- Péricles Capanema
O mundo vai assistir, logo adiante, entre 6 e 27 de outubro, às sessões do Sínodo para a Pan-amazônia, que terá como tema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. E logo virão seu documento final (cujas linhas gerais, se não a versão última, já estão sendo redigidas enquanto escrevo) e ações consequentes. Tal encontro vem gerando preocupação em meios eclesiásticos, nos quais as mais destacadas manifestações até agora foram as dos cardeais Walter Brandmüller e Gerhard Müller, que qualificaram de herético o documento preparatório, a “Instrumentum Laboris” (instrumento de trabalho), assim como em meios civis, até integrantes do governo brasileiro manifestaram a justo título receio com o rumo do encontro. Tratei a respeito em artigos anteriores, “O non possumus do cardeal alemão”, “Outro cardeal alemão entra na liça” (cfr. periclescapanema.blogspot.com).
Ressalto nesta matéria aspectos de especial interesse da “Instrumentum Laboris”. Texto longo, um pouco à maneira dos “cahiers de doléances” por ocasião da Revolução Francesa, 147 parágrafos, de alto a baixo bafeja a bem dizer todas as causas revolucionárias atuais; à vera o desenrolar das afirmações causa horror do começo ao fim. Dito de outro modo, peça de demolição, autodemolição e desagregação.
Poderia ser um texto do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) ou da CPT (Comissão Pastoral da Terra), ambos órgãos da CNBB, na prática linhas auxiliares do PT. Tais órgãos e tantos outros de orientação semelhante praticam às escâncaras a opção preferencial pela revolução — no fim das contas, em detrimento dos pobres, pois perpetram diuturnamente agressões às esperanças e aos direitos deles, o mais imediato dos quais é o de crescer, ter condições para melhorar de vida — basta ver Cuba e Venezuela, na rota para o paraíso prometido).
Lula, mesmo preso em Curitiba, ganhou o “Prêmio Chico Mendes”, em 15-12-18. [Foto: Ricardo Stuckert] |
Mostro exemplo gritante, a “Instrumentum Laboris” quando fala dos santos e mártires da Igreja Amazônica elenca Chico Mendes [foto preto e branco acima] entre eles. Deste, afirma a Enciclopédia Latino-Americana: “O líder popular Chico Mendes teve a fortuna de encontrar seu grande mestre, Fernando Euclides Távora, militante comunista. Em 1975, já militando nas comunidades de base — as CEBs — fundou o primeiro sindicato de trabalhadores rurais do Acre. [Foi] dirigente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT)”. Um agitador revolucionário, militante petista, entre os vários “santos” e “mártires”, a quem nos apresentam para venerar e como modelo para os católicos. Despencou a essa demagogia desavergonhada o documento da Santa Sé.
Muitas vezes a linguagem é vaga, ambígua, sujeita a interpretações várias. Aqui e ali uma afirmação sensata a fazer contraforte com o tom geral revolucionário. Vale aqui regra de ouro da hermenêutica, exposta por Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira em livro sobre a missa de Paulo VI: “Vamos considerar, em tese, o princípio: as passagens obscuras e malsonantes de um documento não o tornam suspeito quando nele há também textos ortodoxos relativos às mesmas questões. A isso cumpre dar uma primeira resposta, de ordem hermenêutica: A) Em princípio, é verdadeira a regra segundo a qual os textos confusos e obscuros de um documento devem ser interpretados pelos claros. B) Mas a regra exige uma distinção: a) é aplicável quando as passagens suspeitas ou heterodoxas ocorrem apenas uma vez ou outra, à maneira de lapso; b) não vale quando as passagens suspeitas ou heterodoxas são numerosas (pois o que ocorre à maneira de lapso é, por natureza, casual e em pequeno número); nessa hipótese, deve-se recorrer a outras regras e a outros meios de interpretação; c) quando, além de numerosas, as passagens confusas, suspeitas e heterodoxas formam, umas com as outras, um sistema de pensamento, a citada regra de interpretação não vale, mas se aplica a regra oposta: é mister então perguntar se não são os textos ortodoxos que devem ser interpretados à luz dos confusos, suspeitos e heterodoxos. O que ocorre à maneira de lapso não costuma ser frequente, e sobretudo não pode constituir sistema”. Não estamos diante de lapsos, fazemos frente a um sistema de pensamento, que impulsiona um movimento.
Enquanto lia a “Instrumentum Laboris” chocava-me de maneira particular o ataque ao progresso moderno e a glorificação idílica, romântica, descolada da realidade, da vida primitiva e dos parcos recursos indígenas. (“Como recuperar o território amazônico, resgatá-lo da degradação neocolonialista e devolver-lhe seu bem-estar saudável e autêntico?”). Passava-me pela cabeça uma frase que ouvi na infância: o diabo não dá o que promete. Já não está na moda o progresso, a ciência. Agora as mais extremadas correntes revolucionárias empurram de forma ufana para a vida primitiva, para a regressão e o atraso. Para tais correntes, decisivas na elaboração da “Instrumentum Laboris”, como tresanda a naftalina o mote, viçoso nos anos 60, do pontificado de Paulo VI: “o novo nome da paz é desenvolvimento”.
Extratos da “Instrumentum Laboris”, catados aqui e ali do amazônico texto. “O cuidado da vida supõe oposição a uma visão insaciável do crescimento ilimitado, da idolatria do dinheiro. Somos parte da natureza porque somos água, terra e vida. A terra tem sangue e está sangrando, as multinacionais cortaram as veias de nossa Mãe Terra. A selva não é um recurso para explorar, é um ser. [Na Amazônia] tudo é compartilhado, os espaços particulares — típicos da modernidade — são mínimos”. E vai por aí afora.
Só tem um problema. Nada mais impopular para a imensíssima maioria dos índios que desejar mantê-los no primitivismo. Índio quer eletricidade, posto de saúde, escola, estrada. Crescer na vida. O programa revolucionário para os índios, excludente e isolacionista, um elitismo às avessas, esbofeteia seu impulso de inclusão, de melhorar, de ter acesso aos avanços civilizatórios.
Em livro publicado meses atrás, “Brigo pelos homens atrofiados”, um conto, sob o pseudônimo Zeca Patafufo, tratei de tais objetivos — que agora vejo estampados em vários parágrafos da “Instrumentum Laboris” —, bem como de sua impopularidade entre os pobres. No referido conto pontificava o revolucionário Al Zuretta: “O Abu nunca entenderá que caducou a narrativa iluminista. E também está desvalorizada a narrativa modernista”. — Aí, arrematou: — “O Abu inda tem na cabeça, devemos ser construtores; patacoada. A ideologia do progresso contínuo e inelutável é o pior ópio do povo. Demora não e desfaremos as obsessões pela produtividade e empreendedorismo; é retrocesso patente o tal direito ao desenvolvimento. As aspirações e direitos são históricos; nascem, espigam e para um bocado deles, feitos anacrônicos, chega a hora de morrer. Estamos no caso. O revolucionário agora é o decrescimento, a dissociação social contestadora, a reinserção do homem na natureza enquanto parte e não senhor dela. Bandeiras com amanhã: decrescimento, ecologia, igualdade social, diversidade — a nossa, não a deles —, ideologia dos gêneros”. Aí levantou conformes: — “Tem uns poréns: a elas, às bandeiras, sobretudo à do decrescimento, falta magnetismo. As multidões detestam o minguamento, aspiram ao contrário, subir na vida. E ao povo repugnam também as exigências radicais dos naturebas, igualdade social, sexos indiferenciados. É duro mudar mentalidades; enquanto não as mudarmos, nosso programa permanecerá utópico”. Utopia devastadora, prestigiada nos mais regressivos círculos revolucionários, em outubro próximo atroando ufana, se não for denunciada, salas vaticanas. Que São Pedro nos proteja.
ABIM
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