quinta-feira, 26 de abril de 2018

Macroscópio – Mas afinal foi ou não legítimo divulgar os vídeos de José Sócrates?

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Qualquer jornalista com um bocadinho de memória – e julgo que também qualquer cidadão atento – recordará que, sempre que se falou, ao longo dos anos (muitos anos) dos comportamentos de José Sócrates, se acabava rapidamente a discutir ou o comportamento dos jornalistas, ou os métodos da Justiça. Hoje que já não restarão muitas dúvidas sobre a gravidade do que se passou esse hábito não desapareceu e estamos de novo num desses momentos por causa de um conjunto de reportagens emitidas pela SIC em que se reproduziam imagens dos interrogatórios feitos no DCIAP ao antigo primeiro-ministro. Sempre defendi que as opções editoriais dos jornalistas, assim como as decisões dos juízes, são tão susceptíveis de crítica e de escrutínio público como os actos dos políticos, e por isso achei que valia a pena dedicar este Macroscópio a essa discussão – não pude foi deixar de notar este paradoxo que é muitas vezes estarmos mais tempo a discutir se se deve ou não divulgar aquilo que se sabe do processo do que a reflectir sobre como foi possível que tudo aquilo foi possível. E esse é um debate que não podemos deixar de fazer, como bem recordou esta semana Rui Ramos em Porque é que só há uma Ana Gomes?
 
Mas adiante, começando por indicar onde podem ser vistas, ou revistas, as reportagens da SIC, que mesmo não estando todas agrupadas no site da estação de Carnaxide, o que permitiria uma consulta mais fácil, têm lá algumas portas de entrada, nomeadamente estas duas:"Oui, Monsieur - O Saco Azul do Marquês"José Sócrates: O Confronto. Prossiguemos recordando que se as imagens dos interrogatórios ainda não tinham sido vistas, quase tudo o que elas mostram já fora contado em múltiplos trabalhos jornalísticos. Os interrogatórios em concreto foram mesmo dissecados em 12 pequenos vídeos do Observador, sob a designação genérica de Sim, sr. procurador. Nesses vídeos reproduzem-se os momentos decisivos dos interrogatórios da Operação Marquês, com vozes que recriam as perguntas e as respostas. (Esse conjunto de trabalhos pode também ser consultado aqui). 
 
No que se refere à legalidade da reprodução desses registos vídeo parece haver um consenso que ela não suporta a decisão da SIC, devendo o Ministério Público abrir processos sendo natural que, lá mais para a frente, se acabe a discutir o que é realmente importante, isto é, se a avaliação que aquela cadeia de televisão fez do que é interesse público justifica ou não ter ido além do quadro estritamente legal. Sendo que a presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas já veio defender que a divulgação de vídeos de Sócrates é "legítima".
 
Para iniciar agora o debate importa conhecer os factos, e sobretudo os fundamentos da decisão da SIC. Para isso o texto fundamental é o de Ricardo Costa no Expresso, Isto não é não jornalismo, texto esse onde o director da estação explica de forma detalhada o racional que levou à elaboração daquele conjunto de reportagens. É um texto onde também se defende de alguns ataques, alinhando argumentos contra alguns dos seus críticos, alguns dos quais referirei já de seguida. Como o texto é longo e justifica ser lido na íntegra não me vou alongar muito, refiro que o ponto de partida de Ricardo Costa é que “Perante o caso judicial mais grave da nossa democracia e a falência bancária que mais dinheiro leva aos contribuintes (...) é um erro gravíssimo considerar que este caso é apenas um assunto judicial. É judicial, é político, é financeiro, cruza toda a nossa sociedade. A justiça deve fazer justiça e os jornalistas devem fazer jornalismo.” Mais adiante argumenta que face a tudo o que está em jogo na Operação Marquês, o direito mais importante a reter é o direito à informação: “O direito à imagem é fundamental numa democracia. Como é o direito à informação. O que coloca, por vezes, estes dois direitos frente a frente é o interesse público. Não vejo - foi essa a conclusão a que chegámos internamente na SIC -, nenhum caso onde o interesse público seja mais relevante.”

 
De entre os textos que o director da SIC trata de rebater na sua coluna há dois que merecem especial atenção, um do Público e outro do Diário de Notícias: 
  • De Vicente Jorge Silva temos Isto não é jornalismo, antes, na sua opinião, “de uma encenação que verdadeiramente se trata – de uma encenação sobre a investigação das entidades judiciais e o libelo acusatório, não de uma genuína investigação jornalística independente, com recurso a fontes autónomas, contraditórias e sem ligação entre si.”
  • Já António Barreto, em Dois casos, defende que “Seja ou não bandido ou aldrabão, tenha ou não um currículo violento, possua ou não músculos ou capital, partilhe ou não ferocidade com animais selvagens, um arguido ou um suspeito está sempre, durante o interrogatório, em situação de inferioridade, facilmente amedrontado, quase sempre em fragilidade psicológica. (...) Em pleno interrogatório, sobretudo se tem algo a esconder, se há culpa, se procura defender-se, qualquer pessoa, mesmo valente ou violenta, merece, porque é uma pessoa humana, um pouco de respeito”. 
 
Já entre os jornalistas que se pronunciaram a favor da decisão da SIC é interessante notar que a existência de reservas a uma ou outras das opções daquele televisão, mas sem desmerecer a importância do trabalho. Essa é, por exemplo, a posição de João Miguel Tavares que, no Público, em Falemos, então, das imagens da SIC, sublinhou que “O trabalho da SIC teve o mérito de unir todas as pontas, de uma forma muito compreensível para o grande público. Mais: a voz e postura corporal dos arguidos são elementos fundamentais para a formação de uma convicção. Tenho dúvidas sobre certas opções tomadas (...), mas não alinho no desprezo acerca da importância que aquelas imagens têm para o esclarecimento da opinião pública quando estão em causa crimes de corrupção.” E isto, para ele, é o essencial. 
 
Menos conclusivo é Martim Silva, no Expresso, que em Ainda sobre os interrogatórios a Sócrates (e estão à vontade para dizer que isto é um frete), alinha 14 reflexões onde expõe ora convicções, ora dúvidas. E é sincero: “Não sei se publicaria ou divulgaria as inquirições daquela forma. Não sei mesmo. Nos rascunhos deste texto, comecei por escrever "provavelmente não. Provavelmente não daquela maneira". Mas só posso mesmo afirmar que não sei.” A leitura deste texto permite ter uma ideia do tipo de debates que muitas vezes cruzam as redacções. 
 
Já Eduardo Dâmaso, na Sábado, é muito mais afirmativo em A propósito dos vídeos malditos, um texto onde realiza alguns exercícios de memória bastante úteis: “Essa gente, que faz agora um penoso mea culpa por não ter reparado na cultura de saque em que vivemos nos anos de Sócrates, atira a narrativa dos direitos fundamentais por dá-cá-aquela-palha como se estivéssemos à beira da barbárie e repete a mesma cantiga da falta de interesse público agora como já antes o fizera. Não estão só enganados. Agem de má-fé e querem um pacto de regime que ponha na ordem o jornalismo de que não gostam.” 
 
João Marcelino, no Jornal Económico, faz em Jornalistas e seus derivadosuma crítica aos que, tendo de tomar decisões difíceis, por regra ficam nas encolhas, quando não no encobrimento. Por isso considera que aquela reportagem “Dignificou o jornalismo, além de desencadear a polémica sobre a utilização das imagens dos interrogatórios que a mim ainda hoje me parecem dispensáveis. Mas compreendo os argumentos e estarei nessa luta ao lado dos meus camaradas de profissão que entenderam o contrário na sua missão de informarem, correndo riscos pessoais e fazendo-os correr às suas empresas, tanto na SIC como na CMTV. Sei, por experiência própria, o que custa estar do lado da notícia contra o sistema politicamente correto que, na prática, protege os criminosos.”
 
Antes de me despedir com uma nota de humor vou ainda referir um debate lateral, este sobre se aqueles interrogatórios devem ou não ser gravados. Fernanda Câncio, do Diário de Notícias, acha que não emAs câmaras ocultas da justiça. Para ela“O direito à imagem está consagrado no artigo 26º da Constituição. É por esse motivo que em qualquer sítio onde haja câmaras - centro comercial, elevador, local de trabalho - há advertência, através de letreiros. No caso, não para que se possam opor, mas para que possam adequar a sua postura ao facto. Se assim é num elevador, tem de ser assim na casa da justiça.” Rui Rocha, no blogue Delito de Opinião, faz em Sexo, mentiras e vídeoo exercício contrário, tratando de mostrar como as agravações dos interrogatórios são importantes para que, no fim, se faça melhor justiça: “A verdade é que a gravação de som e imagem está prevista na lei. E está prevista na lei quer para o interrogatório de arguidos, quer para o depoimento de testemunhas. Mais, atendendo à garantia adicional de imparcialidade que traz ao processo, deve ser esse o modo normal de registo. Quem participa no processo, mesmo que não tenha ido ao cabeleireiro, deve ficar agradado por existir um registo fidedigno do que disse e fez.”
 
A nota de humor com que hoje fecho esta newsletter é de uma coluna de José Diogo Quintela no Correio da Manhã, com o sugestivo título Eu seja ceguinho: “Era preciso mostrar as imagens dos interrogatórios? Depende. Como cidadão e eleitor, diria que sim. Quero saber tudo sobre este grave ataque à Democracia. Já enquanto contribuinte, o que a SIC fez é repugnante. É como mostrar o vídeo do assalto à vítima. Rever o crime de que fui alvo provocou-me Stress Pós-Traumático.”

 
E por hoje é tudo. Despeço-me recordando que o Observador começou hoje a divulgar as condições do seu novo programa de subscrições, fazendo-o através de uma Mensagem dos Fundadorese de um Explicador. Leiam, esclareçam-se e juntem-se a esta comunidade que é cada vez mais numerosa. 
 
De resto, tenham bom descanso e boas leituras. 
 
 
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