: “The upshot of all this: Turkey, a powerful and reliable ally of the U.S. through the Cold War, appears to be coming unmoored from Europe and the West, and is becoming increasingly sectarian, autocratic and nationalistic. While anti-immigrant and anti-EU parties across Europe may not take power anywhere in 2017, theirs is now a permanent and growing presence, leeching away support from centrist parties left and right. With Russia’s deepening ties to populist and nationalist parties across Europe, from Paris to Istanbul, Vlad is back in the game.”
E por hoje é tudo – assim como por esta semana. O teste holandês foi o que foi, a Europa não ficou muito diferente nem desapareceram os seus dilemas. Mas agora é tempo de descansar e, se possível, dedicar algum tempo à leitura e à compreensão destas complexas realidades. Até para a semana.
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