sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Macroscópio – Jerusalém ainda não está a arder

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Os acontecimentos estão a desenvolver-se como se previa. Primeiro, Donald Trump reconheceu Jerusalém como sendo a capital de Israel. Depois, os israelitas festejaram enquanto o resto do mundo condenava o Presdidente dos Estados Unidos, com as chancelarias a fazerem as declarações que se esperavam, os jornais a escreverem editoriais de condenação, algumas capitais do mundo muçulmano a serem mais veementes, os extremistas a acrescentarem ameaças de mais violência e o Conselho de Segurança das Nações Unidas a proceder a mais uma reunião “de urgência”. Previu-se o apocalipse mas este, por enquanto, ainda não aconteceu. Será que vai acontecer? Lendo com mais atenção os analistas fica-se com dúvidas. É por isso mesmo que neste Macroscópio daremos mais espaço a esses analistas do que ao coro dos editorialistas, mesmo sem deixar de os citar e de notar as nuances.
 
Comecemos, primeiro, por tentar perceber o significado de Jerusalém e do gesto de Donald Trump, recorrendo para isso a um Explicador do Observador, Jerusalém capital de Israel. O gesto de Trump é simbólico ou um barril de pólvora?, escrito por João de Almeida Dias. Nele procura-se esclarecer os leitores sobre oito questões, a saber:
  1. Porque é que Trump escolheu reconhecer Jerusalém como capital de Israel?
  2. Qual é o significado religioso de Jerusalém?
  3. De que forma tem a cidade de Jerusalém sido alvo de disputa entre Israel e os seus adversários?
  4. Mas qual é a diferença agora? Os EUA não apoiaram sempre Israel, de qualquer das maneiras?
  5. Que outros países reconhecem Jerusalém como capital de Israel? E porque é que não há mais?
  6. Quais têm sido as reações internacionais à decisão de Donald Trump?
  7. Como é que a medida de Donald Trump foi recebida em Israel?
  8. E o que é que Donald Trump tem a ganhar com isto?
 
(Para uma visão mais global dos problemas que cruzam a região os leitores podem sempre consultar um outro explicador do Observador, escrito por mim no Verão de 2014, tinha este jornal poucas semanas, e no qual se trata de expor O essencial para entender o conflito israelo-palestiniano. São 28 perguntas e 28 explicações que, no essencial, mantêm a sua actualidade, pois trata-se sobretudo de uma revisitação à história do Médio Oriente moderno.)
 
Deste explicador de hoje destaco as referências ao discurso de Donald Trump, já que o seu acto foi acompanhado por palavras que não devem ser ignoradas: “Não podemos resolver os nossos problemas mantendo as mesmas ideias falhadas e repetindo as mesmas estratégias do passado”, disse. “Desafios antigos exigem novas abordagens.” Referindo que “Israel é uma nação soberana com o direito que assiste a qualquer outra de determinar qual é a sua capital”, Donald Trump acrescentou que “reconhecer este facto é uma condição necessária para chegar à paz”.
 
O discurso na íntegra pode ser lido aqui, destacando eu dele mais duas passagens:
  • “We are not taking a position on any final status issues, including the specific boundaries of the Israeli sovereignty in Jerusalem, or the resolution of contested borders. Those questions are up to the parties involved.”
  • “The United States would support a two-state solution if agreed to by both sides.”

 
O sentido exacto destas palavras tem vindo a ser discutido na imprensa israelita, com as opiniões a dividirem-se entre os que acham que Trump não comprometeu o processo de paz e aqueles que receiam mais confrontos. No Times of Israel, por exemplo, David Horovitz defendeu que While endorsing Israeli Jerusalem, Trump doesn’t rule out any of Abbas’s demands, uma vez que “the President's declaration does not negate Palestinian claims in holy city”. Talvez por isso mesmo, Ron Kampeas defendeu no mesmo jornal que Trump’s announcement: A big deal that may not actually change much: “The president spoke loud and clear — except when he didn’t. Here are a few things he said and didn’t say.” A tese é que o discurso da Casa Branca não resolve de vez a questão de Jerusalém a favor de Israel, pelo que a divisão e o estatuto da cidade que tanto israelitas como palestianos reivindicam para sua capital continuará a ser objecto de negociação, porventura acabando com os dois estados a conseguirem esse desiderato (já regressarei mais adiante a este tema).
 
No Haaretz, o mais importante jornal da esquerda israelita, algumas leituras não eram muito diferentes: Trump Hasn’t Killed the Peace Process, He Just Pronounced It Dead, escreveu Zvi Bar'el, num texto de cunho bastante realista: “U.S. recognition of Jerusalem has shattered the illusion that if only the core issues could be resolved, the Israeli-Palestinian conflict would come to an end”. Mesmo assim trata-se de um gesto que implica enormes riscos, como notava no mesmo jornal Amos Harel em Jerusalem Recognition Could Spark Widespread Arab Unrest – This Time, With No End in Sight. Para ele, uma vez que os palestinianos nada podem fazer para obrigar Trump a recuar na sua sua decisão, “This is a kind of “open crisis” with no objective or clear end point. Its fueling will depend mainly on the level of rage on the streets, which in turn will depend on the number of casualties. The Israeli army has long known that funerals in the occupied territories usually lead to more funerals. If demonstrations and attempted terror attacks end with many Palestinians dead, the area will catch fire and it will be harder to douse the flames.”
 
Já na imprensa americana as opiniões eram mais divididas, com tomadas de posição a favor e contra Trump. Um exemplo a favor, o do editorial do Wall Street Journal, The Reality of Jerusalem: “President Trump honored a campaign pledge on Wednesday when he recognized Jerusalem as the capital of Israel. The decision is hardly the radical policy departure that critics claim, and Mr. Trump accompanied it with an embrace of the two-state solution for Palestine that Presidents of both parties have long supported.” E um exemplo contra, o do editorial do Washington Post, Trump’s Jerusalem move is a big risk: “Presidents Bill Clinton, George W. Bush and Barack Obama had good reasons for holding back on such a move, even though they, like Mr. Trump, had promised while on the campaign trail to move the U.S. Embassy to Jerusalem. They calculated that what amounted to a mostly symbolic step could undermine U.S. policy across the Middle East as well as their hopes of brokering an Israeli-Palestinian settlement — and possibly trigger violence, including against Americans.”
 

Do New York Times respigo duas análises de dois profundos conhecedores da região. Steven Simon, que director para o Médio Oriente e o Norte de África no National Security Council entre 2011 to 2012 a questão que coloca é se Can Trump Bring Peace to the Middle East? Ele defende que é pouco provável, e que isso até tem pouco a ver com “Mr. Trump’s unfocused volatility”: “The larger point is that successive peace process efforts have failed not because of avoidable misunderstandings, inept negotiating tactics, diplomatic blunders or bad luck. They have failed because neither side wants an agreement on anything like the other side’s terms.”
 
Já Thomas L. Friedman, autor de um dos livros mais consultados sobre a região, From Beirut to Jerusalem, foi bastante mais crítico em Trump, Israel and the Art of the Giveaway. A sua tese é que o Presidente desperdiçou um trunfo negocial, um instrumento que tinha na mão e lhe permitia pressionar Israel: “Trump could have said two things to Israeli Prime Minister Benjamin Netanyahu. First, he could have said: “Bibi, you keep asking me to declare Jerusalem as Israel’s capital. O.K., I will do that. But I want a deal. Here’s what I want from you in return: You will declare an end to all Israeli settlement building in the West Bank, outside of the existing settlement bloc that everyone expects to be part of Israel in any two-state solution.”
 
Entre os editoriais críticos destaque ainda para o da influente The Economist, The recognition of Jerusalem as Israel’s capital is reckless. É nele que se defende a ideia, já referida atrás, de que Jerusalém podia ser a capital dos dois estados, argumentando-se que Trump, “If he must shake things up, he should open two embassies in the holy city, not one”. Seria, sem dúvida, um golpe audacioso e surpreendente, defendendo a revista que este gesto, em contrapartida, tem até pouco significado e foi realizado a pensar mais no eleitorade de Trump do que no processo de paz: “In practice the United States, like most other countries, already treats Jerusalem as Israel’s capital. Its diplomats and politicians—including presidents—routinely meet Israeli ministers in Jerusalem. Yet if recognition makes little practical difference, why did Mr Trump bother? The answer has nothing to do with American policy in the Middle East and everything to do with domestic politics.”
 
Para um registo mais alargado do que se escreveu nos editoriais de todo o mundo recorro ao Le Monde, jornal que também foi muito duro em Donald Trump, seul contre tous, um editorial onde se escreve que, “En décidant de reconnaître officiellement Jérusalem comme capitale d’Israël, le président américain transgresse les règles de la diplomatie, piétine les accords passés et s’isole un peu plus”. A sua notícia La presse condamne l’annonce de Trump sur Jérusalem, qui « rompt l’équilibre international » et « ébranle le Proche-Orient » dá o tom da maioria das reacções – “« Trump rompt l’équilibre international », pour El Pais, en Espagne ; « Trump isolé sur Jérusalem », pour le Corriere della Sera, en Italie ; « Donald Trump ébranle le Proche-Orient », pour Le Soir, en Belgique ; « Explosion de colère après que Trump a déclaré Jérusalem capitale d’Israël », pour Le Guardian, au Royaume-Uni…” – mas mesmo assim inclui referências a juízos não tão negativos.
 
É que estes existem, e não apenas em Israel. Como já vimos, muitas análises são menos apocalípticas que as tomadas de posição editoriais, ou mesmo que as declarações dos líderes europeus ou árabes, mas há também quem defenda a decisão de Trump e enquadra a reacção mais virulenta numa espécie de reflexo condicionada que funciona sempre contra Israel. Dois exemplos, um da britânica Spectator, outro aqui no Observador:
  • Donald Trump is right: Jerusalem is the capital of Israel, onde Stephen Daisley escreve que “The international community is obsessively ignorant about the Jewish state, checking in occasionally to lecture an embattled liberal outpost on the proper etiquette for preventing its children from being blown up. This engenders a reflexive idiocy that treats absurd banalities as wise statecraft. Those who insisted for years that the peace process was dead now say that Trump has killed it. Those who asserted that US foreign policy was controlled by the Israel lobby now lament the surrender of America’s neutrality. Those who championed recognition of Palestine without negotiations are suddenly sceptical about unilateralism.”
  • Jerusalém, um texto em que Paulo Tunhas cita longamente o livro que escreveu em conjunto com Fernando Gil aquando da guerra do Iraque, Impasses, algo que justifica desta forma: “Citei esta longa passagem – escrita, repito, em 2003 – porque o que vem aí vai ser mais do mesmo. Não é que Israel não seja continuamente demonizada. É-o, de facto, sem interrupção. (...) Mas a intensidade aumentará por estes dias. Entre outros por aqueles que, em nome de “negociações de paz” que se perpetuam de modo puramente fantasmático, desejam a todo o custo manter uma ficção que lhes é conveniente: a da possibilidade de um acordo entre quem quer continuar a existir e aqueles que apenas desejam a destruição. O que Trump fez tem pelo menos um mérito: introduzir um novo princípio num estado de coisas onde nenhuma solução verdadeiramente era possível. Pelo menos, com Jerusalém como capital de Israel, as coisas ficam mais claras.”


A fechar uma curiosidade que é também uma extraordinária coincidência: a decisão de Trump foi tomado no exacto dia em que passavam 100 anos sobre a entrada em Jerusalém (a 6 de Dezembro de 1917) das tropas britânicas comandadas pelo General Allenby no quadro da campanha contra o Império Otomano na I Guerra Mundial. É uma efeméride por estes dias recordada em Israel com uma exposição e que o Haaretz também evoca num interessante texto, excelente leitura de fim-de-semana,Liberation or Occupation: Reliving Britain’s Dramatic Conquest of Jerusalem 100 Years Ago. É que, como aí escreve Moshe Gilad, “For more than 2,500 years, officers had marched through the city to “liberate” it, always liberating it until the next conqueror arrived. So it was with the Babyloninan Nebuzaradan, Rome’s Titus, the Muslim Omar Ibn al-Khattab and the Crusader kings in the 11th century. So it was with the Mamluks and so it was as well for Sultan Selim I, who took Jerusalem without a battle, liberating it for the Ottoman Empire.
 
E por esta semana é tudo. Jerusalém, como referi, ainda não está a arder, mas amanhã, sexta-feira, o dia santo dos muçulmanos, é tempo de alto risco. Nós, por cá, celebraremos um feriado e gozaremos mais um generoso fim-de-semana prolongado. Tenham bom descanso, boas leituras e, já agora e com algum atrevimento, sensatez nas compras próprias desta temporada. 

 
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