terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Macroscópio – A insegura entrada num novo tempo. Ou porque é tempo de levar Trump a sério

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Donald Trump, Donald Trump, Donald Trump. Três dias depois da tomada de posse talvez o mais acertado que possamos dizer é que o novo Presidente dos Estados Unidos continuou a ser o Donald Trump da campanha eleitoral. O que significa que talvez seja altura de começarmos a acreditar que aquilo que prometeu que ia fazer vai mesmo fazer. Ou pelo menos tentar fazer. Como notou Miguel Monjardino na sua crónica no Expresso de sábado, Nova era atlântica (paywall), a política da sua Administração tenderá a ser determinada pela agenda interna, pois “O capital político do novo Presidente e dos seus principais aliados será usado para manter ou conquistar a confiança da classe média e dos mais desfavorecidos. A comunicação política será dirigida sobretudo para estes dois grupos sociais por uma razão muito simples: o futuro político de Trump e dos republicanos no Congresso dependerá da evolução da economia e da criação de condições para aumentar o emprego a nível industrial até 2018.”
 
Neste quadro de América voltada para dentro o discurso de posse, ao mesmo tempo que assusta a Europa (e com razão), não deixa de ter uma lógica que interessa compreender, até para entender o porquê da utilização de termos tão pouco elegantes como “carnage of the American people” num discurso com a solenidade daquele, pronunciado momentos depois de Trump ter pousado a mão sobre duas Bíblias para jurar a Constituição.
 
Para ajudar a compreender esse discurso, e deixando por agora de lado os comentários mais críticos, que por regra convergiram nos mesmos pontos (critica do populismo, do proteccionismo e do tom comicieiro do discurso) seleccionei dois textos que me pareceram especialmente interessantes e originais.
 
O primeiro saiu no The Times de Londres e é uma análise, parágrafo a parágrafo, das palavras de Trump realizada por um antigo speech writer de Tony Blair, Philip Collins: Trump’s speech unspun (paywall). Eis uma passagem das suas anotações, relativa ao trecho do discurso que terminava com a referência a duas regras simples, buy American and hire American:
In the absence of any poetry, this will be known as the America First speech. Mr Trump was aware that America First was the name of the pressure group that opposed American participation in the war to liberate Europe from fascism. He went ahead and used it anyway. This is the most substantive passage in a speech which otherwise is tied together by bluster. Mr Trump intends to be a protectionist president. This is a signal that an era in which the world economy slowly opened up and integrated is now over. Note the hyperbole: stealing our companies, destroying our jobs. 
 
A outra análise saiu no Financial Times e é, se quisermos, mais heterodoxa. Refiro-me a Donald Trump meant everything he said, de Christopher Caldwell. A utilidade deste texto é que toma mesmo à letra o que Trump disse, enquadrando as suas palavras no que foi a sua campanha e é o seu programa. Lembrando-nos que temos de estar atentos e combater as ideias feitas se quisermos compreender o seu sucesso e o que ele pretende. Por exemplo:
If you pay attention to the speech, it sounds less like a rant and far more like a serious governing programme. One phrase — “This American carnage stops right here and stops right now”— has struck people as a reference to slum violence, and indeed that is what it would have meant had a president used it a generation ago. But its position in the speech makes it likely that Mr Trump is alluding to the wave of overdoses, mostly involving heroin and other opioids, in suburbs and small towns. This is the deadliest US drug crisis ever. It is killing 50,000 Americans a year, more than guns or motor vehicles do. In the 1970s, Curtis Mayfield sang about drugs and crime in the ghetto. In the 1980s, two presidents waged a “war on drugs”. Today’s overdoses are beneath the notice of either the government or the culture.
 
Por outras palavras: de acordo com Christopher Caldwell, Trump continua a falar para o eleitorado que o elegeu, a referir os problemas desse eleitorado, problemas esses que têm sido largamente ignorados pelos poderes públicos e estado longe dos radares da grande comunicação social. Quem de entre nós tinha, ou tem, a noção de que hoje a droga mata nos Estados Unidos mais do que matava há 20 ou há 30 anos? Hollywood não fala dos problemas da “cintura da ferrugem”, os grandes diários ficam longe dos subúrbios e das cidades de província onde este problema é maior. As duas Américas que não se falam nem se compreendem não nasceram apenas das redes sociais e das “fake news”.
 

Ora a América que é contra Trump esteve sábado nas ruas de Washington DC e de centenas de outras cidades em todo o país (e também um pouco por todo o mundo), respondendo a uma convocatória para uma “marcha das mulheres”. A dimensão do protesto foi tal que a discussão do momento é a de saber até que ponto se tratou apenas de um fogacho (a lembrar o da portuguesa manifestação da TSU) ou se irá corresponder a um movimento de fundo, capaz de se prolongar no tempo. Isso mesmo se discutia hoje no Washington Post, na sua newsletter The Daily 202, significativamente intitulada The liberal tea party movement has begun. What will become of it? Por outras palavras, podemos estar perante o começo de um novo “tea party”, mas agora à esquerda. Depois de se interrogar sobre “what will become of the sleeping giant that has awakened?”, prevendo que pode ser o início de uma mudança política profunda e desfavorável aos republicanos, não deixava de acrescentar: “A new protest movement could also upend the Democratic establishment, just like the tea party movement did eight years ago. With the president viewed as illegitimate by so many progressive activists, even small compromises will be viewed as apostasy. This could fuel nasty primary challenges, without a president in the White House to stop them, and prompt a lurch to the left that would make it harder to topple Trump in 2020.”
 
A ideia de um “tea party” democrata também foi abordada por Dan Mclaughlin na conservadora National Review – Do Democrats Really Want Their Own Tea Party? Be Careful What You Wish For – enquanto a The Atlantic explorou The Significance of Millions in the Streets, comparando este movimento com outros, os seus sucessos e os seus insucesos: “Whether it can be sustained is another question––one that depends in part on whether the people who constitute the median protester get put off by the least functional peculiarities of leftist activist subculture or stick around to improve it with their input. The Tea Party had a lot more political success than Occupy Wall Street and the anti-war protesters that neither stopped the Iraq invasion nor defeated Bush. Perhaps the right’s brand of results-focused, flag-waving  respectability politics offers some lessons that are compatible with the left’s goals and commitments.” Ou, como se peguntava na reportagem do Wall Street Journal, Millions of Women With Millions of Causes Find Solidarity in Protest March Against Trump ... But What Will Come of It?
 
Para terminar por hoje, e não prolonger demasiado esta newsletter, referência a duas reflexões importantes, ambas no Observador:
  • América, Churchill e a “corrente de ouro”, de João Carlos Espada, onde este lamenta o tom dos discursos de posse e de alguns discursos nas manifestações, mas manifesta esperança na resiliência das instituições: “se a democracia americana tem sido capaz de assimilar tantas mudanças inesperadas, isso deve-se a que a mudança ocorre num quadro de tradições estáveis. Por outras palavras ainda, grandes mudanças são possíveis na América porque elas não precisam de recorrer à Revolução — ou àquilo que no continente europeu se designa excentricamente por “mudança de regime”.”
  • Trump e as divisões no PS, onde João Marques de Almeida reflecte sobre as consequências internas do virar de costas de Trump à NATO e à União Europeia: “as declarações de Trump podem ter um efeito político clarificador, o que seria positivo. Passámos demasiado tempo a dar a Aliança Atlântica e a União Europeia como um dado adquirido. Chegou a altura de percebermos que as duas instituições tal como começaram podem acabar. O fim das duas ameaçaria a liberdade, a prosperidade e a democracia na Europa. Dito de outro modo, o nosso modo de vida estaria em causa. (…) [Ora] o PS é pró-NATO, pró-UE e pró-Euro; e o PCP e o BE são anti-NATO, anti-UE e anti-Euro.
 
E por aqui termino, sabendo que vamos ter de continuar a conversar muito sobre este mundo desconhecido onde estamos a entrar, ou para onde estamos a ser arrastados. Mas por hoje só vos desejo, como sempre, bom descanso e boas leituras. 

 
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