O Brasil vai a votos este domingo e o seu destino parece traçado, uma vez que o extremar dos campos políticos abriu caminho a duas formas diferentes de populismo, uma protagonizada por Jair Bolsonaro, por vezes (mal) apresentado como uma espécie de Trump brasileiro, a outra encarnada por Hernand Hadad, candidato por procuração em vez de Lula da Silva, preso por corrupção. A situação merece que lhe dediquemos esta semana dois Macroscópios, sendo este o primeiro, pois não é fácil perceber como se chegou a este ponto.
Uma primeira introdução a este drama político pode ser feita seguindo pela mão de José Augusto Filho, um jornalista brasileiro que está a fazer o seu doutoramento em Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica (tema: os desafios do multilateralismo liberal no presente contexto de transformação da ordem mundial). No Observador ele já publicou uma série de três textos onde foi dando conta do seu crescente desespero. O primeiro, editado ainda em Agosto, Brasil marcha trôpego rumo às urnas, ainda reflectia sobre uma realidade cheia de incertezas (Lula ainda não se retirara da corrida presidencial, por exemplo), mas já se constatava que “A fratura criada pelo petista, responsável pela divisão da sociedade brasileira em dois polos antagônicos (os contra e os a favor de Lula da Silva), fragiliza ainda mais as instituições do país.”
Em Setembro, num segundo texto muito marcado pela tragédia do incêndio que destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, Não verás país nenhum, já não tinha dúvidas – já não tinhas as dúvidas que eu próprio eliminei na abertura desta newsletter: “Em meio a tantas incertezas do jogo eleitoral brasileiro, um fato é certo: com a vitória ou derrota do petismo, o Brasil abraçará o populismo. Se o petismo se sagrar vitorioso, Lula da Silva, (...) será indultada para assumir um cargo central na presidência. Como pai dos pobres, acenará aos mais carentes, enquanto governa para os ricos. Assim, Lula e seus sequazes perderão a última camada de pudor capaz de conter as mais vorazes ambições de seu partido marxista-leninista de governar acima das instituições. Caso eleito, Bolsonaro precisará de muita habilidade para negociar as reformas de que o país necessita, num Congresso onde sobressai o fisiologismo. A julgar pelo histórico do candidato, acostumado a fazer política com o fígado, o choque será inevitável.”
Por fim, já esta semana, José Augusto Filho desenvolve melhor, em A política da miséria e a miséria da política, o que deverá suceder se Hadad vencer, falando-nos da agenda política de um PT que, depois da prisão de Lula e da adopção de uma nova retórica, nunca será o PT moderado que chegou ao poder em 2003, antes de terminan desalentado: “O colapso do centro político, forças teoricamente comprometidas com soluções conciliatórias, faz do futuro imediato um lugar pouco seguro para se depositar a esperança de o Brasil reencontrar a promessa de país do futuro. (...) A política doméstica é algo próximo da tragédia e o contexto internacional está muito mais hostil. Sobre esta sina, Roberto Campos escreveu: “o Brasil não perde oportunidade de perder oportunidades”.
No mesmo dia em que este texto era publicado em Lisboa o editorial de O Estado de São Paulo reflectia a mesma preocupação. Significativamente intitulado O dia seguinte, nele escrevia-se que, se “A polarização é própria da política eleitoral, porém, passada a eleição, deve prevalecer um espírito de boa vontade para que as dissensões não deem início a outra crise, esta de consequências imprevisíveis”. Contudo, “A julgar pelos resultados das pesquisas de intenção de voto, observa-se que, de fato, diante dos nomes sob escrutínio, os candidatos que compõem o chamado centro político – não o “centrão”, mas uma zona onde o compromisso é a saída natural dos dissídios – têm sido preteridos por candidatos que representam valores e ideias que, até recentemente, eram pouco aceitos pela maioria dos eleitores. Viceja o discurso sectário, a negação do diálogo para a construção de um compromisso nacional em torno das medidas a serem adotadas para tirar o Brasil da atual crise política, econômica e moral.”
Neste extremar de retóricas (mais do que de propostas) a figura que concentra todas as atenções é Jair Bolsonaro, candidato de um pequeno partido, há muitos anos membro do Congresso, muitas vezes apresentado como uma espécie de Trump brasileiro. Este é, porém, um ponto em que nem todos convergem. Tentemos perceber um pouco melhor quem ele é, começando pelo Dicionário para (não) perceber as eleições no Brasil que João Pereira Coutinho elaborou para a Sábado, onde defende precisamente que, ao contrário de Trump, ele não é um outsiderque veio de fora do sistema para o subverter: “Em rigor, Bolsonaro é um insider com três décadas de vida pública, ainda que habitando o "baixo clero" do Congresso, onde cumpre o seu sétimo mandato como deputado federal. Além disso, os eleitores bolsonaristas não estão entre os pobres e pobremente escolarizados. Estão entre as classes médias e altas, com escolaridade ao mesmo nível.”
Só que, escreve o mesmo João Pereira Coutinho numa outra crónica, Os rapazes do Brasil, também na Sábado, um texto onde procura explicar uma popularidade que ele mesmo testemunhou ao cruzar-se com o candidato num aeroporto, a verdade é que “Se Bolsonaro é o rosto do autoritarismo, a maioria gosta daquele rosto. Dentro do aeroporto e fora dele”. Ao falar das razões, é muito duro e directo: “Jair Bolsonaro é a expressão do esgotamento político e partidário brasileiro. Mas é também um caso clássico de "rebelião das massas", dispostas a chamar a caserna para punir a corrupção endémica do país e a violência demencial que provoca mais de 60 mil homicídios por ano. Quem chora agora chora tarde. A juntar a isto, é penoso assistir às entrevistas do candidato. Não apenas por causa dele - uma cabeça tosca, impreparada e perigosa. Por causa dos jornalistas que, cegos de ódio, são incapazes de confrontar Bolsonaro com as suas insuficiências "técnicas", digamos assim. (...) A intelligentsia, que obviamente não aprendeu nada com o fenómeno Trump, continua em circuito fechado, a falar para o umbigo, indiferente à realidade que existe lá fora.”
Mary Anastasia O’Grady, a especialista em América Latina do Wall Street Journal, em Brazil’s Trumpian Candidate, também procura explicar que há bastantes diferenças entre a base eleitoral de Trump (os brancos da classe média baixa em declínio) e a de Bolsonaro, que é mais jovem e educado, e que isso tem sobretudo a ver com a corrupção do PT: “Putting the PT back in power, where it is more than likely to try to bend the judiciary toward its left-wing ideology, is a risk many Brazilians say they aren’t willing to take. Mr. Bolsonaro has support among evangelical Christians and farmers. He does better than Mr. Haddad among middle-income voters and especially well among the college-educated, who fear a return of the corrupt PT. He talks tough on security and wants to restore the presence of the state in places taken over by organized crime. He speaks bluntly against PT land redistribution that has favored special interest groups. His critics call him racist for this, but trampling property rights is no way to raise living standards.”
Felipe Krause e André Borges também defendem que as duas eleições são muito diferentes numa análise no Washington Post – Is Brazil’s presidential front-runner Jair Bolsonaro the Latin American Donald Trump? Nope. – e em boa parte por isso mesmo defendem que terão também um resultado diferente, isto é, que o destino de Bolsonaro será o de Marine Le Pen, não o de Donald Trump. Eis um dos seus argumentos: “Bolsonaro has adopted an aggressively anti-establishment rhetoric that puts into question his willingness to share power with Congress. If he reaches the runoff, Brazil’s pragmatic, office-seeking parties may well prefer to back a candidate who is more eager to strike a bargain.”
Se estes analistas acreditam que, quando chegar o momento decisivo, os partidos tradicionais brasileiros vão acabar por barrar o caminho a Bolsonaro, a The Economist não deixa mesmo assim de ver nele um risco, tendo-lhe já dedicado um editorial intitulado Jair Bolsonaro, Latin America’s latest menace. Aí escrevia-se, por exemplo, que “Mr Bolsonaro might not be able to convert his populism into Pinochet-style dictatorship even if he wanted to. But Brazil’s democracy is still young. Even a flirtation with authoritarianism is worrying. All Brazilian presidents need a coalition in congress to pass legislation. Mr Bolsonaro has few political friends. To govern, he could be driven to degrade politics still further, potentially paving the way for someone still worse.”
Neste ponto convém regressar um pouco atrás e recordar que Bolsonaro não nasceu do nada, afinal já andava pelo Congresso há décadas sem que se desse por ele, pelo que se emergiu agora é porque realmente alguma coisa aconteceu, e o que aconteceu não é separável da forma como os seus adversários fazem política, pelo menos na opinião de Rui Ramos, hoje expressa no Observador em #VocêsTambémNão. Em concreto defende que “Trump e Bolsonaro não são imagináveis sem a desonestidade com que as esquerdas classificam todos os adversários como fascistas, racistas e misóginos, e que acaba por dispor demasiada gente a seguir quem não se deixa intimidar, e só por isso. Ou sem os tabus que as esquerdas usam para impedir qualquer discussão racional sobre inquietações legítimas como a segurança, abrindo assim o caminho a demagogos que, ao contrário dos políticos convencionais, nada têm a perder e portanto não receiam a demonização que espera quem menciona esses temas.”
Eis um ponto que nos introduziria noutros debates, e esperamos poder retomá-los quando regressarmos ao Brasil num outro Macroscópio ainda esta semana. Por hoje ficamos por aqui, que penso já ser bastante.
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