quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O regresso impossível a Moçambique

P
 
 
Ipsilon
 
 
  Vasco Câmara 

Vou passar-vos já a Isabela Figueiredo:
"Semanas antes da partida idealizo-me sentada na Costa do Sol, fitando o mar calmo e vespertino do Índico, ligeiramente esverdeado. Fui ao longo dos anos repetidamente avisada para não regressar ao Maputo, mas há demasiado tempo que sonho com a cidade de terra vermelha e a atmosfera húmida e turva onde nasci e que abandonei contra vontade. Passaram décadas. Os perigos inerentes aos ardores revolucionários marxistas-leninistas terminaram. Desejo celebrar no Maputo o meu 54º aniversário. Os moçambicanos perguntam-me o que procuro: 'conhecer a cidade de hoje, o seu ambiente, mas sobretudo venho à espera do que quer ser encontrado.' No meu íntimo sei que regressei por necessidade. Embora reconheça fisicamente a maior parte dos lugares, eles são agora outros, porque a sua energia mudou. Alguns desapareceram. Aceito melhor a decadência do que a demolição. Há quem classifique depreciativamente esta viagem como 'roteiro da saudade'. Penso que ninguém que tenha vivido 41 anos afastado do lugar onde nasceu, poderá resistir a procurar, no regresso, os espaços onde a sua vida começou."
É a autora de Caderno de Memórias Coloniais (2009) e de A Gorda (2016), fulminantes ajustes de contas com o passado, com os pais, consigo própria. Nasceu em Maputo em 1963, vive em Portugal desde 1975. Passados 41 anos, regressou pela primeira vez à ex-Lourenço Marques. Um lugar aonde nunca fui é o resultado, no próximo Ípsilon, da proposta que lhe fiz de escrever para o suplemento sobre essa viagem (impossível?) a lugares e memórias de que, inicialmente, Isabela nos foi dando conta na sua página do facebook. Aceitou o desafio. Como sempre acontece quando enfrentamos (os textos de...) Isabela, a doçura é tão só a primeira impressão de uma inquebrantável ferocidade. Ei-la:
E ei-los: Lula Pena, Cláudia Varejão, Fernanda Fragateiro, Miguel Loureiro.
A primeira continua sem pressas a desenvolver uma exigente procura interior. A música permanece indomesticável, de geografia indeterminada: Archivo Pittoresto é o novo disco, o retrato e a entrevista são de Vítor Belanciano.
Cláudia Varejão mergulhou na intimidade e no território de um grupo de pescadoras de pérolas japonesa: Ama-San - o filme, escreve Luís Miguel Oliveira, é "também um processo de familiarização com aquelas pessoas específicas, uma entrada na sua intimidade e nos seus redutos domésticos." É um dos destaques cinematográficos de uma semana em que nos podemos confrontar com a memória dos anjos de Wim Wenders: foi há quase três décadas As Asas do Desejovamos lá enfrentar as rugas. (E já agora que falamos de confronto: quem viu o suplemento da semana passada, capa dada a Silêncio, filme de Martin Scorsese, percebeu como extremou opiniões por aqui. Depois do abraço que lhe deu Jorge Mourinha, que reconhece no filme um dos poucos cineastas ainda capazes de resgatar o cinema da obsolescência anunciada, eu deparo-me no filme com a enorme frustração do encontro a cada novo de Scorsese: um cinema parece feito de simulacros, de presenças virtuais, de pálidas substituições para ausências várias. Esta é a última imitação de um dos seus Cristos.)
Continuando nos retratos: José Marmeleira encontra-se com a beleza das formas de Fernanda Fragateiro, que em Évora, até 28 de Abril, apresenta A Reserva das Coisas no seu Estado Latente.
Fascinante é o retrato, por Gonçalo Frota, do encenador e actor Miguel Loureiro. As fotos parecem de outro tempo, mas é esse o desejo de Loureiro, rumar a um tempo que já não existe. Oiçam-no: "Só dão dinheiro, condições de produção e materiais se houver uma sineta de actualidade. Mas o mundo não é tão rasca? Não é possível alienarmo-nos?". Estamos aqui para isso.
Fonte: Público

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