Por Júlio Roldão *
Menos de cem anos depois de um horrível crime ocorrido numa aldeia serrana do Norte do país, o assassínio de uma jovem mulher queimada viva por outras mulheres que diziam acreditar estar a jovem possuída pelo diabo, menos de cem anos depois deste horrível crime (que deu origem à obra de Bernardo Santareno "O Crime da Aldeia Velha"), um pouco mais a Sul, mas ainda em Portugal, uma menina de três anos terá sido torturada até à morte por três adultos que dessa forma pretenderiam forçar a mãe da vítima a pagar uma suposta dívida de 400 euros.
Em 1953, vinte anos depois do crime da "Aldeia Velha" (assim citado para não recordar o verdadeiro nome da aldeia), em plena ditadura do chamado Estado Novo, um regime sem liberdades e com censura ao que se escrevia, o assassínio, numa fogueira inquisitorial, de uma jovem mulher, ainda era falado com horror na região onde ocorreu. Guardei este testemunho directamente de minha mãe, que, vinda do Sul, fixou-se a Norte, em 1953, numa pequena cidade relativamente perto dessa aldeia velha.
Também o assassínio da menina de três anos, notícia actualmente dominante nos variados espaços informativos dos canais de televisão em Portugal, corre o risco de ficar gravado na memória dos nossos pesadelos. Estranhamente, ambos os casos estão embrulhados numa névoa de obscurantismo que toca universos de bruxarias - a vítima de 1933 era vista como bruxa, filha de bruxa, e a principal suspeita de ser a autora do crime de 2022 será bruxa de profissão e terá participado no assassínio da menina de três anos para forçar a mãe da menina a pagar uma dívida por uma "consulta" de bruxaria.
Foi isto que passou, até à exaustão, em longas emissões em directo dos vários canais de televisão portugueses que reportaram o cortejo fúnebre da menina, e é isto que está a passar à porta do tribunal onde os suspeitos começaram a ser ouvidos e poderão vir a ser julgados. Tudo isto com recolhas de testemunhos, sempre não editados, mesmo quando são testemunhos que potenciam os sentimentos mais primários que casos como estes inevitavelmente provocam.
Por muito que me custe admiti-lo, a linha informativa que está a marcar o caso da menina assassinada para forçar a mãe a pagar uma suposta dívida contraída numa suposta consulta de bruxaria também é desinformação. Quase um século depois do Crime da Aldeia Velha e quase meio século depois de Portugal ter começado a viver em Democracia.
Júlio Roldão, jornalista desde 1977, nasceu no Porto em 1953, estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes e pelo Círculo de Artes Plásticas, tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.
Por Júlio Roldão *
*Jornalista desde 1977
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