A
sua pergunta é de uma assustadora simplicidade. Mas receio que todas as
tentativas de descobrir uma resposta através apenas da análise dos poemas de
Pessoa seja de uma simplicidade ainda mais horrorosa. Quem escreve, sabe que um
poema reflecte um segundo de necessidade, pelo que respeita apenas a um segundo
de certeza no que se sente.
Primeiro.
Pessoa sentiu? Penso que sentiu demasiado. Aliás, são várias as referências a
esse sentir excessivo das coisas, em prosa, poesia e mesmo em cartas. O sentir
excessivo nasce da consciência apurada da sua própria condição e, por
acréscimo, da consciência exacerbada do próprio mundo em que vive. Relembre-se
o que ele diz no Livro do Desassossego: “Feliz , pois, o que não pensa, porque
realiza por instinto e destino orgânico
o que todos nós temos de realizar
por desvio e destino inorgânico ou social”. Quem pensa, sente
excessivamente, não as emoções – já irei a esse ponto – mas o peso de haver
emoções, de haver outras vidas e outras almas, um destino e um fim.
Segundo.
É verdade que a impressão marcante de todas as passagem que começam com: Estás…
ou Tens… ou ainda Deves… soam a ensinamentos. Nada mais errado. Pessoa fala – e
isso ó dolorosamente óbvio – para si próprio, quando encena educar alguém. A
segunda pessoa urge-o à deslocação que ele tanto apreciava para um patamar,
superior ou inferior é indiferente desde que não ele próprio, para que lhe
fosse mais fácil achar o equilíbrio da reflexão. Surge isto da dificuldade que
todo o pensador sente em ser o seu próprio objecto de pensamento. Ocorre-me um
paralelismo com a física quântica, que desde os anos 20 do século XX enuncia o
principio que é impossível observar uma partícula elementar sem a influenciar e
por isso mesmo influenciar as suas propriedades. Então andava ele perdido? É
talvez sensato perguntar quem não anda perdido… Talvez quem não ande perdido,
apenas lhe falta a consciência de que nunca verdadeiramente se preocupou em
procurar.
Poemas
e passagens que reflectem estados de espírito sombrios, que falam em sonhos que
eles mesmo falham, traduzem a realidade novamente dolorosamente óbvia de alguém
que pensa demasiado e que demasiadamente deixa repousar na esperança vaga do
futuro a resolução de todos os problemas presentes. Vem daqui uma crença cega
no destino, que a meu ver governa tudo o que ele poderia esperar da sua vida
exterior, visto que a sua vida interior estava já há muito com um destino
traçado, mesmo que por mãos que não as suas. Além do mais, falhar na vida, não
é falhar no espírito, falhar na missão.
Terceiro.
Ophélia. Quem já gostou de alguém poderá dizer sem grandes hesitações que esse
gostar é um antídoto preferencial para qualquer dor. A alegria de amar apaga o
sofrimento de não ser amado. Pessoa é um ser iminentemente extirpado de
sentimentos vitais quando encontra Ophelia. Não interessa analisar a vertente psicológica desse encontro. Certo é que ele convivia com a solidão mais ou
menos pacificamente quando a encontra. Cabe aqui a ressalva de que esta
convivência com a solidão nada mais é que uma paz podre, uma compreensão, como
aquela que se tem do medo. Quem conhece a solidão durante um período da sua
vida, tem a facilidade tenebrosa de a suportar, isto se resistir a ela durante
esse período. O mesmo acontece com o medo, ou com o sofrimento físico.
As
cartas de amor são lúcidas? Embora seja difícil de dizer com certeza, parece-me
que são tudo menos lúcidas. Certo é que Pessoa abraçou Ophelia como parte da
sua vida, acompanhava-a, escrevia-lhe, dedicava-lhe atenção e sobretudo tempo,
tempo precioso que ele sempre achava pouco para a sua missão. Mas Ophelia,
revitanlizando os seus sentimentos vitais, exteriores, vai literalmente puxá-lo
do escuro em que vive, fá-lo dirigir o seu poder de sonhar para ela, para um
futuro com ela. Claro que, dependendo das forças de ambos, o desfecho será previsível.
Será o amor que se sente por necessidade um
amor fingido? Ou todo o amor não é uma necessidade, mesmo não fingida? Talvez
seja mais claro o egoísmo, quando o amor é preciso porque nunca o tivemos
antes. É mais complexa e ao mesmo tempos simples uma possível explicação para o
amor de um homem que não podia amar alguém. É que depois da viagem interna,
demorada e sem luz, permeada por uma solidão extrema, fria, desoladora, é impossível regressar novamente ao calor puro dos outros. A menos que… esse amor
pelo outros seja o fim da mesma viagem ao interior de nós mesmos. Mandou-me uma
imagem de pessoa polícromo, polifacetado. Talvez a mais fiel fosse a de um
triptico, um quadro que se estende por placas, continuas, mas parte do mesma
cena. É de facto apenas um homem e não uma multitude de homens, apenas
multitude de sombras. Um homem fundo no escuro de si mesmo, perdido na medida
em que nos perdemos quando nos tentamos encontrar na solidão, porque caímos no poço de pensar. Ophelia… uma mão quente e suave que baixa da luz lá de cima,
agradável e prazenteira, mas que mesmo assim não faz esquecer o que é já impossível esquecer completamente. Amou? Sim, amou. Mas o amor não foi
suficientemente forte para o salvar.
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