Para alguns as eleições brasileiras deste domingo resumem-se a uma escolha dicotómica entre democracia e ditadura. Algumas reportagens das televisões portuguesas não têm andado muito longe de nos procurar transmitir esse retrato. Com mais pudor ou menos pudor, o jornalismo português assumiu a narrativa da candidatura do PT, passou a descrever Jair Bolsonaro como um fascista – antes era apenas um populista ou de extrema-direita – e a democracia passou a ser a questão essencial da eleição de domingo. É certo que extraordinária polarização da eleição brasileira coloca difíceis desafios ao sistema constitucional brasileiro, mas a leitura da imprensa internacional – e de alguma portuguesa – não sustenta o tremendismo de alguns relatos apaixonados.
Há sensivelmente um mês, como já demos conta em anterior edição do Macroscópio, a influente The Economist considerou o favorito na eleição deste domingo tudo menos alguém recomendável, num editorial intitulado Jair Bolsonaro, Latin America’s latest menace. Agora, na véspera da decisiva segunda volta, regressou ao tema para, em Containing Jair Bolsonaro, defender a ideia de que a democracia brasileira já deu sinais de solidez e possui mecanismos capazes de suster os instintos mais radicais do candidato. Por exemplo: “He wants the police to have “carte blanche” to kill. But the main police forces are under the authority of the 27 states. Their governors must reject his trigger-happy philosophy. Congress can stop him from carrying out his threat to stuff the supreme court with pliant judges.” Por outro lado, “Not all Mr Bolsonaro’s ideas are bad. He has shown more interest than the pt in solving Brazil’s main economic problems (see article). If he is serious about reforming the costly pension system, which threatens Brazil’s financial stability, and eliminating useless rules, congress should co-operate. (Though that is a big “if”.)” O essencial, neste quadro, é que o “Brazil needs an opposition that defends democratic norms and an army determined to remain scrupulously apolitical.”
Eu próprio defendi no Observador uma posição semelhante, num texto onde defendo a neutralidade de Fernando Henrique Cardoso, que sendo indiscutivelmente um homem de esquerda não cedeu às pressões do PT para apoiar o seu candidato nesta segunda volta. Em Porque Fernando Henrique Cardoso tem razão explico quais os motivos que me levariam a votar em branco se fosse brasileiro, não alinhando com o coro nacional que exige que todos votem em Haddad (um coro com pouca repercussão na comunidade portuguesa no Brasil, 90% da qual parece ir votar em Bolsonaro). Para além de explicar que o PT de 2018 não é o PT de 2003, e que o seu programa é no mínimo tão descaradamente anti-democrático como o de Bolsonaro (em Portugal ninguém o terá lido), também defendo que a democracia no Brasil tem condições para sobreviver, ganhe quem ganhar: “Apesar de a democracia brasileira ser relativamente jovem, já deu boas provas, e apesar de o Brasil ter um sistema de governo presidencialista, o poder do Presidente é limitado por um Congresso onde Bolsonaro não terá a maioria e por o país ser um Estado federal onde muitas das competências pertencem aos governos e às legislaturas estaduais. Como a revista [The Economist] recorda, apesar de tudo no Brasil o Congresso já destituiu dois presidentes (Collor de Mello e Dilma Rousseff) e a Justiça já prendeu um terceiro (Lula da Silva). Quanto à imprensa brasileira, ao contrário do que sucede em muitos países, é forte e tem publicado notícias e investigações ao longo da campanha que incomodaram ambos os candidatos. Ainda bem e assim continue. Também já não estamos no tempo da Guerra Fria e, se todos nos lembramos dos anos do regime militar, a verdade é que o exército brasileiro não tem as tradições golpistas de outros exércitos sul-americanos: o seu registo é de três golpes em dois séculos de história. Ou seja, se virmos bem, comparativamente os militares brasileiros portaram-se até melhor do que os portugueses neste mesmo intervalo de tempo.”
Carlos Ayres Britto, que foi presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil também defendeu, em entrevista ao Estado de São Paulo, a mesma ideia 'Temos o sol a pino da democracia’, sustentando que o regime democrático no país está sendo ‘desafiado’, mas resiste: “O quadro pelo acirramento é sombrio, mas não chega a ser trenebroso, porque temos o sol a pino da democracia, que há de prevalecer antes, durante e depois do processo eleitoral”. À pergunta directa sobre se “a democracia está em risco?”, o juiz concretizou: “Acho que a democracia está sendo desafiada, mas que não há céu tempestuoso que resista a ela. Ela não vence por nocaute, mas com toda certeza vence por pontos. Desde que bata mais na velha ordem, velha mentalidade, do que apanhe. É o que está acontecendo. Essa chuva ácida vai passar com toda a certeza.”
De facto, como Cátio Bruno explicava num especial do Observador, Não basta ganhar no domingo. Futuro Presidente do Brasil vai ter de negociar muito para conseguir governar. Tudo porque das eleições já resultou um Congresso hiper-fragmentado que obrigará o novo Presidente a ceder muito para poder levar por diante o seu programa. Em concreto, e como explicou um professor de ciência política, Carlos Pereira, “A fragmentação partidária é um complicador para a governabilidade, mas não é um impedimento. É mais importante gerir bem a coligação que se forma e, para isso, o Presidente tem de fazer boas escolhas: que partidos integram a coligação, o grau de coincidência ideológica desses parceiros, a partilha de poder e de recursos do Presidente para com esses partidos e se essa coligação representa ou não a média [do pensamento] do Congresso.” Mais: “Para Bolsonaro, haveria maioria suficiente para formar um Governo de coligação com outros partidos para lá do PSL. O problema? “Bolsonaro tem dito que não vai governar em coligação, mesmo tendo as condições ideais para isso. Ele diz que vai ter um Governo de notáveis, de pessoas e não de partidos, e que vai tentar aliciar o Congresso para apoiar a sua legislatura. Só que esta estratégia tem vantagens no curto prazo, mas no longo prazo gera animosidades”, prevê o professor de Instituições Políticas.”
Deixando o Congresso e passando ao tema das Forças Armadas – na América Latina há sempre o fantasma dos golpes militares – mesmo num longo artigo do Financial Times onde se optou por expressar no título as inquietações dos adversários do homem que lidera as sondagens – Opponents fear ‘wrecking ball’ Bolsonaro poses threat to Brazilian democracy – acaba-se por admitir que as Forças Armadas até podem ter um factor de estabilidade: “The role of the military in Mr Bolsonaro’s campaign has also unnerved some. He is set to appoint several generals to ministries and his running mate, General Antônio Hamilton Mourão, is also retired from the army. But while the military is taking more of an interest in politics than previously, most analysts see it playing a “supporting” role to provide management expertise to a Bolsonaro presidency rather than intervening more directly in politics. The model would be that of Mr Trump, who has used generals in his administration. “I suspect the military itself will be the first to push back on attempts to use them in ways that go beyond their constitutional authority because it ultimately threatens them legally and institutionally,” says Evan Ellis, professor of Latin American studies at the US Army War College.”
Finalmente resta saber que tipo de presidente será Bolsonaro. Uma hipótese é que, até pela necessidade de ter uma maioria no Congresso, seja obrigado a ser mais moderado, como aconteceu com Lula em 2003. É isso que deseja Patricio Navia no site Global Americans, especializado em temas latino-americanos, num texto onde defende que Bolsonaro should follow Lula’s 2003 example: “Here is where Bolsonaro should learn a lesson from his political nemesis. After the election, Bolsonaro should quickly move to the center and signal pragmatism and consensus-building reasonable reforms. He should certainly cater to his constituency by adopting tough positions on law and order, but he should remember that people want results rather than confrontation or divisiveness. By implementing reasonable and much needed market-friendly pension and labor reforms, reigning in government spending and unleashing market-forces, Bolsonaro can put to rest concerns over his authoritarian past and intolerant views and instead become the kind of moderate, reasonable and unifying leader that Brazil needs today. Some might think this is wishful thinking, but 16 years ago, another recently elected Brazilian president, Lula, quickly put concerns over his populist past to rest and became a positive leader who helped make Brazil a better country.”
Mesmo assim, para não iludir a realidade, temos de ter presente que o grau de polarização no Brasil é enorme e que entre os apoiantes de Bolsonaro há quem não deseja apenas a sua eleição, queira também um regime forte, quando não uma ditadura. Não é um fenómeno único nem exclusivo do Brasil ou confinado à direita, pois no México surgiu associado a um candidato de esquerda, como nos escplicou no El Pais Moisés Naim, num texto em que compara a situação nos dois países, Mexico’s AMLO and Brazil’s Bolsonaro: very different... and very similar – “Two rising Latin American leaders have figured out voters are hungry for messiah figures, not lectures about the institutions that limit presidential power”. É esta a sua tese: “This worldwide onslaught on the checks and balances that limit executive power benefits greatly from the deep disappointment that voters have with democracy. More than half of Brazilians say they would accept an undemocratic government if it “solves problems.” The same sentiments have become common in Mexico. Brazil and Mexico have fallen in love with a very dangerous political narrative. It’s the story of the proverbial strong man: a fresh and uncompromised figure willing to fight corruption, defend “the people” and give hope to an entire society traumatized by terrible levels of graft and violence. Promises of salvation garner more votes than talk of institutions that keep presidential power in check and protect citizens. It’s a lesson Bolso and AMLO have learned all too well.”
A fechar, e para ajudar a completar este argumento, recomendo também a leitura de A alternativa, de Jaime Nogueira Pinto no Observador, onde ele nos fala um pouco mais sobre o tipo de políticas que suscitam reações de tipo novo, como aquelas a que estamos a assistir: “O fenómeno Bolsonaro não é só mas é também a rejeição de um mecanismo de poder e corrupção montado pelo PT em mais de uma década de governo, sob uma retórica generosa e igualitária. É também um “basta” das classes médias e populares, ameaçadas na sua segurança e exploradas pelo Partido dos explorados que se transformam em exploradores. Há uma mudança de paradigma. Desta vez não é a ameaça da revolução e da ditadura comunista, mas são os efeitos perversos da globalização; é o descontrolo das migrações culturalmente diversas; é o terrorismo; é a imposição da contracultura agressiva das minorias. Contra estas coisas, as nações, as sociedades, as famílias, revoltam-se e defendem-se. Com soluções às vezes de excepção e que podem pôr em questão os fundamentos ideológicos e institucionais vigentes. Mas é precisamente o fracasso do que está, a incapacidade do modelo político de responder ao presente, que leva o povo a buscar alternativas onde as há.”
A partir de domingo à noite começaremos a ter respostas para os vários debates que cruzam estes argumentos. Tenham um bom resto de fim-de-semana.
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