Por que o 3° Segredo de Fátima não foi divulgado em 1960?
Em 13 de julho de 1917, Nossa Senhora comunicou aos três pequenos videntes de Fátima uma mensagem que não deveriam revelar a ninguém. Quando interrogados, logo depois da Aparição, sobre o que a Santíssima Virgem lhes tinha dito, responderam que era segredo. De forma que se ficou desde logo sabendo que havia um Segredo na Mensagem de Fátima.Assim fazendo, Nossa Senhora estava obviamente querendo atrair a atenção do mundo para algo muito importante, cujo conteúdo apenas seria tornado público no momento que a Providência divina julgasse oportuno.Tudo isto criou uma auréola de mistério em torno de Fátima e do Segredo, o qual foi crescendo ao longo dos anos e das décadas, ressaltando com isso a importância de seu conteúdo.As duas primeiras partes do Segredo foram divulgadas pela Irmã Lúcia, por inspiração de Nossa Senhora, na terceira Memória, escrita pela vidente em 31 de agosto de 1941. Em 3 de janeiro de 1944, a instâncias do Bispo de Leiria e com a devida permissão da Mãe de Deus, a Irmã Lúcia escreveu a terceira parte do Segredo, que mandou entregar ao Bispo, por meio de portador, em envelope lacrado, com uma nota de que não poderia ser divulgado antes de 1960. O Bispo Dom José Alves Correia da Silva colocou o envelope que recebera da Irmã Lúcia dentro de outro envelope, que por sua vez lacrou e guardou na caixa-forte da Cúria episcopal.Em princípios de 1957, a Sagrada Congregação do Santo Ofício, atual Congregação para a Doutrina da Fé, pediu que o documento fosse remetido a Roma. Para esse efeito, o mesmo foi entregue na Nunciatura Apostólica de Lisboa, de onde o Núncio Mons. Fernando Cento conduziu-o até o Vaticano, quando deu entrada no Arquivo Secreto do Santo Ofício no dia 4 de abril de 1957.Requisitado por João XXIII no dia 17 de agosto de 1959, o Papa recebeu o documento das mãos de um Comissário do Santo Ofício, abrindo-o alguns dias depois pela primeira vez e lendo-o com a ajuda do tradutor português da Secretaria de Estado. Tendo decidido não publicá-lo, devolveu-o ao Santo Ofício.Essa decisão, como era previsível, provocou grande frustração em todo o mundo, dando origem aos mais sensatos ou descabidos vaticínios sobre o conteúdo do Segredo.Os pontífices que se seguiram, Paulo VI e inicialmente João Paulo II, confirmaram tal decisão.João Paulo II, quando foi a Fátima em 13 de maio de 2000, anunciou que o 3° Segredo seria afinal revelado com um oportuno comentário da Congregação para a Doutrina da Fé, o que se deu em 26 de junho do mesmo ano.Nessa data, em sessão solene presidida pelo Cardeal Joseph Ratzinger na Sala Stampa do Vaticano, foi apresentado aos jornalistas credenciados junto à Santa Sé o texto do 3° Segredo, que foi divulgado a partir de então por todo o mundo.Na ocasião, facultou-se aos principais vaticanistas a formulação de perguntas de esclarecimento.Uma dessas perguntas versava precisamente sobre a razão que levou a Santa Sé a frustrar em 1960 a expectativa mundial de que o 3° Segredo seria revelado naquele ano. A resposta do Cardeal Ratzinger é altamente reveladora das graves razões que orientaram a decisão da Santa Sé.Tão importante informação não poderia deixar de ser levada ao conhecimento de nossos leitores. Para esse efeito, pedimos ao nosso colaborador Benoît Bemelmans que entrevistasse a respeito um conceituado especialista no assunto, Antonio Augusto Borelli Machado [foto], do que resultou matéria que explicita os grandes problemas que afligiram a Igreja e o mundo, nesse longo período de 100 anos que decorreram desde as aparições de Fátima.
Embora haja divergências entre os especialistas a respeito do fato do texto divulgado pelo Vaticano corresponder ou não à integralidade do 3° Segredo, publicamos a seguir a entrevista na qual o texto do Segredo é tomado tal qual foi divulgado, sem analisar nem entrar em polêmica com outras posições a respeito.Direção de Catolicismo
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Catolicismo — Em 1960, a expectativa de que fosse divulgado o 3° Segredo chegou ao auge. Mas essa revelação não se deu, provocando grande frustração. Somente 40 anos depois, no fim do milênio, a Santa Sé o publica. Durante a apresentação, jornalistas presentes fizeram perguntas sobre o porquê da demora. Qual a explicação do Cardeal Ratzinger, que presidia a sessão?
Antonio Borelli Machado — Quando foi divulgada essa parte do Segredo, em 26 de junho de 2000, a Santa Sé resolveu fazê-lo com um lançamento de grande aparato publicitário, a cargo da Congregação para a Doutrina da Fé. Jornalistas credenciados junto ao Vaticano foram convidados. Aos presentes foi distribuído um exemplar do opúsculo A Mensagem de Fátima, contendo o texto do Segredo. A sessão foi presidida pelo Cardeal Ratzinger, com a participação de Mons. Bertone, secretário da mesma congregação, e do diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Navarro Vals. Emissoras de TV de diversas partes do mundo a transmitiram ao vivo. Depois das exposições do Cardeal Ratzinger e de Mons. Bertone, o diretor da Sala de Imprensa franqueou a palavra aos jornalistas presentes, para que formulassem perguntas. Dentre estas, três versaram justamente sobre as razões que levaram os Papas a adiar a divulgação do 3° Segredo para exatos 40 anos depois da data esperada. A pergunta mais bem articulada foi a do escritor e vaticanista Gian Franco Svidercoschi [foto abaixo], que foi vice-diretor do “Osservatore Romano”. Sua pergunta (extraída do vídeo da sessão disponibilizado pela Sala de Imprensa) foi a seguinte:
“Eminência: Permito-me falar sobre o porquê do atraso, deste prolongamento da prudência da Igreja de 1960 até hoje. O senhor de algum modo já respondeu, falando justamente da evolução da História. [...] Há também a descrição de Mons. Bertone das decisões diversas tomadas pelos papas, mudadas as situações histórico-políticas. Mas eu lhe pergunto: a Igreja não acabou pagando um preço alto demais por este longo silêncio, este longo segredo sobre o Segredo? No fim das contas, a terceira parte do Segredo não contém já a segunda parte, ao acenar ao bispo vestido de branco? A terceira parte não é afinal senão, digamos, o corolário do que já está dito nas partes precedentes? Este martírio [descrito no terceiro Segredo] já existia em 1960. Não há um modo diferente, por parte da Igreja, não apenas em relação a Fátima, para tomar posição face às revelações privadas — que não afetam o depósito da Fé — e, portanto, poder-se-ia ter evitado provocar toda essa série de instrumentalizações e de escândalos que houve precisamente por causa desse silêncio que durou tanto? Obrigado”.
A isto, o Cardeal Ratzinger respondeu sem hesitação:
“Certamente a decisão dos três Papas de não publicar o Segredo — porque também o Papa atual [João Paulo II], em 1981, não queria publicá-lo — era uma decisão não dogmática, mas prudencial. E se pode sempre discutir sobre a prudência de uma decisão, se politicamente uma outra prudência não teria sido preferível. Portanto, não se deve dogmatizar esta atitude dos Papas. Todavia, considerando retrospectivamente, direi: certamente pagamos um preço pelas especulações que tivemos nestes últimos decênios. Mas, de outra parte, penso que era apropriado esperar um momento para termos uma visão retrospectiva. Em 1960, estávamos no limiar do Concílio, essa grande esperança de poder alcançar uma nova relação positiva entre mundo e Igreja, e também de abrir um pouco as portas fechadas do comunismo. O mesmo ainda no tempo do Papa Paulo VI: ainda estávamos, por assim dizer, na digestão do Concílio, com tantos problemas, que este texto [o terceiro Segredo] não teria tido a sua colocação correta. Idem logo depois do atentado [a João Paulo II]: nesse momento sair imediatamente com este texto não teria produzido, parece-me, a compreensão suficiente. Penso, sem dogmatizar esta decisão, mas pessoalmente com uma sincera convicção, penso que era bem, tudo somado, esperar um pouco o final do século, para ter uma visão mais global, e poder compreender melhor o verdadeiro imperativo e as verdadeiras indicações desta visão”.
Catolicismo — Portanto, o Cardeal Ratzinger reconhece que a revelação do Segredo em 1960 perturbaria políticas muito importantes que a Santa Sé tinha em vista… Quais são essas metas que seriam prejudicadas pela revelação do 3° Segredo nessa altura do século XX?
Antonio Borelli Machado — Três metas políticas e religiosas de primeira importância marcaram a vida da Igreja na segunda metade do século XX, mencionadas sucessivamente pelo Cardeal Ratzinger em sua resposta:
1) O ralliement* da Igreja com o mundo moderno: “essa grande esperança de poder alcançar uma nova relação positiva entre mundo e Igreja”;
* Acordo, adesão.
2) A Ostpolitik vaticana, isto é, o ralliement da Igreja com o comunismo: a esperança “de abrir um pouco as portas fechadas do comunismo”;
3) A implantação das diretrizes do Concílio que visavam promover esse duplo ralliement, e que foram a causa de “tantos problemas” de “digestão” das inovações conciliares pelo mundo católico.
Catolicismo — Em que o 3° Segredo de Fátima colide com essas metas?
Antonio Borelli Machado — O 3° Segredo consiste numa visão em que aparece “um Anjo com uma espada de fogo”,a qual, “ao cintilar, despedia chamas que, parecia, iam incendiar o mundo”. Ora, um mundo que Deus quer punir dessa forma é um mundo que está provocando a rejeição divina… Não era um mundo que autorizasse “essa grande esperança de poder alcançar uma nova relação positiva entre mundo e Igreja”. Portanto, divulgar em 1960 o 3° Segredo teria sido andar na contramão do ralliement da Igreja com o mundo moderno.
Uso aqui a palavra ralliement em referência à famosa política de Leão XIII em relação aos Estados laicos instalados pelo mundo na esteira da Revolução Francesa. Em particular a república laica vigente na França. Como se sabe, aquele pontífice chegou a lamentar, na velhice, o fracasso de suas esperanças*.
* Sobre o ralliement de Leão XIII, veja-se o livro de Plinio Corrêa de Oliveira, Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana, Apêndice III, 3. Leão XIII intervém, pp. 235-239. Livraria Civilização-Editora, Porto, 1993. Ver também Roberto de Mattei, Il ralliement di Leone XIII — Il fallimento di un progetto pastorale, Le Lettere, Firenze, 2014, 366 pp.
No Concílio Vaticano II, influentes Padres conciliares estavam animados por análogo otimismo de promover um ralliement da Igreja com o mundo moderno — em perfeita consonância com o de Leão XIII. Se tivessem consagrado a devida atenção às duas partes do Segredo de Fátima já então reveladas, teriam talvez moderado seu otimismo: basta atentar para a frase “várias nações serão aniquiladas”, contida na segunda parte do Segredo. A revelação da terceira parte em 1960, se difundida amplamente, com os oportunos comentários — pense-se na “grande cidade meio em ruínas”… — poderia abrir-lhes os olhos; ou, pelo menos, fazê-los compreender que a opinião católica não compreenderia tal ralliement, o que possivelmente os inibisse de dar esse passo.
Como os homens da Igreja estavam resolvidos a alcançar, a qualquer custo, essa aproximação com o mundo, tinham que optar pela não revelação do 3° Segredo e pagar o preço do estranhamento que isso produzisse entre os fiéis católicos, como de fato ocorreu.
Catolicismo — Um tão grande castigo a pairar sobre o mundo indica que a conduta da sociedade humana atual está em contradição com os princípios que Deus queria que nela vigorassem. É possível destacar o ponto em que reside essencialmente essa contradição?
Antonio Borelli Machado — Para que o público de nossos dias compreenda a que distância se está da reta ordem das coisas vem a propósito citar um famoso texto de Leão XIII: “Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o sacerdócio e o império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer” (Encíclica Immortale Dei, de 1° de novembro de 1885, n° 28).
Ora, os Estados de nossos dias, em decorrência do laicismo que professam, se sentem desobrigados de ajustar as normas de conduta individual e social aos Dez Mandamentos da Lei de Deus, e de conferir à Igreja “o grau de dignidade que lhe é devido”. Em consequência, vai se implantando mundo afora toda espécie de transgressão às Leis natural e divina, como o divórcio, o aborto, a união homossexual etc.
Assim, o laicismo de Estado, que se proclama neutro em matéria de Religião e de Moral, se revela inimigo obstinado da Igreja Católica e da Moral cristã. E isso é uma constante da História: quem se declara neutro entre a verdade e o erro, na realidade se coloca a favor de todos os erros contra a única verdade. Tal a posição do laicismo em face da Igreja verdadeira.
O laicismo não é neutro em matéria de religião, mas militantemente ateu. E isto o indica Leão XIII, na mesma encíclica Immortale Dei: “Relativamente à religião, pensar que é indiferente tenha ela formas disparatadas e contrárias equivale simplesmente a não querer nem escolher nem seguir qualquer delas. É o ateísmo menos o nome” (n° 37).
O laicismo é, pois, a “não religião” do mundo moderno, isto é, o ateísmo; ateísmo doutrinário e prático, que pervade toda a sociedade. Sobre esta paira a Mensagem de Fátima, que avisa: ou a sociedade se converte e faz penitência, ou virá um Castigo de proporções cósmicas.
Como alimentar “essa grande esperança de poder alcançar uma nova relação positiva entre mundo e Igreja”? — Para as pessoas que estavam animadas de tal esperança, não convinha absolutamente que o 3° Segredo fosse revelado em 1960…
Catolicismo — Quando surgiu na Igreja esse desejo de estabelecer uma “relação positiva” com o mundo?
Antonio Borelli Machado — A palavra mundo aparece nos Evangelhos ora com um sentido genérico, ora para designar os que não aceitavam a pregação de Nosso Senhor Jesus Cristo e se opuseram a Ele. Neste segundo sentido aparece, por exemplo, no Evangelho de São João, nos versículos 18 e 19 do capítulo 15: “Se o mundo vos odeia, sabei que antes odiou a mim” (Jo 15,18). E logo em seguida: “Porque não sois do mundo, [...] por isso o mundo vos odeia” (Jo 15,19).
Esta mesma sina atinge todos os discípulos de Cristo, desde então até os dias de hoje. Donde o fato de a parcela mais tíbia do campo católico tentar arrefecer o ódio do mundo entrando em composição com ele. Está na natureza decaída do homem e por isso se manifestou em todos os períodos da história da Igreja. É só abrir os compêndios para constatá-lo.
Com uma característica fácil de perceber: os que cedem a essa tentação procuram ficar a meio caminho entre a verdade e o erro.
Vamos diretamente aos tempos modernos: Erasmo de Rotterdam (1466–1536), célebre humanista, difundia “um espirito de reação contra a escolástica, de liberdade de pensar e simplificação do cristianismo” *, o que o conduziu a uma tentativa de aproximação com Lutero — fracassada devido ao carácter belicoso deste último. Assim, desde a Pseudo-Reforma protestante e a Renascença, uma corrente de católicos, largamente inspirada em Erasmo, tentava entrar em composição com os erros de sua época.
* Guillermo Fraile, Historia de la filosofía, BAC, Madrid, 1991, 3ª ed., tomo III, p. 74.
A ideia de um reatamento da Igreja com o mundo resultante da Revolução Francesa foi preconizada pelos católicos liberais do século XIX, a partir de Félicité de Lamennais, logo condenado por Gregório XVI (1831–1846).
Pio IX (1846–1878) [quadro acima] compendia os erros do liberalismo católico no Syllabus praecipuorum nostrae aetatis errorum (Silabo dos principais erros de nossa época), de 8 de dezembro de 1864, os quais ele sintetiza na proposição 80: “LXXX. O Romano Pontífice pode e deve se reconciliar e recompor com o progresso, com o liberalismo e com a civilização moderna”.
Observe-se desde logo que a oposição da Igreja não era contra o progresso em si, mas contra o que este trazia de revolucionário em seu bojo, com vistas a demolir o que a sociedade do tempo, já decadente, conservava de bom e de conforme aos princípios da ordem natural e cristã.
A posição firme de Pio IX foi, entretanto, contraposta pelo pontífice seguinte, Leão XIII (1878–1903), que promoveu na França a política de ralliement com a república nascida da Revolução Francesa, à qual se aludiu acima (cfr. 2ª Pergunta). Esse pontífice esperava que tal política, conduzida com obstinada determinação durante todo o seu pontificado, fosse continuada pelos Papas sucessivos. Isso certamente teria acontecido se seu Secretário de Estado, o cardeal Mariano Rampolla del Tíndaro, tivesse sido eleito Papa, como se acreditava. A imprevista eleição do cardeal Giuseppe Sarto, com o nome de Pio X (1903-1914), frustrou a continuidade imediata dessa política.
Ela ressurge de forma já bem definida, em meados dos anos 30, no Pontificado de Pio XI (1922–1939), nas asas do otimismo e da abertura para o mundo propugnada pelo movimento de Ação Católica*. No campo intelectual, alimentavam posição análoga autores muito apreciados nesses mesmos meios da Ação Católica, especialmente Jacques Maritain com seu livro Humanismo integral (1936).
* Cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, Em defesa da Ação Católica, Editora Ave Maria, São Paulo, 1943.
Desde então, a atitude de ralliement com o mundo moderno não deixou de se manifestar claramente nos ambientes católicos liberais, mas só foi publicamente assumida, quase meio século depois, pelo Papa João XXIII (1958–1963). No discurso de abertura do Concílio Vaticano II (11 de outubro de 1962), referindo-se àqueles que “nas presentes condições da sociedade humana, não são capazes de ver senão ruínas e calamidades”, o Pontífice declara: “Mas a Nós parece que devemos discordar inteiramente desses profetas de desgraça, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo” (subtítulo Opportunitas celebrandi Concilii).
Com a promulgação da Constituição Pastoral Gaudium et spes, por Paulo VI (1962-1978), ao final do Concílio (1965), a política de ralliement com o mundo moderno foi afinal decretada e estendida a todo o orbe. A linha pastoral preconizada pela Gaudium et spes não constituíu uma novidade concebida pelos Padres Conciliares do Concílio Vaticano II, mas foi a concretização efetiva de uma “pastoral” já propugnada por Lamennais em 1830!
Desse modo, em vez de prevenir os católicos para o Castigo anunciado por Nossa Senhora em Fátima, o Concílio Vaticano II propôs estabelecer boas relações entre a Igreja e o mundo, auspiciando o advento de uma era de alegria e esperança para a humanidade de nossos dias.
Tal o efeito subliminar produzido simplesmente pelo título dado ao documento conciliar — Gaudium et spes — que exprimia, independentemente de seu complexo conteúdo, as novas e benévolas disposições que o Concílio assumia perante o mundo de nossos dias.
A Mensagem de Fátima, porém, ia num sentido diametralmente oposto!
Catolicismo — Essa noção da vinda de um grande Castigo também não está muito presente nos comentários ao 3° Segredo feitos por estudiosos e pregadores…
Antonio Borelli Machado — Entretanto, ela está presente no principal dos comentadores, que foi certamente o Cardeal Ratzinger…
Com efeito, na interpretação do 3° Segredo por ele feita, e que integra o fascículo A mensagem de Fátima, está dito: “A palavra-chave desta parte do ‘segredo’ é o tríplice grito: ‘Penitência, Penitência, Penitência!’ Volta-nos ao pensamento o início do Evangelho: ‘Paenitemini et credite evangelio’ (Mc 1,15). Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência, da conversão, da fé. Tal é a resposta justa a uma época histórica caracterizada por grandes perigos, que serão delineados nas sucessivas imagens. [...] O anjo com a espada de fogo à esquerda da Mãe de Deus lembra imagens análogas do Apocalipse: ele representa a ameaça do juízo que pende sobre o mundo. A possibilidade que este acabe reduzido a cinzas num mar de chamas, hoje já não aparece de forma alguma como pura fantasia: o próprio homem preparou, com suas invenções, a espada de fogo” (A Mensagem de Fátima, p. 39).
A conclusão é clara: o mundo de nossos dias — o mundo moderno — está posto diante da seguinte alternativa:
a) ou ele se converte, e tal conversão implica abandonar os falsos princípios sobre os quais está constituído, e assim deixar de ser laico, ateu…, “moderno”;
b) ou não se converte, e será reduzido a ruínas pelo fogo.
Na segunda hipótese, sobre suas ruínas se levantará uma civilização nova, que São Luís Maria Grignion de Montfort nomeava como o Reino de Maria (Tratado da verdadeira devoção, n° 217) — em perfeita consonância com a Mensagem de Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará” (2° Segredo).
Catolicismo — Poder-se-ia dizer que este é o ponto central da Mensagem de Fátima?
Antonio Borelli Machado — Exatamente. A iminência de um grande Castigo.
Muitos pregadores imaginam que, anunciando-o, assustariam seus ouvintes, e assim não o fazem. Ora, a missão dos profetas tem sido frequentemente de convocar o povo à penitência, anunciando castigos.
Se forem ouvidos, o castigo se desviará. Se não forem ouvidos, o castigo se desencadeará.
É uma questão de fidelidade a Nossa Senhora anunciar a Mensagem de Fátima na sua inteireza.
Na verdade, há um ponderável número de almas que, por si mesmas, formaram a noção do desconcerto do mundo moderno, e de que, sem uma intervenção extraordinária da Providência, esse mundo não tem conserto. Tais almas cultivam, no segredo dos seus corações, a esperança dessa intervenção e se sentiriam confirmadas ao ouvir o mesmo diagnóstico dos lábios dos pastores da Igreja.
Não é, pois, de temer que almas assim se assustassem com a profecia do Castigo; pelo contrário, exultarão com o prenúncio da vitória do bem sobre o mal. Como o profeta Simeão ficou consolado ao ver o Messias nos braços da Santíssima Virgem: “Agora, Senhor, podeis deixar partir o vosso servo em paz, porque os meus olhos viram a vossa salvação” (Lc 2, 29-30).
O fato é que, sem a menção do Castigo, a Mensagem de Fátima fica esvaziada do seu caráter específico para os dias de hoje. Não se compreende que o ponto nuclear dessa Mensagem seja omitido.
Os pregadores não devem, pois, temer que seus ouvintes se assustem. Para uns será a confirmação do que pensavam, e uma consolação! Para os que ficarem sobressaltados, servirá de advertência, quiçá de ocasião, para abrirem suas almas à graça de Fátima.
Também não basta dizer — como muitos fazem — que a Mensagem de Fátima, pelo fato de pregar a oração e a penitência, está em perfeita conformidade com o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. É verdade, e é bom que o digam. Mas é preciso ademais ressaltar a enormidade do Castigo que pende sobre o mundo. Só assim um grande número de almas será movido a uma penitência séria. E só assim poderão constituir as pedras vivas do Reino de Maria que virá!
Catolicismo — Com referência ao comunismo, o uso da palavra ralliement pode parecer excessivo. Não se poderia dizer que a Ostpolitik vaticana visava apenas minorar as perseguições desencadeadas pelos governos comunistas? O Cardeal Ratzinger fala expressamente em “abrir um pouco as portas fechadas do comunismo”.
Antonio Borelli Machado — Trata-se de um processo. No início, a Ostpolitik parece apenas uma distensão, uma cessação de hostilidades. Em seguida, a distensão se transforma num convívio normal. Por fim, desfecha na cooperação para uma finalidade comum. Mas essa finalidade não é escolhida de comum acordo: é a que interessa ao parceiro comunista. Com isso, produz-se, na parte católica, um abandono paulatino de princípios inalienáveis, que entram em olvido, sendo substituídos na prática pelos princípios e metas do inimigo. É o resultado do processo de baldeação ideológica inadvertida, como o denomina Plinio Corrêa de Oliveira*.
* Cfr. Baldeação ideológica inadvertida e diálogo, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1974, 5a ed.,118 pp. [capa à esquerda] Ver também, do mesmo autor, Acordo com o regime comunista: para a Igreja, esperança ou autodemolição (publicado originalmente em Catolicismo, n° 152, sob o título A liberdade da Igreja no Estado comunista), Editora Vera Cruz, São Paulo, 1963,128 pp.
O secretário-geral do partido comunista espanhol, Santiago Carrillo (1915-2012), questionado por alguns “camaradas” se a colaboração com os católicos não mudaria o conteúdo ideológico do partido, respondeu com uma pergunta: “Desde que começamos esta política, quantos camaradas vocês conhecem que se tornaram crentes? Por outro lado, quantos católicos se tornaram comunistas?” *. Pergunta que dispensou resposta…
* Santiago Carrillo, Mañana España, Colección Ebro, Paris, 1975, p. 232.
Essa distensão fora inaugurada por Maurice Thorez (1900-1964), em célebre pronunciamento na Rádio Paris, em 17 de abril de 1936, no qual propôs aos católicos, em nome do Partido Comunista Francês, a politique de la main tendue *.
* Cfr. Maurice Thorez, Oeuvres, Éditions Sociales, Paris, 1954, tomo XI, p. 203.
A proposta encontrou, da parte do Papa Pio XI, viva repulsa, expressa na encíclica Divini Redemptoris, sobre o comunismo ateu, em 19 de março de 1937. Esse documento sucedia a outro — a encíclica Mit brennender Sorge, de 15 de março de 1937 — que condenava as perseguições sofridas pela Igreja da parte do Reich alemão, sob o regime nazista. A quase simultaneidade dos dois documentos — apenas quatro dias de diferença — faz pensar que a intenção foi evitar que se alegasse que, condenando um sistema, não se condenava o outro. Na verdade, nazismo e comunismo eram duas faces da mesma moeda socialista, contra as quais o Pontífice alertava simultaneamente as fileiras católicas.
Não obstante, a proposta de Thorez fez seu caminho nas hostes católicas. Foi disso manifestação inequívoca o surgimento, bem mais tarde, de uma corrente teológica de índole marxista, contra a qual advertiu a Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação, da Congregação para a Doutrina da Fé, de 6 de agosto de 1984, assinada pelo Cardeal Ratzinger.
No âmbito diplomático, cumpre assinalar outra manifestação importante de ralliement: a chamada Ostpolitik vaticana.
O Cardeal Agostino Casaroli, Secretário de Estado da Santa Sé sob o pontificado de Paulo VI e condutor dessa política, declarou em 1974, quando esteve em Cuba, que os católicos desse país se consideravam felizes sob o regime ali vigente. Era uma maneira clara de indicar que tal política visava a “queda das barreiras ideológicas” entre Igreja e comunismo*.
* Cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas — Para a TFP: omitir-se? ou resistir?, Catolicismo, n° 280, abril de 1974.
Essa distensão dos católicos face ao comunismo se desenvolvia em duas frentes. A frente propriamente diplomática — indicada pela palavra Ostpolitik — e a frente pastoral, expressa, no Concílio Vaticano II, pela Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo deste tempo, mais conhecida pelas suas palavras iniciais Gaudium et spes, à qual já nos referimos (cfr. 5ª Pergunta). Por deste tempo entenda-se o mundo moderno, pois a Exposição introdutória desse documento é intitulada precisamente Da condição do homem no mundo hodierno.
Tal abertura da Igreja ao comunismo não passou despercebida aos próceres do partido. Assim, Roger Garaudy (1913-2012), elemento de destaque do Partido Comunista Francês (do qual depois foi excluído por suas posições independentes, tendo aderido ao islamismo, após uma passagem pelo protestantismo e pelo catolicismo), escreveu em livro: “A grande novidade do Vaticano II — expressa no texto Gaudium et Spes, de 1966 [sic! é de 1965] — era a abertura ao mundo, a renúncia à pretensão de governá-lo, para, pelo contrário, servi-lo, à luz da humildade evangélica, reconhecendo ‘a autonomia das realidades terrestres’. [...] Em nenhum outro lugar do mundo, a não ser na América Latina, esta mensagem sobre a missão libertadora da Igreja teve eco maior. Partindo de uma situação histórica de miséria e de opressão, e das práticas concretas das ‘comunidades eclesiais de base’, nasceram desta dupla experiência, a partir de 1970, as teologias da libertação. Elas se baseavam na opção evangélica preferencial pelos mais desprovidos” *.
* Roger Garaudy, Intégrismes, Pierre Belfond, Paris, 1990, pp.50-51.
Hoje é sabido que João XXIII desejava imperiosamente que nessa Magna Assembleia estivessem presentes representantes do Patriarcado de Moscou. O governo soviético russo concordou em dar autorização para que a Igreja Ortodoxa Russa enviasse esses representantes, com a condição de que o Concílio se abstivesse de qualquer condenação do comunismo. O Papa aceitou essa condição*.
* Cfr. Roberto de Mattei, Il Concilio Vaticano II — Una storia mai scritta, Lindau, Torino, 2010, pp. 172-180, 360-364, 422-426, 492-504, 512-514, 563-567, 580-588.
Esse fato explica que a petição de 213 Padres conciliares em sentido oposto — isto é, de que o Concílio condenasse os erros do marxismo, do socialismo e do comunismo* — não tivesse sido levada em conta nem por João XXIII nem por Paulo VI.
* Cfr. Catolicismo, n° 157, janeiro de 1964, p. 5.
A Gaudium et spes limitou-se a uma análise ultracompreensiva das diversas formas de ateísmo (GS n°s19, 20 e 21), análise essa que desfecha numa declaração de que “credentes et non credentes” “devem contribuir para a reta edificação deste mundo no qual vivem em comum”, “o que certamente não pode ser feito sem um sincero e prudente diálogo” (GS n° 21).
Mas é possível haver “um sincero e prudente diálogo” com dirigentes ateus de um Estado laico assanhado contra a Igreja, como a Gaudium et spes descreve logo na frase seguinte?: A Igreja “deplora, portanto, a discriminação entre crentes e não crentes, que alguns governantes, não reconhecendo os direitos fundamentais da pessoa humana, introduzem injustamente” (GS n° 21).
Como imaginar, pois, que esses governantes se prestassem a colaborar para uma “reta edificação deste mundo no qual vivem em comum”? — Era uma esperança frustra, como provaram os 50 anos decorridos desde então.
Portanto, não é excessivo o uso da palavra ralliement para indicar que a Ostpolitik vaticana visava efetivamente obter a colaboração dos ateus comunistas para uma obra comum.
O 3° Segredo de Fátima nos apresenta uma imensa fileira de leigos católicos de todas as condições sociais, precedidos por Papa, bispos e sacerdotes, religiosos e religiosas, que sobem uma escabrosa montanha, no cimo da qual são recebidos a tiros e setas por um grupo de soldados. Esta cena evoca os pelotões de fuzilamento de regimes comunistas…
Tal lembrança teria sido inoportuna em tempos de ralliement com o comunismo!
Assim, se revelado em 1960 e oportunamente comentado, o 3° Segredo levantaria dificuldades para tal política. Seus mentores consideraram mais seguro não divulgá-lo.
Catolicismo — Que consequências acarretou para a vida da Igreja essa abertura ao mundo moderno?
Antonio Borelli Machado — Consequências muito graves, pois eliminou as barreiras que protegiam os fiéis da contaminação dos erros do mundo moderno. Com efeito, a queda das barreiras ideológicas entre a Igreja e o mundo teve como resultado precisamente levar os fiéis a abdicarem de princípios inalienáveis da doutrina católica — o que, em consciência, não poderiam fazer — e a assumirem em larga escala o modo de pensar e de agir do mundo, exacerbando todos os problemas que a pastoral da Igreja tem de enfrentar em nossos dias.
Esta consequência, aliás, não escapou ao olhar solerte do Cardeal Ratzinger. Eleito Pontífice no Conclave de 2005 [foto ao lado], em importante discurso à Cúria romana por ocasião da apresentação dos votos natalícios, em 22 de dezembro desse mesmo ano, advertiu: “A questão torna-se mais clara se, em lugar do termo genérico ‘mundo de hoje’, escolhêssemos um outro mais preciso: o Concílio devia determinar de modo novo a relação entre Igreja e idade moderna. [...] Quem esperava que com este ‘sim’ fundamental à idade moderna todas as tensões se dissolvessem e a ‘abertura ao mundo’ assim realizada transformasse tudo em pura harmonia, subestimou as tensões interiores e até as contradições da própria idade moderna: subestimou a perigosa fragilidade da natureza humana que, em todos os períodos da história e em toda configuração histórica, é uma ameaça para o caminho do homem. [...] Também em nosso tempo a Igreja continua sendo um ‘sinal de contradição’ (Lc 2, 34). [...] Não podia ser intenção do Concílio abolir esta contradição do Evangelho em face dos perigos e dos erros do homem”.
Ora, tivesse o 3° Segredo sido entendido e orientado as opções da Hierarquia da Igreja, ter-se-ia evitado que os fieis se contaminassem com os erros do laicismo dos Estados modernos.
Catolicismo — Como afinal se chegou à divulgação do 3° Segredo?
Antonio Borelli Machado — O Papa João Paulo II fora vítima de um sacrílego atentado à bala em 13 de maio de 1981, no próprio dia em que se comemorava a primeira aparição de Nossa Senhora em Fátima. Essa coincidência obviamente levava o mundo católico a se perguntar se havia alguma relação entre o atentado e as profecias de Fátima. É compreensível que o próprio Pontífice deitasse especial atenção no 3° Segredo. Assim, ainda no Policlínico Gemelli, no qual esteve entre a vida e a morte, logo que pôde pediu para ver o Segredo. A associação entre o atentado que sofrera e o martírio de um Papa nele descrito era impressionante, embora não absoluta, uma vez que no Segredo o Papa morre e ele havia sobrevivido. O que não o impedia de crer que tivesse havido uma intervenção miraculosa da Virgem, desviando de órgãos vitais a trajetória do projétil, o qual foi mais tarde entregue aos responsáveis pelo Santuário de Fátima e encastoado na coroa da Imagem ali cultuada.
O tema Fátima não era estranho ao Pontífice, pois ele fora um dos 510 signatários da petição a Paulo VI para que aproveitasse a presença dos bispos de todo o orbe em Roma, por ocasião do Concílio, para fazer a consagração da Rússia e do mundo ao Imaculado Coração de Maria. Esta consagração havia sido pedida por Nossa Senhora como penhor da conversão daquele país comunista e da suspensão dos castigos que pendem sobre o mundo moderno.
Recuperado dos efeitos do atentado, João Paulo II fez repetidas vezes a consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria. A que mais se aproximou das condições requeridas por Nossa Senhora foi a de 25 de março de 1984, na qual, porém, constrangido pelas travas da Ostpolitik vaticana, não pronunciou o nome da Rússia, embora — segundo declarou — a tivesse incluído mentalmente na consagração.
Restava por fim a questão da divulgação do Segredo. Diz o ditado que “Roma não tem pressa”. Porém, como evidenciou Svidercoschi em sua pergunta ao Cardeal Ratzinger, citada no início, especulações sensacionalistas sobre o seu conteúdo deixavam inquieto o povo fiel e constrangida a suprema direção da Igreja.
Foi assim que, em dezembro de 1999 — dezoito anos depois do atentado — João Paulo II resolveu autorizar a sua publicação, encarregando o Bispo de Leiria-Fátima de anunciar que o Segredo seria por fim revelado quando o Papa fosse a Fátima em 13 de maio de 2000.
Nesta data, um pequeno adiamento. O Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger, ponderara ao Pontífice a necessidade de esclarecer o povo fiel sobre o alcance das revelações privadas, mesmo as de Fátima, por mais atestadas que sejam. Com efeito, elas não impõem a aceitação dos fiéis como a um dogma da fé.
Aliás, o fato de o Segredo não ter sido divulgado em 1960 fora o resultado de uma decisão prudencial e não dogmática, como observa o mesmo Cardeal Ratzinger: “Certamente a decisão dos três Papas de não publicar o Segredo [...] era uma decisão não dogmática, mas prudencial. E se pode sempre discutir sobre a prudência de uma decisão, se politicamente uma outra prudência não teria sido preferível. Portanto, não se deve dogmatizar esta atitude dos Papas”.
E não sendo um ato dogmático, não é garantido pelo carisma da infalibilidade: “Pode-se sempre discutir sobre a prudência de uma decisão”.
Por fim, o 3° Segredo foi revelado no ano 2000. E deu-se o que previu o Cardeal Ratzinger, logo no início de seu Comentário teológico: “Quem lê com atenção o texto do chamado terceiro “segredo” de Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente desiludido ou surpreso* depois de todas as especulações que foram feitas. Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século que está para findar, representada através duma cena descrita numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto o que a Mãe do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num tempo de grandes problemas e angústias? (A Mensagem de Fátima, Congregação para a Doutrina da Fé, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2000, p.31).
* Na edição em português do opúsculo A Mensagem de Fátima, da Congregação para a Doutrina da Fé, a palavra meravigliato, do original italiano, equivalente a surpreso em português, foi traduzida erroneamente por maravilhado. Colocamos acima a tradução correta.
Salva toda a reverência que merece o autor desse comentário, ademais elevado ao sólio pontifício no conclave de 2005, o 3° Segredo revela dois pontos importantes do “véu do futuro”, hoje muito presentes na atenção mundial: o anúncio profético dos mártires do século XXI e a perspectiva de uma destruição de porte universal. Ademais, como vimos, é o próprio Cardeal Ratzinger quem destaca, em seu Comentário teológico, esses dois pontos: o martírio e a destruição.
Catolicismo — Quais serão as proporções do Castigo anunciado em Fátima: significará uma destruição do mundo até seus alicerces?
Antonio Borelli Machado — É muito sugestivo que, no 3° Segredo, se descreva “uma grande cidade meio em ruínas”. O que está “meio em ruínas” não está totalmente destruído. Portanto, do que existe hoje, algo ficará de pé. Pode-se pensar que a destruição será seletiva…
No trecho da encíclica Immortale Dei, há pouco citado, Leão XIII observava que, em tempos passados — e é intuitiva a remissão dele à Idade Média — “a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer”.
Se tais “documentos”, “artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer”, a fortiori se deve inferir que Deus os preservará, ao desencadear o Castigo.
Que documentos são esses?
A memória do passado subsiste não apenas em documentos históricos, mas também no cerne das leis e das instituições consolidado ao longo dos séculos; bem como, de modo ainda mais visível, nos monumentos que o tempo e os homens não destruíram. Exemplo de causar arrepio e espanto foi a intenção dos revolucionários de 1789 de demolir a Catedral de Notre-Dame de Paris — essa joia da Cristandade medieval. Ela chegou a ser posta à venda e surgiu até um comprador. Com as perturbações da Revolução, o comprador não chegou a pagar e a compra se desfez.
Agora, com a aproximação do centenário de Fátima, os revolucionários de nossos dias tentam desferir o assalto derradeiro à civilização cristã: investem com ódio cego contra os princípios sagrados da família que ainda restam de pé, e pretendem, entre outros maléficos desígnios, transtornar a própria natureza biológica do homem, propugnando o que chamam Ideologia de Gênero. Segundo esta, não se nasce homem ou mulher, mas cada um se faz homem ou mulher segundo seus pendores pessoais. Uma concepção inaudita!
É consolador ver que muitos de nossos contemporâneos, que antes assistiam passivamente as investidas revolucionárias, hoje começam a reagir e criam obstáculos inesperados a essa ousadia final da Revolução*.
* Para uma percuciente análise do processo revolucionário que veio erodindo a civilização cristã a partir dos fins da Idade Média até hoje, veja-se o ensaio Revolução e Contra-Revolução, de Plinio Corrêa de Oliveira, editado em português (língua original), com várias edições em outras línguas: alemão, bielo-russo, espanhol, estoniano, francês, húngaro, inglês, italiano, japonês, lituano, polonês, romeno, russo e ucraniano.
Diante do exposto, pode-se prognosticar que o processo revolucionário não alcançará a destruição total que almeja — dos princípios, instituições e monumentos da civilização cristã —, mas se chocará contra a resistência de um pequeno, mas crescente número de almas fiéis.
Não sem profunda emoção se vê surgir, na cena final do 3° Segredo, a inesperada fileira dos que estavam longe de Deus, e que, reaproximando-se d’Ele, são ungidos com o sangue dos mártires, recolhido pouco antes por dois Anjos, em regadores de cristal, sob os braços da Cruz.
A esses beneficiários ignotos do sangue dos mártires, segundo o princípio enunciado por Tertuliano, caberá juntar com amor os restos da Cristandade — os documentos a que fazia referência Leão XIII — e reedificar sobre eles a civilização cristã do futuro, elevando-a ao máximo esplendor, não alcançado durante a Idade Média.
Para isso, deverão remover todos os escombros do Estado laico, igualitário e ateu que tiverem restado na face da Terra e reconstruir sobre eles uma “civilização cristã, austera e hierárquica, fundamentalmente sacral, anti-igualitária e antiliberal”, como ensina o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em Revolução e Contra-Revolução*.
* Parte II, cap. II.
Tudo com um tônus profundamente marial, segundo preconiza São Luís Grignion de Montfort, no Tratado da Verdadeira Devoção (n° 217):
— “Quando virá o dia em que as almas respirarão Maria, como o corpo respira o ar?”
Não sabemos quando isso ocorrerá. Uma coisa, porém, é certa: tal se dará efetivamente, pois Nossa Senhora assegurou, no final do 2° Segredo: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”
Fonte: ABIM
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