O ataque terrorista de Manchester voltou a colocar na ordem do dia não apenas os temas da segurança e ordem públicas, mas também o da natureza e características de um terror que tem conseguido evoluir de forma que parece estar sempre um passo à frente das autoridades e de todas as medidas políticas que possamos tomar. Justifica-se por isso que o Macroscópio regresse a este tema, sendo que hoje vou centrar-me quase exclusivamente em reflexões da imprensa internacional.
E começo por Fátima Mohand Abdelkáder, uma jovem de 16 anos de Melilla, o enclave espanhol no norte de Marrocos. Porquê? Porque de alguma forma a crónica Fátima y el castigo mortal en el Arena, de José María Irujo no El Pais tem uma boa abordagem ao que motiva esta nova geração de terroristas. A história de Fátima “era idéntica a las niñas que murieron en el Manchester Arena, vestía vaqueros ceñidos y se pintaba, pero la secta Takfir Wal Hijra, la más extrema y radical del salafismo, le prohibió que sus ojos negros azabaches miraran a ningún hombre que no fuera su padre o el dirigente de la secta que la captó en el barrio de La Cañada de Hidum, uno de los más deprimidos de la ciudad.” Obrigada a casar e a esconder-se por trás de uma burka, foi como se desaparecesse do mundo em nome de uma visão do Islão que não será muito distinta daquela que armou o braço do terrorista de Manchester. Como ele escreve, “Este lunes, el suicida quería castigar a los niños y niñas que asistían al “desvergonzado concierto”, a los muchachos alegres y desinhibidos que representan lo mejor de nuestra libertad. Como a Fátima, quieren obligarlos a caminar por el camino recto que solo conduce al club del odio, la esclavitud y la maldad.”
Mas se não haverá muita novidade na visão do mundo de quem segue as versões mais radicais da religião de Maomé, será que aqueles que hoje colocam as bombas são militantes do mesmo tipo daqueles que as colocavam há 20 ou 30 anos. Olivier Roy, um dos maiores especialistas do Islão, defende que não no seu livro Jihad and Death: The Global Appeal of Islamic State, de que o Público editou uma passagem no último fim-de-semana, sob o título Quem são os novos jihadistas? A resposta é que hoje “o radical típico é um convertido ou imigrante jovem, de segunda geração, muitas vezes envolvido em episódios de pequena criminalidade, praticamente sem nenhuma educação religiosa, mas com uma trajectória rápida e recente de conversão/reconversão, mais frequentemente no contexto de um grupo de amigos ou da Internet do que no contexto de uma mesquita.” Mais: “O mais radical nos novos radicais, em comparação com as gerações anteriores de revolucionários, islamistas e salafistas, é o seu ódio pelas sociedades existentes, sejam elas ocidentais ou muçulmanas. Este ódio está consubstanciado na busca da própria morte ao cometer homicídios em massa. Eles matam-se juntamente com o mundo que rejeitam. Desde o 11 de Setembro de 2001, este é o modo de actuação preferido dos radicais.”
Uma leitura semelhante foi feita no Guardian, em Terrorists see reason in madness of targeting public events, onde se escreve que, no caso de grupos como o ISIS, estes dependem “on escalating brutality to terrorise target populations, whether in the west or the Middle East. One factor behind the focus on “lifestyle” targets is longstanding. Isis described Monday night’s concert as “shameless”, much as it described victims of its murderous attack in Paris in 2015 (...). Isis sees any other culture as a threat, destroying works of antiquity in its strongholds to extirpate idolatry and unbelief. This rigorously puritanical vision is a key element of the violent revivalism of all jihadi groups. It also echoes the language of conservatives throughout much of the Islamic world who see western culture as the greatest threat to young Muslims, the cohesion of local societies and what they regard as their culture.”
Esta descrição leva-nos a um outro tema que mereceu alguma atenção da imprensa: o de saber como se compara a actual vaga terroristas com as do passado. Isso mesmo foi feito pelo The Times de Londres em Nature of the threat has changed, o texto de onde foi retirado o gráfico acima e que compara o número de mortos provocado por atentados jihadistas com aqueles que o terrorismo de grupos como a ETA, o IRA ou radicais de extrema-esquerda provocou nas décadas de 1970 e 1980. Também a Renascença procedeu à mesma comparação em O terrorismo mata hoje menos na Europa do que nos anos 70. Porque nos parece o contrário?
Acontece porém há quem defenda que não podemos comparar movimentos terroristas de características tão diferentes – e é aí que entra, na opinião de Henrique Raposo, por exemplo, a questão das motivações de hoje por comparação com as de outrora. Em A jihad é mais perigosa do que IRA/ETA, publicado no Expresso Diário (paywall), aquele colunista defende que o essencial é percebermos que “Os islamitas não estão em luta contra um país em especial, mas sim contra um modo de vida europeu, estão em guerra com as representações de uma civilização inteira, desde a música à imprensa. Isto alarga o espetro do terror. Não é uma questão política localizada, é uma questão civilizacional de fundo.” Ou seja, não há aqui o mesmo tipo de objectivos limitados a reivindicações nacionalistas ou políticas.
O que nos leva ao problema de saber até que ponto nos estamos a habituar a viver com a ameaça do terrorismo islamista. David French defende que sim num artigo da Nacional Review, The World Is Too Comfortable with Terror. A sua perspectiva é que “The Western world knows the price it has to pay to decisively reduce the terror threat. It’s no longer willing to pay that price. It’s no longer willing even to let their militaries truly do the jobs they volunteered to do. So there will be more Manchesters, more Parises, more Nices, and more Orlandos. But that’s what happens when we’re not willing to do what it takes. I hope at least our hashtags can make us feel better about our choice.”
No Observador também Rui Ramos se interrogou, em Há alguma coisa de novo para dizer sobre o terrorismo?, sobre até que ponto a nossa dificuldade em fazer muito mais para prevenir o terrorismo não acabará por ser fatal para o nosso modo de vida. Para, “faz-se o que se pode: manter a polícia atenta na Europa e na América, para não deixar a jihad desenvolver “células”, e ajudar aliados no Médio Oriente e na África, de modo a não consentir “santuários”. Mas que acontecerá se um dia os ocidentais se sentirem verdadeiramente fracos e inseguros, como é objectivo dos terroristas? Conseguiremos não nos tornar noutra coisa, por exemplo, em comunidades exclusivistas determinadas a retaliar brutalmente? Talvez pouca gente deseje isso, mas é uma ilusão pensar que é apenas uma questão de boa vontade e abertura de espírito. No fundo, a única coisa que falta dizer sobre o terrorismo é evidente: pode mesmo mudar a maneira como vivemos, e também a maneira como pensamos.”
Tema difícil, pois de facto é mesmo difícil saber até que ponto estamos a fazer o suficiente, como defende no The Telegraph (de onde é também o cartoon com que abri esta newsletter) Hugh Orde em Our counter-terror system works – we need calm not drastic measures. Há nesse texto palavras que parecem bastante sensatas, mesmo que seja difícil perceber se não precisamos de nos esforçar mais. Como ele escreve, “Imagine if the police erected a “ring of steel” around arenas, with outer perimeters and cordons being put up to bolster security. Where would you stop? That sort of response would leave the terrorists feeling vindicated. Anyway, you’ll never prevent a determined loner from using themselves or technology to slip a homemade device into the venue unless you put in blast resistant doors and physically strip-search everyone.”
Este é, de facto, um dos grandes dilemas do combate anti-terrorista: mais segurança representará quase inevitavelmente menos liberdade e menos privacidade. Sendo que que quando falamos da melhor forma de actuar não nos devemos limitar a fazer sugestões sobre as tarefas das polícias, pelo que é útil ler James Rodgers que, na Prospect, reflectiu sobre How should journalists cover traumatic events? Num texto em que relata algumas experiências por que passou, aborda o problema ético de como melhor transmitir ao grande público o tipo de sentimentos que um acto destes suscita: “Today such sentiments have been all over social media. There, the journalist has to face dilemmas of a different kind. Pain may already be public, but taking it from an obscure Twitter feed to an international website is an editorial and ethical decision of its own. If it helps to inform and explain, fine. If it is just an exercise in gawping at grief, think again.”
Antes de um pequeno ensaio quase lateral a esta discussão que deixei prepositadamente para o fim , apenas mais algumas referências:
- Solidarity in Crisis, um texto editorializado do Handelsblatt, onde se destaca a necessidade de a Europa continuar a cooperar em matéria de segurança mesmo depois do Brexite: “Manchester’s devastating attack, coming on the heels of attacks this year in France, Stockholm, Dortmund and Berlin in December, serves as yet another reminder that terrorism and security cooperation in Europe should not fall by the wayside.”
- Attentat de Manchester : une tragédie européenne. O editorial do Le Monde segue mais ou menos pelo mesmo caminho: “La première réaction des services de l’antiterrorisme des deux côtés de la Manche a été la même : le Brexit ne doit en aucun cas altérer les efforts de coopération policière poussée menés au sein de l’Union européenne. Manchester, Londres, Paris, Berlin, Stockholm : la tragédie est commune. Elle est celle de la radicalisation d’une minorité de jeunes musulmans nés en Europe et qui, « cerveaux pervertis et dérangés », basculent dans le terrorisme.”
- Jihad in Manchester, o editorial do Wall Street Journal onde se prefere antes sublinhar a importância das políticas de imigração e integração, pois “Muslim integration is central to Europe’s counterterror agenda”. De facto, como se nota logo a abrir, “British police on Tuesday identified the terrorist bomber who blew himself up outside Manchester Arena on Monday night as Salman Abedi, a 22-year-old born in Manchester. This means Britain has been terrorized again by a native-born Muslim who became radicalized while enjoying the freedoms of Western society.”
- The Islamic State and the End of Lone-Wolf Terrorism, uma análise de Jen Easterly e Joshua A. Geltzer na Foreign Policy onde os autores defendem que “From Manchester to Orlando, the followers of the Islamic State aren’t operating “alone” anymore. And there are no easy answers to defeating an online community of terrorists.” Depois, contrariando alguns argumentos comuns, defendem que “The Islamic State hasn’t unleashed lone-wolf terrorism; instead, its unique manipulation of modern communications technologies portends the end of lone-wolf terrorism.”
- The Manchester Attack Shows How Terrorists Learn, uma opinião informade de Daveed Gartenstein-Ross na The Atlantic, um daqueles textos onde se fica mesmo com a ideia, já referida atrás, de que os terroristas estão sempre um passo à frente das autoridades de segurança: “European politicians don’t have good answers to the problem of terrorism right now. Often, it is regarded as “the new normal,” something we will just have to live with and die with for years to come. But as technology marches on—with 3-D printing, increasingly capable consumer drones, growing vulnerabilities to hacking, and the like—there is the worrying prospect that tomorrow will be worse than today.”
A fechar deixo-vos a referência para um texto muito interessante, do site Zeihan on Geopolitics mas reproduzido pelo Real Clear World, um pequeno ensaio de Peter Zeihan onde se parte destes eventos para reflectir sobre as dificuldades actuais do centro-esquerda na maior parte dos países do mundo desenvolvido. Manchester, Political Upheaval, and the Desertion of the Global Left começa por considerar que estes atentados podem favorecer ainda mais os conservadores britânicos nas eleições que se aproximam – “Between the rally-round-the-flag effect of terror attacks and the fact that the ruling Tories are the law-and-order party, the UK is now on the cusp of a complete overhaul. Barring some truly unprecedented revelations that bring down May and the entirety of the Conservative leadership, the Tories will walk away from the June elections with the strongest showing of perhaps the last century. In the election’s wake, Labour will not simply be weak, it will be gone and it is unlikely to come back in a meaningful way. What’s going on in the United Kingdom is hardly unique; Center-left parties are collapsing across the developed world. It is a symptom of a wider change in the way we all live.” – mas vai depois muito mais longe, recordando como os partidos de centro-esquerda são em boa parte produto das duas primeiras revoluções industriais e como a sociedade moderna lhes coloca desafios a que têm dificuldade em responder. Não que o centro-direita também não o tenha, mas os argumentos desenvolvidos neste artigo merecem a vossa atenção.
E por hoje é tudo. Amanhã regressarei a este tema, para vos falar com mais detalhe do que como foi a discussão em Portugal. Tenham bom descanso e boas leituras.
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