“Tu até podes começar a imaginar a tua cela, como é a comida da prisão, como serão os outros presidiários… Podes fazer isso tudo, mas, no final de contas, não há muita maneira de uma pessoa se preparar para ir para a prisão. A gente tem de ser pragmática em relação ao regime que temos e mentalizar-nos de que vamos voltar para um buraco. Não vou dar aqui uma de herói, mas eu pelo menos estou a mentalizar-me para a ideia de que vou preso. Tenho de me habituar a isso.”
A frase é de Luaty Beirão e foi proferida durante uma entrevista telefónica com João Almeida Dias, do Observador. Nessa altura ainda não era conhecida a sentença do tribunal de Luanda que condenou 17 activistas a pesadas penas de prisão, mas a suspeita de que não se poderia esperar justiça levou a que dela extraíssemos o título do especial: “Estou a mentalizar-me que vou voltar para um buraco”. E voltou mesmo, pois os réusseguiram logo para quatro cadeias diferentes da capital angolana.
A reacção oficial de Portugal foi, como se esperava, moderada e quase inócua – formalizou-a o ministro dos Negócios Estrangeiros (“Confiamos que a tramitação do processo, nos termos previstos na legislação angolana, obedeça aos princípios fundadores do Estado de Direito, incluindo o direito de oposição por meios pacíficos às autoridades constituídas”), depois secundado pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro. Mais veementes foram alguns protestos que saíram para a rua, assim como a generalidade dos comentários na imprensa. Destes destaco uma passagem do texto de Pedro Santos Guerreiro no Expresso:
ão usavam armas, nem tinham milícia, não houve violência, não conspiraram com grandes potências, não roubaram nem roubariam, não mataram nem matariam, não eram terroristas nem bombistas nem letais anarquistas nem raptores nem corruptores nem violadores. Eram ativistas. Eram idealistas. Contra o regime angolano, contra a pobreza dominante entre uma riqueza chocante, contra a voz não ter vez, contra não haver contra. Eram a chispa. Eram. Agora são condenados. Prisão. São 17, culpados por um tribunal por coautoria de atos preparatórios para uma rebelião e atentado contra o Presidente da República, por falsificação de documentos e associação criminosa. Sim, é verdade, é um atentado. À liberdade. Só um regime covarde assim enjaula.
Ao mesmo tempo que, num tribunal de Luanda, o regime tratava de sufocar qualquer hipótese de dissidência, numa morgue da mesma Luanda viviam-se cenas de puro desespero.Rafael Marques esteve lá e relatou-as no MakaAngola, num texto indispensável que o Observador também publicou. Um texto duro por ser tão verdadeiro e tão sentido. Senão reparem: “Vou até às câmaras frigoríficas, ver para crer. Não pergunto nomes, nem causas. Quero apenas vê-los, ouvir, anotar a realidade, estar ali presente. Conto mais de 20 corpos espalhados, a serem lavados ao ar livre pelos familiares, vestidos, aprumados para o adeus final aos entes queridos. No chão, as águas não escorrem. Misturam-se com sangue, com os plásticos abandonados, luvas, máscaras, panos, roupas retiradas dos mortos. Há uma fossa entupida, com águas putrefactas, no mesmo local. “Isso é país! Isso é país! Isso é país!”, vocifera um familiar.”
Esse país é Angola, e lá sabemos que nunca houve liberdade. Liberdade como a concebemos nos nossos regimes abertos e plurais. Ou será que ainda a concebemos. Na verdade, nos últimos tempos, por medo do terrorismo, por medo de ofender os terroristas, por medo de violar as convenções dos polícias do pensamento, ou mesmo por acção deliberada das autoridades, a verdade é que temos vindo a assistir a uma limitação das liberdades, nomeadamente da liberdade de expressão.
Europe’s Free-Speech Apocalypse Is Already Here considerava Suzanne Nossel, directora executiva do Pen American Center, na Foreign Policy. O seu foco neste artigo era o de que “Fears of terrorism and refugees are turning countries like Germany, France, and Spain into surveillance states.” A sua preocupação não era apenas a multiplicação dos sistema de vigilância, era sobretudo as limitações que têm vindo a ser impostas à liberdade de expressão, citando múltiplos exemplos vindos dos quatro cantos da Europa: “That the European impulse to target speech in a moment of crisis may be understandable doesn’t make it any less excusable. With respect to the measures in question — expanded surveillance, curtailment of online hate speech, prosecutions for alleged incitement — there is virtually no evidence to suggest a correlation between banning speech and reducing violence, bettering the treatment of refugees, or any other purported policy goal. Even if you believe that hate speech is part of a causal chain that leads to the commission of hate crimes, there is no evidence that suppressing or punishing such speech dampens the impulse to violence. Instead, these tactics (and their rationale) increasingly reflect a creeping tolerance for authoritarianism.”
Perceber que defender o direito a um “discurso de ódio” é legítimo, ou que blafesmar também o é, ou mesmo ofender, implica uma abertura que mesmo alguns dos que trazem sempre a palavra liberdade na boca não mostram ter. Quem o defende é Maria João Marques hoje no Observador, que reflecte sobre casos bastante diferentes e que vão da intenção do Podemos espanhol de proibir as procissões na semana santa para não ofender os muçulmanos às desventuras de um tuiteiro britânico, passando por um caso que envolve o nosso Bloco de Esquerda emUma manobra de Heimlich para a liberdade de expressão. E nota como nem sempre se actua com equidade, nomeadamente no caso da queixa que um organismo público fez ao DIAP do Porto por Pedro Arroja ter chamado ‘esganiçadas’ às políticas do BE, concluindo que “os opositores políticos do Bloco podem ser insultados, mas, se as meninas frágeis do BE são gozadas, há que usar meios governamentais e judiciais para punir quem teve a ousadia.”
Mas se estes temas animam a discussão sobre os limites da liberdade de expressão, e ainda há quem vá protestando, a verdade é que ao mesmo tempo vamos cedendo espaço ao Estado no que respeita ao controle das nossas vidas. Foi um tema para que chamou a atenção João Pires da Cruz emMinority Report, E.P., também editado no Observador, um texto onde se referia a forma como, através do sistema e-factura, os portugueses estejam a permitir que o Estado fique a saber tudo, ou quase, sobre a forma como vivem e o que consomem: “É chocante a forma mansa como nós, portugueses, estamos a aceitar isto e chocante a forma como o Estado português montou este esquema com concursos de automóveis ou certificados de aforro e, agora, com o acesso às deduções fiscais ser condicionada pela centralização dos padrões de consumo. Não me dás os teus padrões de consumo, pagas! Se isto fosse feito por uma entidade privada, não faltaria sermão e missa cantada pelos deputados mais moralistas. Mas foi feito pelo Estado português, aquela entidade a quem tudo se perdoa. Dos 230 deputados a quem pagamos para defender os nossos interesses, e que montam comissões parlamentares por tudo mais uma bota, não viram nenhum problema nisto. Será muito pedir a um deles que abra os olhos uma vez na vida? Vale tudo para recolher mais uns euros em impostos?”
Noutras paragens não há a mesma brandura, pelo que foi especialmente interessante seguir a disputa entre o FBI e a Apple a propósito de permitir ou não o acesso aos dados encriptados do iPhone de um terrorista. É certo que o FBI lá logrou os seus objectivos, mas sem a colaboração da Apple, que tomou uma atitude que foi aplaudida por especialistas da sociedade digital, como Evgeny Morozov, que no Financial Times escreveu Apple is right. Our smartphones must be kept secure. Faz a defesa deste argumento colocando, por exemplo, interessantes perguntas retóricas: “If Apple can be forced to modify security protocols on its phone, what stops the FBI from asking the manufacturer of the smart smoke detector to trigger a fake smoke alarm? Or asking the manufacturer of the smart car to drive suspects directly to the police station?”
Como vêem, entre um caso que não suscita quaisquer dúvidas, como é o dos activistas angolanos, e casos onde por vezes temos real dificuldade em balancear os valores conflituantes em disputa – mais liberdade ou mais segurança, por exemplo – há muitas frentes onde uma liberdade que dávamos por adquirida parece estar a recuar. Sendo que por vezes isso acontece onde não se esperaria – na Europa – e seguindo caminhos que lembram outros tempos (das décadas negras do século XX) ou outros mundos (de é um bom exemplo o mundo de Putin). O caso que tem dado mais discussão nos últimos meses é o da Polónia. Sobre ele deixo-vos dois textos, um mais jornalístico, outro mais opinativo, com versões contrastantes do que se está a passar:
- A Polish Putin: Autocratic Power Grab Accelerates in Warsaw é uma reportagem da Spiegel onde se relata que “Poland's national-conservative government was quick to sideline the country's high court. Now, Jaroslaw Kaczynski and his party have their sights set on complete control of the state.” Concretizando: “Experts like the Warsaw-based legal expert Rafal Stankiewicz (…) says that in Poland, two "completely independent legal spheres have developed." He defines the "old" sphere as the one based on laws that have been approved by the Constitutional Tribunal, and a new one based on the laws pushed through by the national-conservative parliamentary majority. "I see an erosion of the rule of law in Poland," Stankiewicz says.”
- A Fascist Coup In Poland? Give Us Poles A Break, um artigo de Agnieszka Kolakowska na Standpoint onde se defende a perspectiva contrária, sustentando a autora que as acusações agora feitas ao partido no poder deviam ter sido feitas a quem o antecedeu: “The country was in effect governed by a clique which for the past eight years held the media, the judiciary and the arts in its grasp. The media and the judiciary were independent only in name, something a party calling itself Law and Justice must try to remedy. The aim is to clean up corruption and restore some balance. (…) And they are doing no more, indeed considerably less, than the previous government — a government whose salient feature was its spectacular corruption — did when it came to power eight years ago.”
Terras diferentes, uma questão comum: o que é que está a acontecer à liberdade, à nossa liberdade? O Macroscópio não deixará de regressar a estes debates, mas por hoje é tempo de nos despedirmos. Até amanhã, com votos de bom descanso.
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