E ao quinto dia mudou o comandante operacional. Vítor Vaz Pinto, comandante distrital de Faro, deu o lugar ao comandante nacional no combate ao fogo de Monchique numa altura em que, provavelmente, o pior já tinha passado, mesmo que o fogo continuasse a lavrar. Porquê a substituição? E porquê só ao fim de cinco dias num fogo para o qual estão mobilizados mais de mil operacionais, centenas de viaturas e dezena e meia de aeronaves? E, já agora, esse Vítor Vaz Pinto não é o mesmo Vítor Vaz Pinto que foi comandante nacional e acabou por ser afastado em 2012 depois dos erros cometidos no combate a um incêndio na região de Tavira, como recordou o jornai i («Eu enganei-me» reconheceu na altura)? E terão razão os que, nas redes sociais e com aparente conhecimento de causa, recordam os seus erros passados?
Primeira vaga de calor, primeiros dias de Verão a sério, e logo voltámos a ter de enfrentar fogos de enorme dimensão com o que, à hora a que escrevo este Macroscópio, ainda lavra na região de Monchique e Portimão. Primeiro grande incêndio e primeiras perguntas que ficam por responder, como as que enunciei no primeiro parágrafo. Dúvidas reforçadas por algumas críticas à coordenação de meios que nos chegaram do terreno (como o relato pela SIC de que terá havido Bombeiros dizem que estiveram cinco horas parados em Monchique).
Neste momento a área ardida chega a 20 mil hectares, já nos contaram que houve dezenas de militares forçados a dormir no chão (o que nos fez recordar uma história contada este fim-de-semana no Expresso, a de que o comandante Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro (GIPS) – a força da GNR que tem a cargo a prevenção e o combate aos fogos rurais – foi substituído cinco dias após ter revelado falta de condições, isto é, de ter enviado aos seus homens uma mensagem onde escrevia, por exemplo, que “Passamos a contar com cerca de 1070 militares, mas não temos (...) capacetes, cogula [máscara de proteção], luvas e farda, nem viaturas. (...) Rádios, telemóveis, computadores, impressoras, não existem (...); camas, armários, mesas e cadeiras, não há”). Também esperamos por mais e melhores esclarecimentos sobre as denúncias dos Produtores florestais que insistem em responsabilizar o Governo por falta de investimento).
Talvez venhamos a ter de novo uma CTI (Comissão Técnica Independente), talvez não, até porque, desta vez, o fogo foi grande, os feridos numerosos, mas não se registou ainda nenhuma morte. Por isso, enquanto vamos ouvindo algumas intervenções da especialistas, como Xavier Viegas (Especialista defende uso de químicos nos incêndios) ou Carlos da Câmara (Incêndio em Monchique era "desastre anunciado"), ou enquanto recordamos que Monchique era o concelho que vinha à cabeça daquele identificados pelo Centro de Estudos Florestais (CEF), do Instituto Superior de Agronomia (ISA) como sendo aqueles onde era maior o risco de ocorrer um grande incêndio (um estudo apresentado pelo Observador em Maio passado no especial O mapa dos concelhos que podem arder este ano, que reproduzia o mapa que recordo acima), reuni nesta newsletter alguns apontamentos que me pareceram interessantes, conhecendo sobretudo a competência dos seus autores.
Começo pelo arquitecto paisagista Henrique Pereira dos Santos, sempre muito interventivo e directo nestas alturas, e que falou esta terça-feira na SIC, conversa de que a esteção selecionou este apontamento onde ele defende que o abandono rural é o principal problema dos incêndios.
Se quisermos compreender melhor a ideia de como a dinâmica dos incêndios se relaciona como a evolução do nosso mundo rural então devemos ler Os fogos, a lei e a economia, publicado no Jornal Económico precisamente no dia em que este grande incêndio se iniciava. Eis um ponto importante da argumentação, que toca numa das feridas que por regra se prefere ignorar: “O que temos de saber é que se queremos ter uma gestão do fogo que nos sirva, como sociedade, então não nos podemos desresponsabilizar atirando para os proprietários obrigações que manifestamente não podem ser cumpridas por serem economicamente inviáveis. Se queremos uma gestão sensata do fogo, temos de alterar a doutrina de combate, sim temos, temos de integrar o fogo em vez de o tentar suprimir, sim temos, mas acima de tudo temos de ter a plena consciência de que nos cabe a nós, os beneficiários, pagar a gestão dos serviços de que queremos beneficiar, às pessoas e actividades económicas que estão disponíveis para os prestar, por um preço justo. (...) Somos nós, o leitor e eu, que temos de perder o amor a alguns euros e remunerar justamente o trabalho de terceiros que nos faz falta.”
(Já agora recordemos que foi precisamente em Monchique que o primeiro-ministro foi, no início de Junho, visitar o Centro de Meios Aéreos de Monchique, altura em que, como se relata no site do Governo considerou que “Limpar os matos dos terrenos deve ser uma rotina, tal «como ir regularmente ao médico, fazer a revisão ao automóvel ou por ar nos pneus»”. Como se deduz da referência anterior, o problema dessa rotina é que sem actividades económicas que a paguem ela nunca será... uma rotina.)
Já no blogue em que habitualmente escreve, Henrique Pereira dos Santos voltou a argumentar contra aquilo que classifica de “eucaliptofobia” num texto, Monchique, eucaliptos e espantalhos, onde recorda como os fogos naquela serra chegaram lá muitos anos antes dos eucaliptos: “O facto de em 1966, em que Monchique quase não tinha eucalipto, ter ardido tanto ou mais que neste último fogo, o facto de ter ardido larga e violentamente em 1983, 1991, 2003 e, agora, em 2018, independentemente da cobertura florestal e dentro do que é previsível para a região (um retorno do fogo em torno de 15 anos), o facto de em 2004 e 2012 ter ardido violentamente o Caldeirão (mais ou menos 80% em sobreiro no primeiro, e dominantemente em sobreiro se considerarmos a árvore dominante, mas sobretudo esteva, no segundo), não demove o coro da alucinação eucaliptofóbica que tem dificuldade em perceber que se arde em Monchique, que tem muito eucalipto, arde eucalipto, mas que se arde no Sabugal (como no ano passado), que tem muito carvalhal, arde carvalhal.”
De resto foi também através deste texto que chegou a um post (já com três dias) no Facebook de Henk Feith, gestor florestal da Altri, que faz uma tentativa de compreender o que se está a passar naquela serra, nomeadamente se avança com uma hipótese de explicação para a velocidade a que o fogo avançou: "Até ontem há hora de almoço arderam 2500 ha, em 48 horas, o que dá numa média de 52 ha/hora. Desde então arderam estimadamente mais 15 mil ha, que dão uma média de 625 ha/hora. O que se passou então? Na minha modesta opinião: o fogo andou nos primeiros dois dias nos densos eucaliptais a Norte de Monchique. Depois passou para sul da estrada para Alferce e entrou no esteval seco que caracteriza a área até Odelouca. Daí a diferença de velocidade do fogo: bosques densos e mais húmidos de eucalipto contra vegetação arbustiva seca."
Este tipo de análises terá de ficar para mais tarde, como já referi, mas não resisto a reproduzir uma imagem partilhada por Paulo Fernandes (professor da UTAD e que integrou a Comissão Técnica Independente), imagem que divulgou (acima) acompanhada pela seguinte nota irónica: Todos os modelos estão errados mas alguns são úteis. O meu modelo infelizmente acertou. É caso para dizer que acertou mesmo em cheio: com base nas precisões meteorológicas e naquilo que eram as condições no terreno, calculou que a probabilidade de Monchique arder neste vaga de calor era muito elevada, em mais uma demonstração de que há conhecimento nas nossas universidades – o mesmo tipo de conhecimento que já colocara Monchique como o concelho de mais alto risco, como referi atrás.
Acho por isso útil fazer também referência a mais dois documentos que Paulo Fernandes partilhou nos últimos dias, documentos que não têm relação directa com este fogo mas ajudam a perceber o que está em causa:
- Pyrotragedies – a critical retrospective on the wildfire situation in Europe during July 2018 é um texto publicado num blogue do Le Monde por um especialista que escreve sobre a mais recente vaga de fogos na Europa e que faz uma interessante sugestão: “The real question is if the governments in Greece or in Portugal will learn something from these “pyrotragedies”? The 1949 Landes Forest Fire with is high dead toll of 82 people killed by the fire, – provide a real shock in France – and after this shock France has made an enormous effort of systematic planning and construction of system of “Defending Forest against Wildfire” – “Défense de la forêt contre les incendies (DFCI)” – which is now considered being one of the most effective “Anti Forest Fire Defence System” of the world. Perhaps someone should write down the history of the establishment of the French anti forest fire defense system, – as I know this has never been done – because this was not only success story, but the French responsible were able to learn from their different “failures”– and that is very important.”
- The role of fire-suppression force in limiting the spread of extremely large forest fires in Portugal é um trabalho científico de uma equipa liderada pelo próprio Paulo Fernandes que analisou centenas de fogos e que valoriza a importância da rápida contenção dos fogos por comparação com a deslocação de meios de combate massivos. Pequena passagem do abstract deste papper: “To minimize the area burned by extremely large fires (ELF, >2500 ha), management and operational improvements leading to faster containment are recommended, rather than higher fire-suppression resourcing; more effective identification and exploration of containment opportunities are preferable to the accumulation of suppression resources.”
Fecho a minha lista de sugestões de hoje com um texto de Pedro Vieira de Almeida editado no Público, Mudança cultural não é mandar limpar matos, onde também se regressa ao problema do custo de uma política dificilmente repetível todos os anos, apesar de a lei a isso obrigar: “Quando o Estado impõe aos proprietários florestais os custos da desmatação e desarborização em redor de habitações alheias, não está a seguir princípios de eficácia, de eficiência e de equidade. Por um lado, essa obrigação não se baseia em estudos estratégicos de prevenção, nem existe a garantia de execução face ao absentismo. Por outro lado, beneficia free-riders, i.e., os proprietários das habitações e vizinhos isentos dessas operações. E mesmo se fosse eficaz, manter-se-ia a iniquidade, pois quem faz a limpeza nem sequer é compensado por esse serviço (a criação de uma externalidade positiva e a redução de uma negativa) com a agravante de perda de rendimento potencial.”
Estou certo que, quando as chamas se apagarem e o rescaldo ficar concluído, haverá uma análise mais profunda daquilo que permitiu deste fogo que muitos esperariam que não acontecesse (mas que todos os que conheciam as condições da serra de Monchique, da sua vegetação, da acumulação de combustíveis em 15 anos sem fogos e viram chegar o calor e o vento sabiam que era quase inevitável acontecer). Nessa altura cá estaremos de novo. Por agora desejo bom descanso e boas leituras a todos os leitores, especialmente ao que estiverem de férias.
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