Não há muito tempo, numa sessão à porta fechada sobre geopolítica, escutei com atenção o diagnóstico muito pessimista de um antigo ministro dos Negócios Estrangeiros. Percorrendo as várias zonas do globo e olhando para os diferentes conflitos que nelas fervilhavam, foi revelando um mundo onde as incertezas são tantas que a próxima crise pode surgir onde menos esperamos. Lembro-me de ele se deter algum tempo a explicar como as tensões no Médio Oriente não se limitavam às zonas do costume – Israel/Palestina, Iraque e Síria –, antes terem outros focos potencialmente mais perigosos. Nomeadamente nas complexas relações da Arábia Saudita com os seus vizinhos, em especial no crescendo de tensão entre o país sunita onde se situam os principais lugares santos do Islão (Meca e Medina) e o seu grande vizinho xiita, o Irão. Não tendo esquecido esse alerta segui com alguma atenção os mais recentes desenvolvimentos no único país do mundo que assumiu o nome da família reinante, o clã Saud.
A sucessão de acontecimentos na Arábia Saudita tem sido tão surpreendente como rápida. Um príncipe herdeiro com apenas 32 anos que se torna no homem forte do país. Membros da família real detidos por corrupção, mas tendo como prisão um hotel de luxo em Riade, o Ritz-Carlton. Um míssil balístico disparado do Iémen e interceptado quando se dirigia para o aeroporto da capital saudita. Um primeiro-ministro libanês que anuncia a sua demissão na televisão a partir de... Riade e fica retido alguns dias. E por fim a ideia de o jovem príncipe é um reformista que está a dar mais direitos às mulheres. Que se está a passar? Será que finalmente o reino, conhecido pelo seu conservadorismo e secretismo, está a mudar? Que ondas de choque estão a ser sentidas na região?
As primeiras respostas a estas questões não são de molde a tranquilizar mesmo os que gostariam de ver terminado o controlo do país pela aliança entre os Saud e o clero wahabita, conhecido pela sua versão radical do Islão. Mas comecemos por tentar perceber o que se está a passar com a ajuda de uma trabalho mais longo do Financial Times, Greed and intrigue grip Saudi Arabia. Nele explica-se que “Power in Saudi Arabia has traditionally been spread across layers of princes, whose loyalty has been secured via a vast patronage system of public defence and infrastructure procurement, facilitated by middlemen and fixers. Prince Mohammed is purging princes and businessmen associated with the late King Abdullah, to help him consolidate control of the economy and the state.” Contudo, explica-se um pouco mais à frente, “The scope of his ambition and the speed with which he has acted over the past six months, could yet backfire. The economic and social revolution under way upends decades in which Saudi rulers have balanced conservative and liberal ideals with the complicated web of tribes and clerics underpinning the loyalty to the House of Saud.”
Já a leitura da mais recente edição da revista The Economist ajuda a perceber uma parte das implicações geopolíticas, em concreto as que envolvem o Líbano. Em Iran and Saudi Arabia take their rivalry to Lebanon procura enquadrar-se o quadro em que o primeiro-ministro libanês Hairiri pediu a sua demissão em Riade e, dias depois, voou para Paris.
Passemos agora a um enquadramento mais global dos últimos desenvolvimentos, guiados pela mão segura de Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto. No mais recente Conversas à Quinta – Que esconde o enigma do príncipe reformista da Arábia Saudita – falámos longamente sobre as origens do reino saudita, as suas características muito particulares, o seu sistema de alianças e as suas disputas regionais (e religiosas), falando também de como pode procurar-se libertar-se da dependência quase total da sua petro-economia. Podcast aqui.
Entrando agora mais em detalhe nos pormenores da atual “revolução”, começo por uma interessante análise de Andrew Leber e Christopher Carothers na Foreign Affairs, Is the Saudi Purge Really About Corruption? Os dois autores discutem até que ponto o caminho que parece estar a ser seguido pelo príncipe herdeiro, Mohammad bin Salman (MbS), pode ser comparado com o da actual liderança chinesa: “Taking up the MbS–Xi comparison, we argue three points. First, it is too early (and too easy) to dismiss MbS’s anticorruption efforts—the crown prince isn’t Xi, but Xi’s campaign shows that autocrats can sometimes combine power grabs with substantial reforms. Second, to become more like his Chinese counterpart, MbS will need a strong enough hand to challenge the corrupt status quo and enough state capacity to make reforms stick. Third, the test of the reforms over the coming months will be whether the crackdown continues, MbS announces and enforces clear rules against official conduct, and whether purged elites are quietly released and “un-purged.” These will show whether last week’s purge was really a one-off power grab or the beginning of a serious attempt to take on systemic corruption.”
Este texto é, de alguma forma, uma resposta à análise de David Ignatius no Washington Post, já que esta é bastante mais pessimista. Em The Saudi crown prince just made a very risky power play defende que, “While accompanied by the rhetoric of reform, this weekend’s purge resembles the approach of authoritarian regimes such as China. President Xi Jinping has used a similar anti-corruption theme to replace a generation of party and military leaders and to alter the collective leadership style adopted by recent Chinese rulers.”
Já entre os colunistas da Project Syndicate o registo é de grande prudência, deixando alguns alertas. Numa análise mais factual, Bernard Haykel fala-nos de um Saudi Arabia’s Game of Thronesuma vez que “King Salman has now replaced the 57-year-old Muhammad bin Nayif with his 31-year-old son, Mohammed bin Salman, as crown prince, signaling a clear break from a decades-old tradition of building consensus. That implies a return to the absolute monarchy established by Saudi Arabia's founder, King Abdulaziz Ibn Saud”. Aqui o foco é colocado no facto de estes jogos de poder romperem o equilíbrio no interior da família reinante, mas como nota o antigo ministro dos Estrangeiros alemão Joschka Fischer em Saudi Arabia’s Revolution From Above, o jogo é muito mais complexo: “After becoming the heir apparent to the Saudi throne earlier this year, Crown Prince Mohammed bin Salman has quickly consolidated his power and begun to usher in a period of radical change. But as he overhauls the country's domestic and foreign policies, he is also heightening the risk of another conflict in the Middle East.”
Para este experimentado observador, “So far, the battle for regional hegemony between Saudi Arabia and Iran has been limited to proxy wars in Syria and Yemen, with disastrous humanitarian consequences. Neither side, it seems, wants a direct military conflict. And yet that outcome can hardly be ruled out, given recent developments. In the Middle East, a cold war can turn hot rather quickly. Over the long term, the Saudi-Iranian rivalry will shape the Middle East in much the same way that the Israeli-Palestinian conflict once did.”
O analista Shlomo Ben-Ami também afina pelo mesmo diapasão em The Saudi Prince’s Dangerous War Games, um texto onde alerta para que “Saudi Arabia’s Crown Prince Mohammed bin Salman is working hard to consolidate power and establish his country as the Middle East’s only hegemon. But his efforts – which include an attempt to trigger a war between Israel and Hezbollah in Lebanon – increasingly look like the work of an immature gambler.”
Ou seja, há outras realidades para além da retórica aparentemente reformista do novo homem forte de Riade. Sendo que, seja qual for a evolução da situação, o reino não deverá evoluir rapidamente para qualquer coisa parecida com uma democracia, mesmo que numa forma de monarquia constitucional. O que não quer dizer que um percurso desse tipo seja de todo impossível na região, como nota Yaroslav Trofimov num muito interessante (e surpreendente) ensaio no Wall Street Journal, Iraq’s Surprise: The Persistence of Democracy. Nesse texto defende-se que “Long fractured, the country stands out in the Middle East for maintaining free elections and a robust press”. Um exemplo interessante de como isso até pode estar a suscitar outras surpresas é a sua análise sobre o que se passou no recente referendo curdo onde se pretendia proclamar a independência: “The recent crisis over Kurdistan’s Sept. 25 independence referendum highlighted how democratic legitimacy can turn into a potent political tool. The ease with which Mr. Abadi’s government managed to reclaim the oil-rich province of Kirkuk and other strategic areas in Kurdistan was due, in large part, to widespread dissatisfaction within Kurdistan over the 25-year rule of the region’s president, Masoud Barzani. Unlike the elected authorities in Baghdad, Mr. Barzani—who finally stepped down as president on Nov. 1—had overstayed his term by two years. Presidential elections were repeatedly postponed, and Mr. Barzani’s party used military forces under its control to keep the Kurdistan parliament not only from electing a successor but even from convening.”
Ou seja, nem tudo é como parece. Nem o que está mal está para sempre, nem o que parece ser uma onda de boas notícias é obrigatoriamente de saudar. Se Fischer tiver razão e aquilo a que assistimos é a um agravar de tensões entre grandes países (Arábia Saudita e Irão) que são também imensos produtores de petróleo, então temos de estar atentos às ondas de choque.
Mas por hoje é tudo. O Macroscópio despede-se por hoje e por esta semana, já que estarei fora alguns dias para um Conversas à Quinta que, excepcionalmente, será transmitido a partir de Macau. Tenham uma boa semana, já agora (para quem vive em Portugal) com alguma chuva.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário