sexta-feira, 23 de março de 2018

Macroscópio – A culpa é do Facebook? A culpa é da tecnologia e do “big data”? Ou a culpa é dos suspeitos do costume, nós mesmos?

15394f37-d15a-4db8-9900-7c4008f236fe.jpg

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Será mesmo verdade que “o meio é a mensagem”, como defendeuMarshall McLuhan, uma do mais influentes teóricos dos meios de comunicação? E se “o meio é a mensagem” é mesmo verdade que foi o Facebbok que elegeu Donald Trump e levou os britânicos a votar pelo Brexit? A acreditar nalguma da exaltação que se seguiu à revelação do papel, nessas campanhas políticas, da Cambridge Analytica diríamos que sim. Caso contrário não haveria campanhas como a #deletefacebook nem apelos como o do fundador do WhatsApp: “Está na hora. Apaguem o Facebook”. Há mesmo quem considera que a rede social é inimiga da democracia. Um pouco de memória ajudaria a esfriar ao ânimos, já que não é a primeira vez que o aparecimento de um maior de comunicação de massas foi visto como sendo “o problema”. Aconteceu com a imprensa de caracteres móveis de Guttemberg, aconteceu com a telegrafia sem fios, aconteceu com a televisão, aconteceu nos primórdios da Internet e está a acontecer de novo. Vale por isso a pena tentar separar o trigo do joio, separar o que é pura emoção e exaltação daquilo que são perigos reais.
 
Primeiro que tudo, de que é que estamos a falar? Falamos do papel desemprenhado pela Cambridge Analytica na campanha de Donald Trump e como esta foi capaz, usando dados do Facebook, de traçar os perfis de milhões de eleitores e, emfunção disso, de criar mensagens políticas personalizadas até ao limite. Nada que não se soubesse que tinha existido mas que se tornou um facto político e mediático depois das revelações ao Guardian de um jovem de 27 anos, Christopher Wylie, um nerd de ciência dos dados que foi um dos arquitectos dessa campanha. O título desse trabalho inicial quase que diz tudo – ‘I made Steve Bannon’s psychological warfare tool’: meet the data war whistleblowe’ – e desde então que o diário inglês não tem parado de escrever sobre o tema, estando os seus artigos agrupados sob a tag The Cambridge Analytica Files. O Observador resumiu o essencial deste caso em50 milhões de perfis do Facebook terão sido usados para ajudar a eleger Trump.
 
Antes de entrarmos na discussão, alguns artigos ajudam a perceber um pouco melhor como é que a operação foi feita. No Telegraph, em The data machine: What Facebook knows about you - and how it uses your information, dá-se conta, por exemplo, de como os nossos “likes” podem ser interpretados para perceber quem nós somos, de como a lista dos nossos amigos ajuda a traçar o nosso perfil ou de como o local onde nos ligamos à rede permite perceber por onde andamos. No Financial Times, John Gapper explica como a Cambridge Analytica exploited Facebook data with style. Este texto é mesmo acompanhado por um pequeno vídeo, How Facebook 'likes' can be weaponised for political gain, curtinho e muito didático. Neste artigo podemos perceber que tudo isto é mais fácil porque nós somos o que somos, e o Facebook é o que é: “It is remarkable how easily most of us are willing to share our data in return for free services. Equally remarkable is that Facebook has little effective means of stopping the misuse of data, apart from asking those who run applications on its platform to behave well, or suspending them if it notices misbehaviour. Facebook has never implemented safeguards that match the power of the data machine it created.”
 
(Informação útil: se quer continuar a usar o Facebook mas passar a proteger melhor a sua conta e a limitar os dados que partilha, lei este texto de Manuel Pestana Machado: 5 medidas (e mais uma) para proteger a sua conta e que pode fazer já. A mais uma é apagar mesmo a conta, mas não necessita de ir tão longe. E não se assuste por o Manuel ser o nosso nerd que se atirou de uma ponte para testar uns auscultadores, este texto é um elogio da prudência.)
 
Depois de percebermos qual a base da ciência dos dados que permite utilizar as redes sociais e outros meios mais tradicionais de comunicação para enviar mensagens políticas direccionadas vale a pena baixar o grau de indignação separando as duas facetas deste caso. Por um lado, temos a utilização de big data para fins políticos; por outro lado temos o recurso pela Cambridge Analytica a processos duvidosos (como a chantagem sexual) ou mesmo ao roubo de dados. Estes métodos são altamente condenáveis, podendo mesmo ser criminosos. Já usar big datapara fins eleitorais é bastante mais comum do que se pensa, e até agora até costumava ser um processo elogiado na comunicação social.
 

Com efeito, como nos recorda, com detalhes, Freddy Gray na Spectator, Cambridge Analytica’s use of Facebook is straight from Obama’s playbook. O autor recorda que na campanha de 2012 o anterior Presidente dos Estados Unidos fez quase o mesmo: “Barack Obama’s 2012 campaign used one of Facebook’s APIs (application programming interfaces) and data to target voters. It’s clever and complicated, but what it boils down to is that Obama’s data scientists were able to persuade about a million Facebook users to connect their profile to the Obama campaign website. They were then able to access the profiles of these people, which also showed who their friends were. From this they were able to construct real life social networks, which enabled them to target many, many more potential Obama voters. “If you log in with Facebook, now the campaign has connected you to all your relationships,’ boasted a digital campaign organiser.” As diferenças, desta vez, que em vez de partir de uma base de um milhão de utilizadores, a campanha de Trump partiu de uma mais pequena, apenas 250 mil; e a API que a campanha de Obama utilizou foi descontinuada pelo Facebook, por razões de privacidade, pelo que se suspeita que a campanha de Trump utilizou dados do Facebook de forma fraudulenta. O resto, e o resto é o mais importante, seguiu o mesmo padrão de utilização de big data, uma utilização potenciada por mais quatro anos de acumulação de dados pessoais nas redes, uma utilização que a campanha de Hillary também fez, mas sem o mesmo sucesso.
 
Aqui chegados coloca-se naturalmente um problema: o critério para saber se o Facebook e as outras redes sociais são boas ou más não pode ser gostarmos ou não do candidato que melhor uso faz do big data. Por outras palavras, a “habilidade” que se elogiava em Obama não pode transformar-se em “indignação” só porque agora foi Trump que tirou o melhor partido da tecnologia.
 
Isso mesmo defendeu João Miguel Tavares, no Público, em O Facebook não ganha eleições. Aí escreve, por exemplo, que “o Facebook ganha tanto eleições como a televisão, a rádio ou os jornais. Posso até admitir que o seu poder de persuasão é maior, e que chega com mais eficácia a milhões de eleitores. Mas isso não modifica a natureza do exercício da propaganda. A Cambridge Analytica é uma agência de comunicação política 2.0 sem escrúpulos — nem mais nem menos do que isso. É preciso bem mais do que um feed amestrado para conseguir manipular milhões de votos.”
 
(Eu próprio, num texto que escrevi há mais de um ano, ironicamente intitulado A culpa é das redes sociais. E da máquina a vapor, também defendi que os populismos não eram uma criação das redes sociais, antes de erros políticos das elites dirigentes, e que “fake news” eram tão antigas como a Humanidade, tendo o seu lastro pesado de vítimas. Em vez de procurar bodes expiatórios devemos enfrentar a realidade: “As redes sociais, como a televisão por cabo, como o Google, como os smartphones, estão para ficar – como esteve para ficar a máquina a vapor no dia em que começou a substituir o trabalho braçal e a aterrorizar os ludistas. Como o Sol não se tapa com uma peneira, não se pára um mundo em mudança.”)
 
Todos estes raciocínios ajudam a questionar a reacção instintiva de culpar o Facebook e as redes sociais por todos os males do mundo, ou mesmo de considerar que foi o senhor Zuckerberg que elegeu Donald Trump ou provocou o Brexit. Não nos deve contudo distrair dos desafios colocados pela nova realidade em que vivemos. É por isso que considero fundamental ler dois artigos que chamam a atenção quer para as novas realidades criadas por estas tecnologias, quer para a velha e eterna natureza humana.

 
Em Big data is watching you – and it wants your vote, Jamie Bartlett analisa na Spectator alguns dos perturbantes desenvolvimentos destes novos tempos. Primeiro reparemos no que mudou na forma de organizar as campanhas políticas: “The modern election is still mostly about having the right candidate. But it’s increasingly important to get the right message to the right people at the right time — tapping into their deepest emotions and fears to figure out what buttons to push. We used to call this sort of thing propaganda. Now we call it ‘a behavioural approach to persuasive communication with quantifiable results’ and give awards to the people who are best at it.” Depois reparemos que a quantidade de dados à disposição só vai continuar a aumentar, sobretudo quando se vulgarizar a “internet das coisas”: “By 2020 there will be around 50 billion devices connected to the net — four times the current figure — and each one will be hoovering up your data: cars, fridges, clothes, road signs, books. Your precious daughter playing with her doll: data point! Your loved one adding some sugar to her tea: data point! Within a decade your fridge will work out what time you eat, your car will know where you’ve been, and your home assistant device will work out your approximate anger levels by your voice tone. This will be gobbled up by hungry political analysts.” Finalmente um dos problemas que, pessoalmente, mais me preocupa, a fragmentação do espaço público, pois com mensagens políticas distribuídas pessoa a pessoas haverá cada vez menos conhecimento comum que sustente uma discussão em comunidade e tomadas de decisão democráticas, conscientes e informadas: “In the long run, the constant a/b testing and targeting might even encourage a different type of politician. If politics drifts into a behavioural science of triggers and emotional nudges, it’s reasonable to assume this would most benefit candidates with the least consistent principles, the ones who make the flexible campaign promises. Perhaps the politicians of the future will be those with the fewest ideas and greatest talent for vagueness, because that leaves maximum scope for algorithm-based targeted messaging.”
 
Já no que diz respeito à natureza humana, e a como ela não resiste às tentações proporcionadas pelas novas tecnologias e pelas redes sociais, Henrique Monteiro escreve no Expresso Diário (paywall), em Quem ameaça a democracia? O Facebook ou os seus utilizadores?, que este caso exigiu mais gente a dançar o tango: “A ganância dos homens, a vaidade dos homens, a batota dos homens, as fraquezas dos homens. A ganância explica por que razão Mark se terá deixado seduzir por uma operação que tem no seu cerne a violação da privacidade; a segunda permite entender por que motivo as pessoas, além de fotografar o que comem e comunicar a que horas se deitam, põem cruzes a permitir tudo e um par de botas; a terceira é a chave para quem tem um dedo de testa aproveitar esta cultura e, de forma secreta, ou pelo menos dissimulada, tentar levar água, ideias, dinheiro, ao seu moinho; a última explica como se torna normal enganar os incautos a favor de se ganhar uns bons dinheiros.”  
 
Por tudo isto não podia ver mais a propósito a frase de George Orwell que o mesmo Henrique Monteiro escolheu para esta sua coluna esta semana: “A linguagem política – e com algumas variações isto aplica-se a todos os partidos políticos, dos conservadores aos anarquistas - foi concebida para fazer as mentiras parecer verdades, o assassino respeitável e para dar uma aparência de solidez ao puro vento”. 
 
Pois é, e é bom recordá-lo. Mas por hoje fico-me por aqui, pois estas últimas palavras são suficientemente desafiantes para reflexões mais alargadas. Tenham boas leituras e um reparador descanso.  
 
 
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2017 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa

Nenhum comentário:

Postar um comentário