quinta-feira, 30 de maio de 2019

Sociedade | E se as câmaras produzissem e distribuíssem energia? Isso podia reduzir incêndios e combater a desertificação do interior


Rodrigo Mendes | MadreMedia

29 mai 2019 12:47

Trabalha com a Geografia e o Direito e quer trazer para Portugal um projeto que, diz, pode ser a solução para a desertificação do interior e para o défice energético do país.

A ideia é reinventar o ordenamento do território com base em projetos de geração de energia produzida e distribuída pelas câmaras municipais, o que pode ajudar Portugal a resolver o problema da pobreza energética ao mesmo tempo que o do povoamento do interior, evitando ainda os incêndios florestais.

Esta é a proposta do advogado e geógrafo brasileiro Luiz Ugeda, um dos oradores da Conferência Ibero-americana de Energia, que começa amanhã em Lisboa.

Com 20 anos de experiência no setor elétrico brasileiro - trabalhou nas distribuidoras de energia de São Paulo (Eletropaulo) e do Rio de Janeiro (Light) e na agência reguladora de energia elétrica brasileira (Aneel) -, Luiz Ugeda acredita que o défice energético português pode ser reduzido com projetos combinados de energia solar e de biomassa que utilizem os resíduos de madeira tão comuns nos campos e matas nacionais.

Ao lado de outras duas investigadoras, Geana de Miranda Leschko e Safira de La Sala, Ugeda irá apresentar na Coniben, este ano subordinada ao tema “Sustentabilidade e Transição Energética: novos rumos do setor da energia”, um trabalho que mostra o que têm em comum os casos do Brasil, Espanha e Portugal.

E dá o exemplo: “A Câmara de Barcelona, que iniciou a sua operação em julho de 2018, tem sido uma grande referência neste tema. Estima-se que a energia gerada em Barcelona chegue para servir 20 mil famílias na área metropolitana". A iniciativa já está a inspirar outras municipalidades espanholas, como Cádiz e Pamplona. Agora, diz o sócio da Geodireito, falta um projeto-piloto em Portugal. Há interessados, há conhecimento e técnica, resta saber se há vontade política.

Está a fazer um doutoramento em Geografia na Universidade de Coimbra, o que o ajudou a fazer o levantamento das necessidades do país. Isso, e a experiência que traz do Brasil, foi o que o levou a reinventar uma política de ocupação do território? 

A ideia não é exatamente reinventar, mas talvez olhar o território de forma a ter um sentido de unicidade. Ou seja, de maneira a não se fazer a tradicional distinção entre capital, interior, zonas urbanas, zonas rurais, mas sim pesando o território de forma integrada. Penso que a palavra mágica é coesão territorial. Essa coesão fica muito comprometida quando se tem índices demográficos decrescentes; é como se fosse um telemóvel sem bateria: tem todas as funcionalidades disponíveis, mas não tem a energia necessária para o fazer trabalhar. O que precisa ser repensado é como trazer a de volta para o telemóvel. A premissa maior, aqui, é como podemos requalificar o território para o tornar coeso, integral.

E como é que isso se faz?

O que temos destacado, e é uma experiência que observamos na América do Sul do século XIX, é que não se ocupam territórios sem gente, sem demografia. Nessa época, os países da América do Sul, como o Brasil, a Argentina ou a Venezuela, brigavam pelos melhores imigrantes. Estes países precisavam de deixar de ser países de cabotagem, precisavam de ocupar o seu interior. E para isso era preciso gente, mas não qualquer tipo de gente, pessoas que estivessem dispostas a aceitar e a integrar aquela realidade. É possível observar inúmeros exemplos no Brasil - e no Brasil já republicano, pós 1889 -, com a criação de Belo Horizonte, fundada em 1898, Goiânia, em 1933, ou o grande projeto que foi Brasília, uma capital planeada, a primeira do mundo, exatamente para deslocar população para o interior. Foi uma forma de dizer: é aqui que o Brasil tem de se centrar a partir de agora e daí encadear o seu ordenamento de território. Foi um grande projeto de ordenamento territorial, foi necessário criar instâncias para falar com os indígenas, para, entre aspas, ladrilhar o território forma coesa. O que refletimos, neste momento, é que a Europa tem índices de demografia negativos - este não é um problema exclusivamente português, é um problema europeu - e tem de se espelhar em exemplos que ocorreram pelo mundo fora para tentar reorganizar o seu território tendo em vista as questões demográficas, que vão bater em várias outras, como a da segurança social, a das terras que ardem em Portugal praticamente todos os anos, e por aí adiante. Alocar pessoas às regiões é uma forma de proteger o território e o blindar a riscos naturais.
  
Para as pessoas quererem fixar-se no interior tem de haver desenvolvimento ou, se preferir, bem-estar, qualidade de vida. O que propõe?

O desenvolvimento virá a partir do momento em que forem compreendidos os objetivos de Portugal, por exemplo, em termos de política de imigração. A grande questão, e que talvez precise de destacada, é como aliar política de imigração a ocupação do interior. A partir do momento em que se consegue criar polos de atração no interior, é possível reverter a situação. Os aceleradores podem ser mão-de-obra qualificada, por exemplo.

É advogado, trabalha na área da energia, qual a proposta que traz para Portugal?

O Brasil tem uma rica experiência de geração de energia a partir de biomassa, produz muitos resíduos, principalmente bagaço da cana de açúcar. Existem em Portugal alguns estudos sobre o aproveitamento de biomassa, ou seja, restos de árvores ou a flora que, de certa forma, serve de rastilho e provoca as terras ardidas. Alguns empresários brasileiros têm olhado para a interioridade de Portugal no sentido de identificar, dentro do conhecimento e da perceção que o Brasil tem do ordenamento do território e do uso dos recursos naturais pela agroindústria, oportunidades para desenvolver o interior. E o que vemos no imediato é que Portugal vive uma situação de pobreza energética - existe uma procura reprimida neste segmento - ao mesmo tempo que o interior está desertificado. O que temos percebido também é que existem iniciativas de câmaras municipais fora de Portugal no sentido de produzirem e comercializarem a sua própria energia elétrica, o que lhes dá também uma sinalização financeira diferente. O que temos feito é um brainstorm a partir de uma nuvem de palavras que temos percebido: demografia, pobreza energética, interioridade, ordenamento do território. Quando começamos a correlacionar estes temas, percebemos que pode ser alguma coisa interessante para Portugal: requalificar o interior, produzir energia, gerar riqueza.

A Geodireito representa interesses concretos. Há pessoas que querem desenvolver estes projetos em Portugal?

Sim. Como sempre há portugueses que querem desenvolver projetos no Brasil.

A experiência que tem é do Brasil e de Espanha. Portugal tem outra dimensão. O modelo que pretendem desenvolver é replicável aqui? 

Portugal é um país de média dimensão no contexto europeu - é 40 vezes maior do que o Luxemburgo. Gosto muito da expressão utilizada pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa de que Portugal é uma plataforma: para a Europa, para África, para a América Latina... Na verdade, o que aqui se procura é construir pontes. Existe uma oportunidade de requalificar o interior de Portugal através de um modelo que pode ser aplicado em Espanha, em Portugal, na Grécia ou em África ou no Brasil e noutros países da América Latina. E essa possibilidade pode ajudar Portugal inverter a sua curva demográfica, outro grande desafio. Se se conseguir fazer isso produzir riqueza no interior via setor elétrico e via setor agroindustrial, melhor.

Já teve conversas sobre esta matéria com algum governante português?

Ainda não. O que temos são estudos empresariais que identificam as melhores áreas, os municípios mais propensos a instituir uma política destas.

E quais são?

Portugal, mesmo sendo este país pequeno no contexto global, tem diferentes geografias: um Alentejo muito mais plano e uma região do Doutro e Minho muito mais acidentada; um Alentejo que tem uma regularização de propriedades muito maior e um norte de Portugal com problemas fundiários significativos. O que queremos em primeiro lugar é desenvolver um projeto-piloto e mostrar como seria na prática, a sua funcionalidade, e então passar a mensagem para a sociedade. Queremos, em primeiro lugar, ver como é que conseguimos ancorar o projeto de uma forma segura e com qualidade em Portugal.

A legislação portuguesa tem entraves? Quais são os principais obstáculos?

Não temos visto na legislação impeditivos que vetem a iniciativa nesse sentido. O setor elétrico português é maduro, tem empresas muito bem instituídas e organizadas. Portugal é reconhecido mundialmente como um dos países de vanguarda nas energias alternativas, mas tem a questão da biomassa, que é uma lacuna quando observamos a grandeza das outras energias. Quando olhamos para o interior e vemos vazio, acreditamos que esta pode ser uma solução, uma alternativa bastante interessante a equacionar. Foi isso que o Brasil fez com os grandes projetos hidroelétricos na Amazónia. O que aconteceu na região de Taipu, fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, foi um desenvolvimento gritante.

Já tivemos outros projetos de centrais de produção de biomassa, até financiados com dinheiro comunitário, e não tiveram esse efeito.

Um país tão próximo quanto a Espanha tem mostrado que é possível: existe algo semelhante ao que pretendemos fazer em Barcelona e em municípios mais pequenos também. No Brasil brincamos, dizemos que o nosso campo é mais sofisticado do que as nossas cidades. Porque esta visão de ruralidade leva muita tecnologia para o campo, agregamos esse valor. Hoje, qualquer um pode ser gerador e consumidor de energia ao mesmo tempo. Isso muda a geografia do sistema elétrico e impõe que os países tenham sistemas muito robustos de informação geográfica para poder viabilizar as redes inteligentes que estão por trás - no Brasil há medidores inteligentes para saber o que está a ser produzido e consumido em cada ponto. De certa forma, o setor elétrico também vai a ter uma lógica muito algorítmica, de revolução 4.0. Neste aspeto, a compreensão de mecanismos geográficos, para saber como é que essa riqueza se vai distribuir no território, vai ajudar até a ter políticas públicas eficientes de reordenamento territorial de reocupação do interior. Acreditamos que as coisas caminham juntas.

E o lóbi EDP, pensaram em como lidar com o assunto?

A EDP também é muito forte no Brasil. É claro que Portugal tem essa característica, a da centralidade da EDP no modelo elétrico português. Mas, como eu disse antes, existe uma procura de geração de energia que é reprimida em Portugal. Não queremos reinventar a roda ou dizer o que deve ser feito, o que pretendemos é disponibilizar o nosso conhecimento e identificar em Portugal parceiros que aceitem fazer um programa piloto, viabilizar um projeto neste sentido. Tecnicamente está tudo muito claro, a lógica do planeta já indica as melhores áreas. Mas para este tipo de construção acreditamos que a variável política e institucional é muito relevante.

É isso que vai dizer amanhã na Conferência Ibero-americana de Energia?

Vamos usar o exemplo do Brasil, de Portugal e de Espanha e correlacionar estes três modelos regulatórios, bastante diferentes entre si, e identificar as virtudes e os desafios de cada um deles. É possível trocar experiências e a nossa provocação é muito centrada nas câmaras municipais: como é que as câmaras municipais podem ser agentes ativos do processo energético e, num cenário de pobreza energética, passar a produzir energia, em vez de apenas consumir, reforçando também a sua capacidade económico-financeira e contribuindo para povoar o interior. O desafio é político: como será isto na realidade portuguesa, em que existe uma grande empresa nacional, e como ajudar os municípios a entrar neste circuito. Quando se fala em pobreza energética, fala-se dos Planos Diretores Municipais, que precisam de códigos de obras mais eficientes, por exemplo. Tem de haver uma convergência de fatores.

O projeto-piloto tem determinadas características. O que implica em termos práticos?

Existem duas frentes, a agro e a da co-geração. Quanto às culturas existentes, o céu é o limite. Mas aí virão também outras questões, desde logo ligadas à segurança alimentar: vamos plantar energia em detrimento de alimento? Tudo isto tem de ser discutido. No Brasil, a equação é mais simples, por causa da produção de cana-de-açúcar: parte vai gerar álcool, parte vai para gerar açúcar e o bagaço vai para a caldeira para gerar energia. A mesma logística gera três bens. Em Portugal não no interior uma cultura com estas características, e acreditamos que é por isso que isto não foi feito antes. O eucalipto é uma cultura de longa maturação, sete anos, não é como a cana-de-açúcar, que tem três, às vezes quatro colheitas por ano. Então, há que pensar como adaptar o modelo a um ciclo longo, uma conta que ainda não está feita. Tem de haver uma cultura longa que viabilize este tipo de empreendimento. Mas temos no Brasil profissionais que podem olhar para esta realidade e dizer outros tipos de cultura que cabem aqui. Paralelamente, em Portugal há a questão da gestão energética pelos municípios, é necessário criar esse diálogo entre o local e o nacional. E é isso que queremos ajudar a fazer.

Fonte:24.sapo

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