sábado, 16 de fevereiro de 2019

Macroscópio – ADSE, um conflito que revela muito sobre a saúde que queremos

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
O anúncio pelos maiores grupos privados que operam na área da saúde que vão deixar de trabalhar com a ADSE gerou o tipo de reacção pavloviana que em Portugal, na política, se pensa que resulta sempre: “são pressões dos malvados dos privados para aumentarem os seus lucros”. PCP, Bloco e Governo fizeram coro, ao mesmo tempo que asseguravam que tudo se resolveria. Desta vez porém este discurso chocou com uma dificuldade: 1,2 milhões de beneficiários da ADSE que sabem que quando vão a uma consulta da especialidade num hospital privado pagam 3,99 euros, menos do que os 5 euros de taxa moderadora que o comum dos mortais paga na consulta generalista de qualquer centro de saúde. Na prática 1,2 milhões de beneficiários que descontam dos seus salários e pensões para terem as vantagens da ADSE e não podem senão ficar inquietos quando leem as notícias de que essas consultas, a esse preço, podem acabar já no próximo mês de Abril. Em plena guerra com os enfermeiros e com inúmeras outras frentes abertas, já que todos os dias há notícia de serviços qua falham no SNS, o conflito entre a ADSE e os grupos hospitalares privados tem um condimento adicional: sem que isso seja referido, em causa também está o próprio modelo de SNS. Daí que valha a pena reflectirmos um pouco sobre o que se está a passar.
 
Como é habitual nesta newsletter, começo por indicar aos meus leitores as fontes essenciais de informação, em concreto um conjunto de três artigos que ajudam a perceber o conflito:
 
Para enquadrar o conflito é bom conhecer duas tomadas de posição de Óscar Gaspar, um socialista que preside à associação da hospitalização privada, e que ainda antes do conflito evoluir para as posições mais radicais da última semana fazia apelos ao diálogo e a algum equilíbrio nas negociações.
  • Num artigo de opinião no Jornal de Negócios, O dinheiro da ADSE é dos beneficiários da ADSE, Óscar Gaspar, depois de recordar os acórdãos do Tribunal de Contas, defendeu as vantagens da autonomia daquele sistema de saúde relativamente ao SNS: “Discuta-se a sustentabilidade e as formas de continuar a garantir o acesso a cuidados de saúde diferenciados e de qualidade ao invés de se ceder à tentação de instrumentalizar a ADSE em prol da gestão do SNS. Não esqueçamos que está em causa a prestação de cuidados de saúde a um milhão e 200 mil portugueses. De portugueses que descontam dos seus salários 574 milhões de euros por ano para ter acesso a melhores condições de saúde. Ponto.”
  • Já numa entrevista ao Público procurou contrariar a ideia de que os privados dependem sobretudo deste subsistema de saúde, sublinhando que a ADSE vale 18% da facturação dos privados e “a tendência será para se reduzir”. Nessa conversa também explica como decorriam (ou não decorriam...) as negociações, defendendo que “Todos ganharíamos se as regras fossem mais claras e transparentes. Um exemplo: não percebemos por que é que a tabela dos actos da ADSE não é a tabela da Ordem dos Médicos. A ADSE chega a ter duas tabelas diferentes consoante o acto é feito no regime livre [em que os beneficiários recorrem a qualquer médico e são reembolsados] ou convencionado [rede de operadores com convenção com a ADSE]. Isto não faz nenhum sentido e alavanca a contestação de saber se o acto foi praticado na sua integralidade ou não.”
 
Mas porventura o texto mais importante e mais completo sobre a ADSE não aborda directamente o actual conflito, mas explica detalhadamente como nasceu e evoluiu este sistema de saúde, como é financiado, que vantagens e desvantagens tem, assim como que desafios enfrenta. Trata-se do ensaio de Mário Amorim Lopes no Observador ADSE: uma alternativa ou um complemento ao SNS? Nele não só se procura responder a questões como as colocadas logo no arranque – “A ADSE é paga por todos os contribuintes? Dá prejuízo ou lucro? Põe em risco o Serviço Nacional de Saúde? E é sustentável no futuro?” – como se assume claramente que, para os funcionários públicos mais bem pagos este sistema pode sair mais caro do que um sistema de saúde privado – “As contribuições mensais para a ADSE para os escalões mais elevados de rendimentos são significativas. Por igual montante (superior a 100€/mensais) existem seguros de saúde privados muito competitivos.”
 
É contudo a reflexão final deste ensaio que coloca o dedo na ferida: “Tudo ponderado, num contexto de um SNS sob enorme pressão, a funcionar muito acima da sua capacidade e com visíveis restrições ao acesso, como filas e listas de espera, e ausência de investimento na manutenção e na construção de novas unidades de saúde, torna-se inevitável questionar se a ADSE não poderá ser um mecanismo para incorporar a capacidade instalada dos prestadores privados e sociais no contexto de um sistema de saúde alargado – que vê na prestação de cuidados de saúde de qualidade e de acesso universal o seu principal desiderato, independentemente de estes serem prestados pelo sector público ou pelo sector privado e social.” Eu diria que este é o debate escamoteado por trás deste conflito, o debate entre um sistema de saúde tendencialmente estatizado em que sistemas como a ADSE não teriam lugar e o sector privado seria residual ou um SNS mais aberto, em complementaridade descomplexada com o sector privado, assegurando ao mesmo tempo universalidade e liberdade de escolha.

 
Reuni a seguir alguns dos textos de opinião saídos nos últimos dias sobre este conflito, textos onde este último texto não deixa de estar presente mas onde também se analisam outras incidências, como a potencial impopularidade de uma ruptura da ADSE em ano eleitoral. Eis alguns dos textos eu me pareceram merecedores de nota:
  • As guerras da saúde fazem sentido?, de Rui Ramos, no Observador, é dos que mais directamente confronta aquilo que designa de “ideologia do SNS”, segundo a qual “a saúde pública tem de ser toda estatizada, de uma ponta à outra, porque a saúde, como coisa básica, seria incompatível com qualquer “negócio”. Só que isso tem consequências: “Na cínica “ideologia do SNS” não temos qualquer preocupação com a saúde, mas um projecto de domínio da sociedade pelo poder político e ainda um cálculo eleitoral partidário. Hospitais e escolas públicas empregam, nas sociedades ocidentais, uma enorme força de trabalho.  Quem a puder clientelizar, terá uma massa eleitoral muito interessante. Foi sempre o plano deste governo.”
  • Em Não são os privados o problema da ADSE Bruno Faria Lopes citicou no Jornal de Negócios a “forma fácil” como a política tratou “de traduzir o conflito negocial entre a ADSE e os grupos privados de saúde: a culpa é dos "privados que só pensam no lucro". Fê-lo expondo muitos dos erros cometidos pelo Estado na administração da ADSE, como neste exemplo: “Foi a má gestão da ADSE, com influência directa da política, que permitiu a desatualização cada vez maior das tabelas de preços convencionadas com os prestadores privados. Esta inércia negocial - com o intuito de empurrar más notícias para os beneficiários com a barriga - levou à falta de transparência que a ADSE agora denuncia com vigor: os privados carregam no custo de alguns serviços para compensar outros que, por vezes, nem estão contemplados na tabela.”
  • Em A ministra incendiária eu próprio, no Observador, analisei o comportamento recente de Marta Temido, em especial a forma como não soube compreender esta crise: “A forma como o Ministério está a lidar com o tema da ADSE ilustra bem o que ali se pensa. Estas declarações da ministra são mesmo de uma transparência arrepiante: começa por dizer que a denúncia das convenções por vários grupos privados “não a preocupa por aí além”, justificando-se dizendo que “qualquer utente tem sempre acesso ao Serviço Nacional de Saúde”. É não ter noção do país em que vive. Primeiro: os beneficiários da ADSE descontam 3,5% dos salários ou pensões para terem acesso àqueles serviços diferenciados, se for para irem apenas aos hospitais do SNS cancelam o desconto; segundo: se esses beneficiários aceitam suportar esse custo é porque veem nele vantagens que não querem perder, vantagens associadas às convenções que a ministra está a enviar borda fora; terceiro: se os beneficiários da ADSE se transferirem para o SNS a procura aumentará 10%, o que criará uma crise ainda maior do que a actual e gerará novos encargos não orçamentados. Mesmo assim a ministra não se preocupa.”
  • Também no Observador Pedro Braz Teixeira, em A guerra da ADSE será paga em Outubro deu-se ao trabalho de ilustrar com exemplos práticos como o fim das convenções pode revoltar os beneficiários do sistema e virar-se politicamente contra o governo: “Um doente que tenha sofrido um AVC poderá ter de passar cerca de quatro meses numa clínica de recuperação, com um custo de 4 mil € por mês, com 80% de comparticipação da ADSE. Hoje em dia, pagaria 800€ por mês, um valor elevado, mas relativamente gerível. A partir de Abril, o doente tem que passar a pagar 4 mil € por mês e esperar nove meses para o receber (se os prazos forem semelhantes aos da CUF). Se a estadia na clínica for de quatro meses, como é que consegue pagar 16 mil €? Vai para casa mais cedo, num 2º andar sem elevador, preso em casa por não conseguir descer nem subir escadas, por não ter ainda concluído a recuperação? O que é que este doente – e a sua família – vão pensar sobre a ideologia que destruiu os benefícios anteriores da ADSE?”
  • Finalmente, no Jornal Económico, Alexandra Almeida Ferreira sustenta que A arrogância do Governo pode custar-nos caro e lembra que a força dos grupos hospitalares privados não é a mesma dos desamparados contribuintes quando acossados pela Autoridade Tributária: “Está na altura de o Estado aprender a negociar fora do pedestal da autoridade, com uma ADSE que trata os privados como a Autoridade Tributária trata os contribuintes. É que ao contrário dos impostos, os privados sobrevivem sem o Estado, mas o Serviço Nacional de Saúde colapsa sem aqueles. Uma vez que hoje qualquer funcionário público pode sair da ADSE, as seguradoras cá fora estão disponíveis para os receber. Os funcionários públicos vão descobrir o que custa a qualidade do serviço de saúde que receberam até agora. E esperemos que este Governo não dê mais uma machadada na qualidade do nosso SNS. Porque, esse, já o pagamos todos os meses e a peso de ouro.”
 
Infelizmente não creio que este conflito se resolva facilmente – tal como não me parece que a greve dos enfermeiros acabe na próxima segunda-feira, como decretou a ministra esta sexta-feira à noite. A tensão está a aumentar, não a diminuir. Mas pode ser que o fim-de-semana traga novidades – por enquanto deixo-vos com estas sugestões de leitura e votos de bom descanso.

 
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