O movimento de jovens que tem estado a protagonizar ataques a civis e a enfrentar as Forças de Defesa e Segurança desde Outubro de 2017 na província de Cabo Delgado, particularmente no distrito de Mocímboa da Praia, e terá contribuído para a morte de centenas de pessoas, é denominado Al Shabaab. Porém o sheik Saide Habibe, co-autor de um estudo apresentado em Maputo, desfez o equívoco de “pensarmos que é uma extensão do grupo radical da Somália, porque os métodos são similares”. O académico João Pereira, outro co-autor, de certa forma corroborou a versão governamental de “terroristas” e revelou que a ala militar do grupo foi treinada no Congo, Tanzânia, Quénia e Somália e pretende apenas criar “instabilidade na Região para permitir o negócio ilícito no qual as suas lideranças estão envolvidas”.
Enquanto o Governo de Filipe Nyusi reagiu com violência ao terror que se vive em vários distritos da província de Cabo Delgado desde 5 de Outubro de 2017, enviado as Forças de Defesa e Segurança, os académicos João Pereira e Salvador Forquilha acompanhados pelo líder religioso islâmico Saide Habibe foram aos distritos de Mocímboa da Praia, Macomia, Chiúre, Pemba e posteriormente a província de Nampula, tentar descobrir os factores que contribuíram para os conflitos que duram até hoje e poderão continuar naquela Região durante mais tempo.
A primeira constatação é que o grupo instalou-se há vários anos na zona Norte da província de Cabo Delgado, primeiro como um movimento religioso constituído maioritariamente por jovens muçulmanos oriundos não só do distrito de Mocímboa da Praia mas também de distritos circunvizinhos. Porém os autores do estudo que não é conclusivo, ainda, apuraram que em finais de 2015 o movimento passou a incorporar células militares.
Falando nesta terça-feira (22) em Maputo, na Universidade Pedagógica, o sheik Saide Habibe disse que inicialmente o grupo era conhecido como Ahlu Sunnah Wa-Jammá, termo árabe que significa “adeptos da tradição profética e da congregação”, e contestava o islamismo que as comunidades locais praticam.
“Inicialmente a população local denominou este grupo de Al Shabaab, e isto pode levar-nos a um equívoco e pensarmos que é uma extensão do grupo radical da Somália, porque os métodos são similares”, todavia o líder muçulmano caracterizou os membros do grupo. “Eles não levam os seus filhos as escolas formais porque é um pecado, andam munidos de armas brancas para simbolizar a jihad, que muita gente traduz com guerra Santa mas na verdade é uma palavra árabe que simplesmente significa esforço. Eles não aceitam dialogar com as estruturas administrativas locais, não aceitam dialogar com ninguém”.
“Para muitos destes jovens o grupo representa também uma oportunidade de desafiar as autoridades locais”
O estudo constatou que a base social do grupo, “são jovens socialmente marginalizados, sem emprego formal, sem escolarização, grande parte desses jovens são da etnia Kimwani”.
“No início eram vendedores informais nos mercados, são jovens imigrantes de outros países como Tanzânia, Somália e região dos Grandes Lagos que chegaram a zona na busca de oportunidades. Embora esses jovens sejam muçulmanos moçambicanos mas têm um cordão umbilical com a Tanzânia, é mais fácil eles aceitarem um teólogo que vem da Tanzânia para dar aulas do que aceitarem um teólogo moçambicano formado em Moçambique. Portanto estamos a falar de líderes religiosos, maioritariamente jovens, formados fora do país e que não tinham espaço dentro das mesquitas locais. Estes jovens primeiramente começaram a entrar em conflito com as lideranças religiosas locais, passam a considerar as mesquitas como qualquer coisa menos mesquita. E eles criam as suas próprias mesquitas. Outros eram homens de negocio locais que controlavam o comércio dos produtos de 1ª necessidade bem como de material de construção civil”, pormenorizou o sheik Saide Habibe.
Para os autores do estudo o que facilitou o recrutamento de jovens “são as condições sociais degradantes (pobreza, desemprego) exclusão social, carência de serviços básicos (Educação e Saúde), isso constata-se naquelas zonas”.
O sheik Habibe revelou que contribuiu também para adesão ao movimento: “a Exclusão política dos kimwani em relação aos Macondes, isso vem desde o tempo colonial, facto que explica a popularidade da Renamo entre eles. Para muitos dos jovens o grupo representa uma oportunidade de realização de sonhos, o grupo representa uma nova família e dá uma sensação de solidariedade e segurança”.
“Estes jovens começam a sentir-se marginalizados e procuram ganhar espaço, só que esse espaço é ocupado pelas lideranças tradicionais e encontram no Al Shabaab uma oportunidade para poderem se realizar. Para muitos destes jovens o grupo representa também uma oportunidade de desafiar as autoridades locais, oportunidade para construir uma nova ordem social e política”, constatou.
“Numa primeira a fase o grupo tinha uma estrutura baseada em células, geridas pelas lideranças religiosas do grupo. Eles tem uma disciplina em que a ordem do líder máximo é como se fosse uma revelação, cumpre-se cegamente. As células eram relativamente autónomas e com cadeias de comando flexível”, esclareceu o líder religioso muçulmano que é co-autor do estudo.
Perseguidos no Quénia, desceram a procura de espaço mais para Sul e chegaram a Cabo Delgado
João Pereira, professor na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), precisou que: “as células deles variam entre 10 a 20 pessoas, e conseguem multiplicar-se num distrito para 20 ou 30 células, diziam-nos fontes locais que só no distrito de Mocímboa da Praia eram pelo menos mil jovens que estavam directa ou indirectamente ligados a essas mesquitas e que operavam nas redes informais. Uma outra fonte disse-nos que só na vila (de Mocímboa da Praia) os Al Shabaab tinham cerca de 350 fiéis”.
“Eles tem uma liderança muito complexa, existem várias células, cada uma delas com a sua própria liderança” declarou Pereira, que é professor de Ciência Política, aclarando que: “Não há um comando dentro da Mocímboa da Praia, o comando é feito por outras células que estão espalhadas na zona de Kibiti na Tanzânia e nos distritos circunvizinhos (Nangade, Palma), é muito difícil ver onde está a chefia”.
Entretanto o Saide Habibe detalhou as formas como os jovens foram recrutados, de forma directa: “que é através da rede familiar, laços de casamento, grupos de amigos e nas mesquitas; e indirecta, através do uso de material vídeo usado por movimentos radicais no Quénia e na Tanzânia”.
O estudo apurou que uma das grandes referências foi um clérigo muçulmano de origem queniana de seu nome Aboud Rogo, mas que foi abatido pelas autoridades do Quénia por alegadas ligações com movimento Al Shabaab da Somália, que nunca se confirmaram.
Os seguidores Aboud Rogo, perseguidos no Quénia, começaram “a descer a procura de espaço mais para Sul, entraram na Tanzânia na zona de Kibit e quando o governo tanzaniano começou a apertar o cerco parte destes entrou em Cabo Delgado, através da Mocímboa da Praia, e aí começam, sob pretexto de criar mesquitas e ensinar a religião, começam a recrutas jovens”.
Os membros deste movimento “tem uma grande ignorância em relação ao Alcorão e a tradição profética”
De acordo com o estudo a criação da ala militar resulta de “uma certa resistência por parte dos líderes religiosos locais e dos sectores conservadores, a própria comunidade muçulmana em Moçambique rejeitou-os” Na Região dos Grandes Lagos os jovens são treinados por milícias, contratados pela rede Al Shabaab da Tanzânia, Quénia e Somália “os jovens eram convencidos que iam ganhar bolsas de estudo, mas quando lá chegavam a situação era de treino militar” declarou Habibe que destacou que “para os jovens viajar para a Somália ou a Tanzânia para irem aprenderem estas actividades criminosas é superior a peregrinação à Meca, momento mais alto da vida de qualquer islão”.
Para além do treino nos países vizinhos o estudo constatou que na província de Cabo Delgado muitos jovens foram treinados por um experiente agente da Polícia da República de Moçambique e dois agentes da guarda fronteira, expulsos das suas função, que em troca de dinheiro garantem a formação das células militares.
“O grupo não possui uma doutrina muito bem elaborada, porque são jovens que pouco conhecem acerca da religião islâmica e é por isso que eles não aceitam o diálogo. Porque num debate eles não tem argumentos” revelou Saide Habibe que mencionou uma situação ocorrida na cidade de Nampula, onde um das células foi avistada a passar pelas machambas quintais sem pedir permissão. “O conselho de teólogos de Nampula perguntou-lhes porque fazem isso e eles disseram que o Alcorão diz que a terra pertence a Deus e toda ela deu as sua criaturas, esquecendo o próprio Alcorão respeita a propriedade alheia”.
O líder muçulmano que é co-autor do estudo não tem dúvidas que os membros deste movimento “tem uma grande ignorância em relação ao Alcorão e a tradição profética. Mas tem propaganda baseada na recuperação dos valores tradicionais do islão, para o grupo o islão actualmente praticado nas mesquitas locais está degradado por isso eles entram nas mesquitas calçados e munidos de armas brancas, acabando por criar os seus próprios espaços de culto”.
“Apregoam o não reconhecimento da estrutura do Estado e a implantação da sharia da maneira como eles concebem. Acabar com a relação do Estado com as lideranças das mesquitas e impedir a educação formal das crianças e substituí-la por uma educação corânica, mudar atitudes e comportamentos das mulheres em termos de indumentária, para eles qualquer muçulmano, principalmente aqueles líderes religiosos estão na linha de fogo, são principais alvos deles”, aprofundou Saide Habibe.
Al Shabaab moçambicano “não tem o objectivo final a ocupação de Cabo Delgado ou a criação de um estado islâmico no Norte do país”
O estudo, que não apresenta conclusões, determinou que o dinheiro que financia este movimento “vem principalmente de duas fontes, actividades ilícitas (madeira, carvão vegetal, marfim, rubis) mas também há doações de fora e de dentro. As doações de fora vem de pessoas com ligações às lideranças do grupo em Mocímboa da Praia, as transferência de valores monetários são feitas por via electrónica (m-pesa, m-ksh, m-mola)”.
Esse dinheiro serve para “sustento pessoal dos membros e das suas famílias, financiamento das viagens dos líderes espirituais da Tanzânia para Cabo Delgado, aliciamento para recrutamento de novos membros (através de empréstimos para financiar negócios), financiamento da propaganda do grupo (reprodução de vídeos), compra de armamento nas redes informais interna e externa”.
Para dar uma ideia dos rendimentos que este movimento obtém em negócios ilícitos João Pereira referiu que operadores madeireiros entrevistados para o estudo relataram que o Al Shabaab corta ilegalmente madeira que lhes custa em Macomia 200 a 250 meticais mas conseguem vende-la até por 3 mil meticais. “Por semana, segundo informações recolhidas junto de um madeiro que trabalha com o grupo, eles cortam 50 mil pranchas por semana, o que dá uma perda para o Estado de 3 milhões de dólares norte-americanos por semana”.
“Nos rubis o Estado perde uma fortuna de 30 milhões de dólares ano, tudo controlado por este movimento que está naquela zona. Na questão do marfim também se perde, porque tem ligações aos chineses e vietnamitas, mas tudo controlado por interesses das elites não só locais mas também da Tanzânia, Somália, Quénia, China e com rede no comércio ilícito a nível global”, revelou o docente da UEM.
Pereira enfatizou que este Al Shabaab moçambicano tem dois objectivos. “O primeiro é criar uma situação de instabilidade na Região para permitir o negócio ilícito no qual as suas lideranças estão envolvidas. O outro, é a partir desses negócios ilícitos alimentar outras redes que eles têm ligação, por exemplo os comandos das milícias no Congo, na Somália, no Quénia e na Tanzânia”.
“Não tem o objectivo final a ocupação de Cabo Delgado ou a criação de um estado islâmico no Norte do país, o objectivo é criarem oportunidades de negócios das elites informais daquela Região de Cabo Delgado, pelo menos os dados dizem isso. Segundo alimentar os interesses regionais e internacionais desses negócios ilícitos, esses é que são os objectivos imediatos” declarou o co-autor.
“Para além dessa reacção militar é preciso uma acção de inteligência”
João Pereira disse ainda que o estudo não conseguiu apurar o número de vítimas desde a escalada do conflito em finais de 2017. “De acordo com os depoimentos que recolhemos alguns dizem mais do que 500 pessoas, outros falam em 1500, outras dizem que mais de 350 casas foram queimadas pelas tropas governamentais na perseguição dos grupos, referem uma quantidade significativa de mulheres que terão morrido num ataque que foi feito pelas tropas, porque os Al Shabaad usaram essas mulheres e crianças como escudos humanos”.
Mas embora tenham a noção que “a situação actual é de medo e de pânico, muita das vezes as pessoas nem sabem muito bem o que vai acontecer amanhã, nem os próprios militares (governamentais). Há relatos de populares que quando vão às machambas são recrutados, os homens são mortos”, o académico afirmou que a equipa irá regressar ao Norte de Cabo Delgado pois muito ainda precisa de ser aprofundado até que existam conclusões.
Em jeito de recado para o Governo de Filipe Nyusi, o professor de Ciência Política disse que os autores do estudo defendem: “que para além dessa reacção militar é preciso uma acção de inteligência, que significa conhecer bem os contextos, as dinâmicas, os grupos, os actores, ver bem quem são os que beneficiam dentro das políticas do Estado e depois e como esses que não beneficiam podem beneficiar de políticas que ajudem a sair do estado de pobreza e marginalização em que vivem”.
Fonte: Jornal A Verdade, Moçambique
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