Mário Soares, que morreu ontem aos 92 anos, foi uma figura central da democracia portuguesa, que começou a vida política ainda estudante, no combate ao Estado Novo, fundou o PS e desempenhou os mais altos cargos políticos na República Portuguesa.
Nascido em Lisboa, a 7 de dezembro de 1924, filho de João Lopes Soares, que foi ministro na I República, e de Elisa Nobre Baptista, Mário Alberto Nobre Lopes Soares teve um percurso político intenso, com influência em alguns dos mais importantes acontecimentos do século XX em Portugal.
Preso político e exilado pela ditadura de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, que a Revolução dos Cravos derrubaria, foi um dos fundadores do Partido Socialista (PS), em 1973, e depois do 25 de Abril de 1974 foi ministro dos Negócios Estrangeiros dos primeiros governos provisórios, primeiro-ministro dos I, II e IX governos constitucionais, entre 1976 e 1978 e entre 1983 e 1985, e Presidente da República por dois mandatos, de 1986 a 1996.
Os primeiros passos de Mário Soares na política foram dados aos 19 anos, em plena ditadura e no final da II Grande Guerra Mundial, quando aderiu, na clandestinidade, ao Partido Comunista Português (PCP) em 1943, tendo nessa década feito parte de organizações de resistência ao regime como o MUD (Movimento de Unidade Democrática) Juvenil e o MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Antifascista).
Antes, ainda adolescente, conheceu por via do seu pai o líder histórico do PCP, Álvaro Cunhal, então jovem dirigente comunista, que foi regente de estudos do Colégio Moderno e que lhe deu lições particulares (tal como Agostinho da Silva), incentivando-o, depois, a seguir na universidade os estudos de filosofia.
Preso pela primeira vez
Dois anos depois, em agosto de 1946, foi pela primeira vez preso pela polícia política do Estado Novo, a PIDE. Cinquenta anos depois, numa entrevista, confessou que a prisão foi a sua "segunda universidade".
Terminada a II Guerra Mundial e no início da Guerra Fria (Estados Unidos/União Soviética), foi secretário da Comissão Central da candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República, em 1949, tendo participado desde essa altura em todos os atos eleitorais permitidos pelo regime do Estado Novo.
Licenciado em Ciências Históricas-Filosóficas (1951) e em Direito (1957), pela Universidade de Lisboa, Mário Soares desligou-se, entretanto, do PCP, partido do qual seria formalmente expulso em 1950.
"Ainda hoje não lhe posso dizer se fui eu que saí ou se foi o partido que me expulsou", disse na entrevista à jornalista Maria João Avillez, que deu origem ao livro "Soares - Ditadura e Revolução".
Em 1953, numa fase em que era acusado de ser "oportunista" pelo PCP, aderiu à Resistência Republicana e Socialista, que pretendia construir uma alternativa de esquerda não comunista.
A luta contra a ditadura foi um dos legados que recebeu do seu pai, que disse ser a "sua grande referência moral". A sua atividade política levou a que fosse perseguido pela PIDE e preso doze vezes num período de três anos.
Na prisão, casou-se com Maria de Jesus Barroso, jovem atriz do Teatro Nacional, a 22 de fevereiro de 1949, com quem teria dois filhos, Isabel e João.
Como advogado, defendeu presos políticos e representou a família de Humberto Delgado nas investigações que provaram a responsabilidade da PIDE no assassínio do "general sem medo".
Em 1961, subscreveu o Programa para a Democratização da República, ato que o levaria novamente à prisão por seis meses. Três anos depois, com Francisco Ramos e Costa e Manuel Tito de Morais, fundou a Acção Socialista Portuguesa, organização que levaria mais tarde à formação do PS, e (já com Marcelo Caetano como presidente do Conselho) esteve em 1969 na primeira linha da constituição da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática).
Forçado ao exílio
Em 1968, esteve por oito meses deportado em São Tomé e Príncipe e, dois anos depois, foi forçado a exilar-se em França, onde deu aulas em Vincennes, em Paris, na Sorbonne, e na Faculdade de Letras da Alta Bretanha.
Durante o seu período no exílio, Mário Soares foi o principal dinamizador da fundação do PS, a 19 de abril de 1973, em Bad Munstereifel, na República Federal Alemã, sendo eleito secretário-geral de imediato, cargo que desempenharia durante 13 anos, até 1986.
Quando o PS foi fundado, preparava-se já em Portugal o movimento dos capitães que levaria à queda da ditadura. Logo que soube do golpe de Estado, Mário Soares decidiu regressar imediatamente a Portugal, apanhou o comboio em Paris e chegou a Lisboa dois dias após o 25 de Abril.
Na estação ferroviária de Santa Apolónia, foi recebido em euforia por uma multidão, a quem falou da varanda da estação.
No nascimento do novo regime político, com o general António de Spínola a Presidente da República, foi ministro dos Negócios Estrangeiros dos três primeiros governos provisórios e ministro sem pasta do IV, nestes dois últimos já com o general Costa Gomes nas funções de chefe de Estado.
Neste período, esteve diretamente envolvido no início da descolonização da Guiné, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe e Moçambique - processo que, pela sua controvérsia, marcou a sua carreira política.
Depois de o PS ter vencido com cerca de 38 por cento dos votos as primeiras eleições livres da democracia, para a Assembleia Constituinte, em abril de 1975, Mário Soares entrou em frontal rota de colisão com o bloco comunista e com o então primeiro-ministro Vasco Gonçalves, demitiu-se do IV Governo Provisório e foi o principal protagonista civil do movimento contra a ameaça de "um novo totalitarismo", desta vez de inspiração soviética.
Tendo como aliados internacionais Helmut Schmidt (chanceler da República Federal Alemã), Olof Palme (primeiro-ministro sueco), François Mitterrand (que viria a ser Presidente de França), e próximo do então norte-americano em Lisboa, Frank Carlucci, o líder do PS bateu-se por uma via europeia para Portugal e lutou politicamente contra o Processo Revolucionário em Curso (PREC), que seria derrotado militarmente com o golpe de 25 de novembro de 1975, chefiado pelo general Ramalho Eanes.
O PS voltou a vencer o segundo ato eleitoral da democracia, as primeiras eleições legislativas, em abril de 1976, e Mário Soares foi nomeado primeiro-ministro do I Governo Constitucional.
Soares, o primeiro-ministro
Enquanto chefe de Governo, primeiro com um executivo do PS sem maioria no Parlamento, depois em coligação com o CDS, teve de gerir o regresso de milhares de retornados das ex-colónias e uma situação de quase rutura financeira do país, aplicando um programa negociado com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Mas foi também neste período, em 1977, que Mário Soares iniciou formalmente o processo de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE).
De 1979 a 1983, na oposição, acordou com a Aliança Democrática (PSD/CDS/PPM) e primeira revisão da Constituição, que consagrou o carácter civilista do regime.
Em 1983, Soares foi novamente primeiro-ministro, desta vez em coligação com o PSD liderado por Mota Pinto. O IX Governo Constitucional, conhecido como o Governo do "Bloco Central", de 1983 a 1985, foi confrontado com a necessidade de um segundo pedido de resgate ao FMI e concluiu o processo de adesão de Portugal à CEE a 12 de julho de 1985.
Apesar da recomposição das finanças públicas e de se ter alcançado o objetivo da integração europeia, o PS sofreu a maior derrota da sua história nas eleições legislativas de 1985, com 21 por cento dos votos.
Mesmo com um ambiente político desfavorável - as sondagens davam-lhe oito por cento das intenções de voto -, Mário Soares decidiu no final de 1985 lançar-se na corrida presidencial.
Na primeira volta, atingiu os 25 por cento, batendo os outros candidatos apoiados por eleitorado de esquerda, Maria de Lurdes Pintassilgo e Salgado Zenha, que até 1980 tinha sido o seu "número dois" na direção do PS. Na segunda volta, derrotou o candidato apoiado pelo PSD e CDS, Freitas do Amaral, por 120 mil votos de diferença.
Soares, o Presidente da República
Em Belém, exerceu um primeiro mandato em que apostou na proximidade com as pessoas, através da realização de "presidências abertas", em que se fixava vários dias fora da capital, tal como os antigos monarcas portugueses fizeram até ao final do Antigo Regime. No plano externo, realizou dezenas de viagens por todo o mundo, visando projetar a imagem de Portugal como uma democracia moderna.
Neste seu primeiro mandato, PS, PRD (Partido Renovador Democrático) e PCP uniram-se numa moção de censura que derrubou o Governo minoritário liderado por Cavaco Silva, mas Soares recusou a formação de um novo executivo com base naqueles partidos de esquerda e convocou eleições antecipadas em 1987, nas quais o PSD teve a sua primeira de duas maiorias absolutas.
Mário Soares foi reeleito sem dificuldade Presidente da República em 1991, com 70,4 por cento dos votos e com o apoio do PSD. No entanto, o seu segundo mandato seria marcado por um clima de crispação com o Governo de Cavaco Silva.
Nos meios do PSD, foi apontado como uma das "forças de bloqueio" da governação de Cavaco Silva, enquanto Soares reclamou "o direito à indignação" mesmo perante um Governo de maioria absoluta.
Em 1995, depois de dez anos de "jejum" de poder socialista, Mário Soares deu posse a António Guterres como primeiro-ministro e, alguns meses depois, no início de 1996, passou o testemunho da Presidência da República a um outro socialista, Jorge Sampaio.
Fora de Belém, Mário Soares dedicou-se sobretudo à e voltou a percorrer o mundo, participando em conferências e palestras. Escreveu artigos em jornais e revistas e nunca se coibiu de comentar a atualidade nacional e internacional.
Em 1999, por convite do então secretário-geral do PS, António Guterres, regressou à política ativa, aceitando o desafio de liderar a lista dos socialistas para o Parlamento Europeu, ato eleitoral que venceu com cerca de 44 por cento dos votos.
"Agora, basta!" Mas não bastou
"Agora, basta! Não haverá mais política, nem exercício de cargos políticos", disse a 7 de dezembro de 2004, durante um jantar comemorativo dos seus 80 anos.
Mas em 2005, agora por proposta do líder do PS, José Sócrates, Mário Soares decidiu travar mais um combate político e lançou-se numa terceira candidatura à Presidência da República.
Porém, o seu "camarada" Manuel Alegre também resolveu entrar na corrida presidencial de 2006 como independente, disputando-lhe o espaço socialista, e Cavaco Silva venceu o ato eleitoral logo à primeira volta. Soares acabaria em terceiro lugar, inclusivamente atrás de Alegre, com pouco mais de 14 por cento dos votos.
Ao longo da última década, Soares posicionou-se claramente na esquerda política, aproximando-se de personalidades do Bloco de Esquerda e do espaço comunista. No plano internacional, Soares apoiou a ação do antigo chefe de Estado brasileiro, Lula da Silva, e fez questão de mostrar a sua amizade com o falecido e controverso presidente venezuelano, Hugo Chavez.
Em contraponto, o fundador do PS fez discursos extremamente violentos contra o ex-presidente norte-americano George W. Bush, contra a chanceler germânica, Angela Merkel, e contra o rumo recente da União Europeia, que considerou subordinada ao neoliberalismo e à "ditadura dos mercados".
Já o atual presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, mereceu-lhe sempre os mais rasgados elogios, considerando-o "o maior estadista e político que existe no mundo". Barack Obama e o papa Francisco foram as duas últimas figuras mundiais encaradas como referências pelo fundador do PS.
Ao contrário do que acontecera com anteriores líderes do PS como Vítor Constâncio, Jorge Sampaio ou António Guterres, Soares teve poucos momentos de choque com a liderança socialista de José Sócrates (2004/2011), a quem frequentemente elogiou a sua coragem e determinação política.
Durante a prisão de José Sócrates na sequência de acusações de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais, Mário Soares foi visita frequente do Estabelecimento Prisional de Évora entre novembro de 2015 e setembro de 2016 e nunca hesitou em condenar a detenção do antigo primeiro-ministro.
Após a queda política de Sócrates, Soares manteve-se equidistante na disputa pela liderança do PS travada entre António José Seguro e Francisco Assis em julho de 2011, elogiando ambos, mas no verão de 2013 incompatibilizou-se com o então secretário-geral do PS, Seguro, quando este se envolveu em negociações (falhadas) com o PSD, sob observação do ex-Presidente da República Cavaco Silva.
Nas eleições "primárias" socialistas de setembro de 2015, Mário Soares esteve ao lado do atual líder, António Costa, contra António José Seguro, tendo depois apoiado o antigo reitor da Universidade de Lisboa Sampaio da Nóvoa nas presidenciais de janeiro de 2016, que Marcelo Rebelo de Sousa venceu logo à primeira volta.
Durante o período de resgate financeiro de Portugal, entre 2011 e 2014, Mário Soares colocou-se frontalmente contra o executivo PSD/CDS-PP liderado por Pedro Passos Coelho, tendo promovido conferências na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa que juntaram representantes de todas as forças de esquerda "em defesa da Constituição" e em rejeição contra a linha da "troika" (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional).
Em 2012, através de um manifesto, o antigo Presidente da República pediu a demissão do executivo liderado por Passos, alegando que Portugal estava a "arruinar-se" e a "ser destruído", e defendeu a formação de um Governo de personalidades (ou técnico) sem recurso a eleições antecipadas, tal como tinha acontecido em Itália.
No mesmo ano foi promotor de um novo manifesto, desta vez de solidariedade com o povo da Grécia, juntamente com 33 personalidades ligadas à esquerda portuguesa, entre eles o ex-líder da CGTP Carvalho da Silva, de quem se aproximou politicamente, chegando mesmo a sugerir que seria um bom candidato presidencial.
Os últimos anos
Nos últimos anos, a corrente neoliberal tornou-se a inimiga número um do combate político de Mário Soares.
Nesta fase, numa das suas aparições públicas, Mário Soares deixou mesmo um aviso em tom dramático sobre os perigos do poder dos mercados financeiros.
"Os mercados não podem ser senhores dos Estados, têm que ser dominados pelos Estados e seguir regras (?) Isso é o fundamental e se não for assim nós vamos ter uns anos em que vamos ter grandes sarilhos, as democracias vão entrar em descrédito, em muitos sítios já estão, e vamos ter porventura uma terceira guerra mundial", advertiu.
Após a morte da sua mulher, Maria de Jesus Barroso, em julho de 2015, começaram a ser raras as aparições públicas de Mário Soares.
Em 2016, já com a sua saúde debilitada, Mário Soares foi alvo de várias homenagens institucionais, a primeira quando recebeu em abril do presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, numa cerimónia reservada, o diploma de deputado honorário no âmbito dos 40 anos da posse da Assembleia Constituinte.
No mesmo mês, por ocasião das comemorações do 25 de Abril de 1974, o fundador do PS recebeu do presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, também numa cerimónia reservada, a chave da cidade - a mais alta distinção atribuída pelo município a personalidades com relevância nacional e internacional.
A 23 de julho, foi a vez do primeiro-ministro, António Costa, numa cerimónia pública que se realizou nos jardins de São Bento, prestar homenagem ao I Governo Constitucional, liderado por Mário Soares, por ocasião dos 40 anos da posse deste executivo minoritário do PS.
Mário Soares esteve presente pela última vez numa sessão pública a 28 de setembro, quando o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, homenageou a antiga presidente da Cruz Vermelha Portuguesa Maria de Jesus Barroso.
Fonte: noticiasaominuto
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